quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Rina

O dia se arrastava para seu final e eu buscava me livrar da angústia que me dominava há vários meses, lendo. Depois que minha última mulher me abandonara, em condições misteriosas, inexplicáveis, que nunca consegui entender. Passei a escrever compulsivamente, durante muito tempo. O sofrimento fora terrível, a busca de compreender o que acontecera me fez analisar e compreender muitas coisas, menos o fato em si. Acabei encontrando na leitura um lenitivo e, nesse final de dia, me dedicava a isso, lendo “Médico de homens e de almas”. Ouvi uma buzina e abri a janela para ver quem era, uma vez que era raro receber visitas e, as que apareciam, entravam sem buzinar.
Havia um carro junto à chave de arame que fecha a entrada da estrada da fazenda ao espaço onde ficam as casas. Não o reconheci, não era de nenhum conhecido. Fui até lá e, ao chegar próximo, uma mulher assomou a cabeça pela janela.
- Desculpa Ter buzinado, é que fiquei com medo do cachorro. – Abri a chave de arame e pedi-lhe que estacionasse junto à penúltima casa, que era a minha. Ela entrou com o carro, fechei a chave de arame e fui a seu encontro. Estranho! Não conhecia aquela mulher, embora não me parecesse totalmente estranha, tinha algo de familiar.
Enquanto me dirigia para a casa, observei a mulher: morena, alta, forte, de corpo bem feito, aparentando mais de quarenta e menos de cinqüenta anos. Quando cheguei próximo, ela disse:
- Parece que não está me reconhecendo. – falou sorrindo. Uma coisa que, infelizmente, aconteceu muitas vezes na minha vida; foi esse tipo de colocação: alguém perguntando se eu não o (a) reconhecia. Minha péssima memória para fisionomias sempre me colocou nessa posição desagradável. Olhei-a durante algum tempo e disse:
- Me desculpe essa minha terrível deficiência, sou péssimo fiisionomista e isso já me criou grandes problemas ao não reconhecer pessoas que me foram, até, muito queridas no passado. Não é um problema da idade; deve ser má formação congênita. A senhora não me parece estranha, no entanto, não consigo recordá-la.
- Santa Adélia do Sertão, no final dos anos setenta, te lembra alguma coisa?
- Rina! Rina Lúcia! – Não sei se gritei ou balbuciei, nem quanto tempo fiquei olhando aquele sorriso que ela me dirigia. Caminhou pra mim, nos abraçamos longamente, o queixo de um no ombro do outro, os rostos se tocando. Foi um abraço forte e duradouro. Me lembrei do quanto a amara e quanto sofrera ao Ter que deixá-la. Afastei-me um passo, segurando suas mãos e fiquei olhando para ela, para aquele sorriso, até que ela quebrou o silêncio.
- Finalmente te encontrei. Nunca perdi a esperança. Que alegria te rever!
- O que você está falando? Faz tempo que está me procurando?
- Muito.
- E, como me encontrou?
- Por acaso. Fui num churrasco com uns amigos, onde estavam vários voadores de paraglider. Durante as conversas, alguém falou sobre um tal Palo. Automaticamente quis mais informações, o tipo físico, a idade, a profissão. Não tive dúvidas de que se tratava de você. Quis saber onde te encontrar. Ninguém sabia, fazia anos que não te viam. Um deles disse que você tinha morado por aqui alguns anos atrás, mas que tinha ido embora e nunca mais tivera notícias. A última notícia que tinham de você, é que estava em Campo Grande, casado com uma menina muito nova e bonita. Ninguém tinha a menor informação que possibilitasse te encontrar. Pedi a todos que procurassem alguma informação e que me avisassem se conseguissem alguma. Depois de alguns meses, um rapaz me ligou informando que, um amigo teu, de São Bento do Barau, sabia onde você estava morando. Liguei pra ele na mesma hora. Ele me informou que você estava morando aqui. Não sabia o local exato mas, com as indicações que me deu, vim perguntando e, aqui estou.
- A curiosidade foi tão grande assim?
- Não foi curiosidade, foi necessidade. Você, naquele pouco tempo, me preencheu por inteiro. Quando partiu, fiquei vazia. Tentei preencher esse vazio, estudando, fazendo amigos, bebendo. Cheguei até a casar. Não foi possível! Cheguei a pensar que tivesse conseguido, com o casamento. No entanto, essa foi a pior tentativa, rapidamente mostrou a dificuldade de colocar qualquer coisa ou pessoa no lugar que você deixou, vazio. Tentei vários relacionamentos, além do casamento, que durou muito pouco. Eles só serviram pra me mostrar que eu estivera errada ao considerar que você fôra muito importante pra mim. Eles certificaram que você é insubstituível, que nada poderia preencher o espaço que você deixara. Por isso decidi tentar te encontrar. Nunca tive grande esperança de Ter você pra mim, mas sempre acreditei que Ter algo de você já seria alguma coisa. Ainda que fosse somente uma conversa.
Nos abraçamos novamente, demoradamente. Ela acariciava minhas costas com uma das mãos e a nuca com a outra. Eu sentia o calor e a vibração daquele corpo colado ao meu. Imaginava o que ela deveria Ter passado nesses quase trinta anos e sentia a responsabilidade de representar tanto para alguém. Afastei-me novamente, segurando suas mãos, fitando-a nos olhos, tentando ler o que se passava no sei interior. Notei o brilho nos seus olhos e o leve tremor nos seus lábios carnudos. Ela me olhava como quem vê uma miragem, com verdadeiro encantamento. Senti um arrepio ao considerar que por melhor que eu pudesse ser, dificilmente conseguiria satisfazer aquela espectativa, imaginada, irreal, construída ao longo de anos, verdadeira fantasia, que teria projetado, em mim, uma espécie de Deus. Aquilo era uma verdadeira loucura, verdadeira alucinação de alguém que se deixara dominar pela fantasia. Lentamente, fui aproximando meu rosto do seu até que a ponta dos narizes se tocassem e passamos algum tempo olhando-nos nos olhos, profundamente, até que as bocas se tocaram, levemente, roçando os lábios, suavemente. De repente, como numa explosão, as bocas se apertaram, com os lábios abertos, como se tentássemos nos engolir, um ao outro; as línguas se buscando, se papilando, agitadas, inquietas. Ergui sua blusa, o soutien e minha camiseta; senti seus seios firmes contra meu peito. Deixei sua boca, beijei seu rosto e pescoço, deslizei para seu peito e alojei meu rosto entre seus seios, que ela apertava conta minha cabeça. Enquanto minha boca percorria os seios e chupava os mamilos, minhas mãos baixavam suas calças a calcinhas, enquanto ela baixava as minhas, passava as mãos por meu corpo até encontrar meu pênis, acariciando-o como se fosse a coisa mais delicada do mundo. Deslizei as mãos por seu corpo, das costas à bunda, seios, barriga, coxas; enquanto nos livrávamos de nossas roupas. Minha mão chegou à sua vagina, inundada e os dedos percorreram os lábios molhados, encharcando os pêlos e a parte interior das coxas. Ela encostou a cabeça do meu pênis na sua vagina, com uma das mãos, enquanto a outra afastava os grandes lábios. Ela levantou uma perna e senti o enorme calor molhado me agasalhando, me fazendo delirar, ouvindo seus gemidos, sentindo seu corpo tremer, se apertando contra mim enquanto me beijava os ombros e pescoço e percorria meu corpo com mãos ardentes. O gozo chegou violento, entre gemidos e gritos, inundando-nos. Ela baixou as mãos entre as pernas. Com uma pegou meu pênis agasalhando-o e com a outra recolheu o que vazava da vagiana, esfregando sobre sua barriga em movimentos circulares e ritimados. Massageou-se, e a mim, até que os fluidos secaram. Entramos em casa e sentamo-nos no chão, um em frente ao outro, com as pernas encolhidas e abertas, mostrando-nos e deliciando-nos com a visão de nossos corpos.
Nossos corpos se uniram num prolongado abraço. Eu sentia seu corpo colado ao meu, como se me transmitisse uma energia calma e suave.
Tomamos banho em silêncio, esfregando um ao outro, olhando-nos e sentindo os corpos através das mãos. Enquanto ela se enxugava, peguei sua bolsa no carro.
Sentamo-nos na sala, no chão, sobre almofadas, um de frente para o outro. Ela quebrou o silêncio. – Parece um sonho! Procurei muito, mas não tinha grandes esperanças de te encontrar. Agora, te encontrei e me sinto grandemente recompensada.
- Deixa te dizer uma coisa: é tremendamente prazeroso pro ego ouvir o que você diz. No entanto, me assusta o desapontamento que posso te causar. Você sonhou alto demais, foi envolvida pela fantasia, me transformou num mito. Quando passar essa emoção do encontro e você cair na real, verificando que o mito não existe; a decepção pode ser terrível.
- Venho pensando nisso todos esses anos. Fiz o possível pra te esquecer, acreditando que seria muito difícil te encontrar, que você poderia continuar casado e convicto de não ameaçar essa união, como aconteceu quando da nossa separação. Pensei que você pudesse Ter se tornado um pai de família tradicional, quadrado, sem graça. No entanto, a obsessão em te encontrar foi mais forte que eu, que minha racionalidade, ocupando meu pensamento, independente de minha vontade, contra ela, contra toda racionalidade demonstrando que, caso te encontrasse, a decepção poderia ser terrível. Tentei tudo que estava a meu alcance pra me livrar desses pensamentos. Não consegui. Verificando o insucesso de todas as tentativas, decidi aceitar o desafio, acreditando que a decepção, caso acontecesse, me livraria daquela verdadeira obsessão, libertando-me.
- É razoável. Conheço bem o poder desses pensamentos involuntários e eles têm me causado bastante sofrimento. Pra mim, eles são parte do grande mistério que envolve a vida e um forte indicativo de quanto somos vulneráveis e susceptíveis de interferências externas. Nosso relacionamento, embora curto, foi um marco na minha vida. A partir dali, vivi inúmeras experiências, nos mais variados campos: profissional, institucional, político, intelectual, filosófico; em fim; pude aprender muita coisa e verificar, progressivamente, que quanto mais se aprende, mais erros verificamos ter cometido e que, quanto mais procuramos acertar, maior é o número de erros a que estaremos sujeitos. Portanto, este cara que está aqui na tua frente, é muito diferente daquele que você conheceu.
- Será? Claro que esses anos todos mudaram tanto você quanto a mim. Eu também mantenho muito pouco do que fui. Só o fato de ter te perdido foi uma experiência enorme, muito sofrida, mas de muito crescimento de muita compreensão. É muito cedo ainda pra avaliar, mas sinto que, de alguma maneira, você é o mesmo; muito diferente, mas o mesmo. Não sei te dizer o que é. É uma sensação, mas sinto que algo em você continua igual.
- Fisicamente, você não mudou tanto. Quando te conheci, acreditei que você era bem mais velha, enquanto não passava de uma adolescente. Agora, parece mais nova. De resto, embora, como você disse, ainda seja muito cedo para avaliações; te sinto com inteligência consciente, serena, equilibrada. Naquela época, você era uma adolescente meio louca, desejosa de satisfazer suas vontades, sem dar maior importância ao preço que teria que pagar.
- Vivi muitos conflitos internos, algumas revoltas, não conseguia aceitar muitas regras e tabus e percebia uma grande hipocrisia nas pessoas. Vivia em constante conflito. Quando te conheci fiquei desorientada com o que senti. Era muito diferente de tudo o que já sentira até ali. Fiquei meio atordoada e senti uma tremenda insegurança. Passei a te observar e você nem me olhava. O pessoal da obra me olhava e cochichava, enquanto você não me percebia. A maioria dos homens da cidade me desejava, enquanto você nem me percebia. O forte sentimento que me dominava desde que te vi e que eu não conseguia identificar, diante da tua indeferença, me levou a creditar que era ódio. Senti necessidade de te atingir, de me vingar da tua indeferença. Comecei a procurar alguma maneira de te conquistar, pra depois te abandonar e curtir o teu sofrimento. A tentativa de te conquistar passou a ser uma obsessão. Vivia te seguindo e, quando você entrou naquele baile, decidi que naquela noite eu conseguiria meu intento. Como você continuasse me ignorando, decidi me chocar contra seu corpo. Quando você se virou pra mim, pedi desculpas e você sorriu. Fiquei confusa diante do seu sorriso, meu coração disparou e o plano arquitetado desmoronou. Quando você me convidou pra tomar alguma coisa, acreditei que estava conseguindo meu objetivo. Você não demonstrou maior interesse e o convite para beber pareceu simples gentileza. Minha confusão aumentou e por isso dei a desculpa de ir ao banheiro, fugindo de você. Quando mais tarde, te encontrei no barracão, bar com música, pensei em fugir mas você me viu antes. Confusa como estava, sem saber o que fazer, sugeri que tomássemos alguma coisa e, totalmente insegura, fugi novamente, repetindo o argumento do banheiro. Eu que saíra pra caçar, voltara pra casa com a total sensação de ter sido caçada. Não consegui dormir um só minuto. Impulsiva como era, te mandei recado, na manhã seguinte, pra se encontrar comigo. Eu sentia uma vontade imensa de te abraçar e beijar, enquanto você conversava gentilmente, evitando qualquer possibilidade de relacionamento que não fosse amizade. Disse que era casado, tinha filhos e que amava a mulher. Era tudo que eu não queria ouvir. Depois de algum tempo, alegando que tinha que viajar, você se despediu amavelmente. Foi a gota d’água, que me levou a tentar o suicídio. Lembra?
- Lembro. Só que você alegou que a tentativa não tinha nada a ver comigo.
- Naquela situação, se eu tivesse admitido isso, ai sim é que você ia achar que eu era totalmente louca.
- Você interpretou bem, fiquei convencido que não tivera nada a ver com aquilo, mesmo. Você estava horrível, os olhos fundos, grandes olheiras, pálida como uma defunta. A fragilidade que percebi em você, deve ter colaborado muito para que me apaixonasse. Eu era muito inocente mesmo! Fazíamos amor em todos os encontros, só no carro e só na posição mamãe, papai. O escrúpulo me impedia de aproveitar e oferecer tudo o que uma relação poderia propiciar. Tinha um sentimento de culpa terrível; por estar traindo minha mulher e por considerar que estava atrapalhando o desenvolvimento normal da vida de uma menina. Me sentia tão mal que me obriguei a te pedir que fosse embora para outra cidade, na casa de tua irmã. Você deve Ter percebido o quanto aquilo foi sofrível pra mim, pelo tanto que chorei na noite da despedida.
- Foi uma despedida dramática, terrível. Eu não conseguia aceitar aquilo. Sabia que um dia teria que acabar, pois você era irredutível, alegando que não abandonaria o casamento de maneira alguma e que não considerava justo me Ter como amante indefinidamente. Acho que você se preocupava mais comigo do que com você mesmo. No entanto, se tinha que acabar, por que tinha que ser agora? Por que não aproveitar o tempo que fosse possível? No entanto, você mostrava tanta segurança de que aquilo era o melhor, que não tive alternativa, se não aceitar. Porém, lembra? Não consegui segurar a barra mais de uma semana e voltei, disposta a tudo, pois compreendi que era a coisa mais importante da minha vida. O fazer amor era muito bom, no entanto, a conversa e teu carinho eram indispensáveis pra mim. Porém, o mais importante, que foi o principal argumento do pensamento involuntário, que me perseguiu esses anos todos, é o respeito que você tinha por mim. Eu nunca tinha tido o respeito de ninguém; nem de minha mãe, nem de meus irmãos. De repente, você, mesmo sabendo que eu era meio louca, me respeitava, de verdade.
- Mas, me diz: o que você fez depois que eu fui embora?
- Foi um sofrimento terrível! Enquanto você ainda estava na cidade, depois da separação; eu ia todos os dias na sorveteria em frente a obra, você lembra? – Respondi afirmativamente- Eu sabia que você não voltaria atrás, na decisão de se manter afastado de mim, cumprindo o que prometera à sua mulher. No entanto, eu percebia o quanto você também estava sofrendo e tinha a esperança de que o amor vencesse, te fizesse fraquejar, voltando pra mim. Insisti pra Ter uma conversa com você, mandando cartas e recados, diariamente. Você acabou aceitando e marcou o encontro no cinema, lembra?
- Lembro. Pedi que você entrasse pelo corredor esquerdo, depois da seção ter começado, para evitar que alguém nos visse juntos. Quando você passou a meu lado, te puxei pelo braço.
- Você demonstrou um sentimento de culpa muito grande, considerando-se culpado pelo que tua mulher e eu havíamos passado, quando ela descobriu nosso romance e foi me procurar. Você dizia que, interiormente não se sentia culpado, pois não me procurara, não fizera nada para me atrair, que fora acometido pelo amor e que não poderia ser culpado por isso. No entanto, socialmente, se sentia culpado. Considerava ter transgredido as leis da sociedade, expondo aos comentários maldosos, duas mulheres que muito amava. Você foi tão rigoroso com você mesmo, que não havia o que te fizesse ver as coisas de outra maneira. Você chorou, me pediu pra não te procurar mais, se despediu e saiu. Na última vez que você esteve na cidade, foi na festa de Santa Rina. Você foi lá para fazer a entrega definitiva do prédio, ao banco. Foi a última vez que conversamos, porque eu praticamente te obriguei a isso, no entanto, você foi irredutível. Me disse que o tempo se encarregaria de curar nossas dores e que, quanto antes nos desligássemos, permitiríamos o início da contagem do tempo para o esquecimento e o final do sofrimento. Você falava com tanta convicção, que me convenci de que não poderia fazer mais nada e que deveria me empenhar para tentar esquecê-lo. Fui pra casa da minha irmã em Campinas e voltei a estudar. Logo na primeira semana, um rapaz da escola começou a me paquerar e aceitei namorar com ele, na esperança de me distrair e poder te esquecer. Foi muito difícil, era um sacrifício beijá-lo, ouvir sua conversa sem sentido. Quando ele tentava passar a mão em mim, sentia como se fose uma verdadeira agressão. Antes de duas semanas, ele desistiu. Comecei a te odiar pelo que eu estava passando. Porém, amando ou odiando, você continuava no meu pensamento, por mais esforço que eu fizesse pra te eliminar de lá. Considerei que, mesmo que você estivesse sofrendo pela nossa separação; tinha o alívio de desfrutar do outro amor. Eu, no entanto, não tinha mais ninguém e, quando tentara um relacionamento, tua lembrança me impedia de desfrutá-lo. Passei a te considerar o único culpado por tudo o que eu estava sofrendo e passei a te amar com ódio. É isso mesmo! Te odiava mas queria estar contigo, nos teus braços, te amando. Era um conflito terrível.
- E como você conseguiu sair disso?
- Não consegui. Me dediquei aos estudos, com o máximo de empenho. Isso me ajudou um pouco. Virei uma verdadeira CDF (cu de ferro). Acabei concluindo o segundo grau. Decidi fazer filosofia. Prestei vestibular e entrei para a faculdade. Na minha turma tinha uma menina muito louca, a Sandra. Simpatizamos uma com a outra e nos tornamos muito amigas. Ela defendia que a vida é um mistério e que nosso destino não dependia de nós, que o que tivesse que acontecer, aconteceria, independente do que fizéssemos. Por isso, ela procurava Ter o maior prazer possível, apelando para tudo que pudesse, pra conseguir seu objetivo. Já tinha tentado, inclusive, um relacionamento homossexual, mas não gostara. Bebia como uma louca e não dispensava um baseado. Comecei aconselhando-a a deixar daquela vida, argumentando que, mesmo que o destino nos seja imposto, ela, vivendo daquela maneira, não sobreviveria para conhecer o seu. Ela alegava que se fazia aquilo, é porque estava no seu destino e, quando ele achasse que deveria mudar, provocaria essa mudança, independente do que ela quisesse. Enquanto eu a aconselhava a abandonar a bebida e a droga, ela fazia o oposto comigo; tentando me convencer de que eu era quem estava errada, curtindo tanta tristeza por não poder desfrutar um amor impossível. Defendia que, fudido, fudido e meio! O que poderia ser pior do que a vida que eu estava levando, com tanto sofrimento?
- Quem ganhou a parada?
- Ela. Acabou me convencendo a ir a uma festa na casa de um amigo dela. Só tinha maluco! Na chegada, me senti muito mal e faltou muito pouco para desistir e ir embora. Comecei a bebericar não sei o que, fui me soltando, dançando e, lá pelo meio da madrugada, participava de um tremendo bacanal. Era um monte de gente pelada, trocando a toda hora de parceiro, fazendo tudo que tinha direito. Quando eu chupava um dos rapazes, ele gozou na minha boca e vomitei em cima dele. Enxagüei a boca com wiske e voltei pra farra. Voltei pra casa com o dia amanhecendo, com muita dor de cabeça e o rabo ardendo. Passei mais de seis meses nessa vida. Perdi o semestre, fiz um aborto que quase me matou e sofri o diabo pra me recuperar. A Sandra ficou muito assustada com o que me acontecera e resolvemos largar mão daquilo. Começamos a freqüentar o espiritismo, num grupo freqüentado pela família dela.
- Que tipo de espiritismo era?
- É o chamado de mesa branca. Foi uma experiência muito interessante. Pude verificar muitas coisas a que nunca tinha dado atenção.
- Você obteve alguma revelação, premonição ou coisa parecida?
- Nos trabalhos mediúnicos, não. Mesmo porque, eu não queria saber. No entanto, certa vez, conversando com uma pessoa de fora e que fora visitar o centro que eu freqüentava, me disse que eu tivera um grande amor, que sofrera muito ao perdê-lo, que ainda continuava sofrendo, mas, que eu voltaria a encontrá-lo no futuro. Que teríamos um relacionamento excepcional, fora do comum.
- Não disse mais nada?
- Não. Ela falou sem que eu lhe perguntasse nada e, depois que disse isso, procurei mudar de assunto, não quis saber mais nada e ela não insistiu. Acredito que há um grande mistério envolvendo a vida. Existem muitas indicações de que, por algum motivo, algumas pessoas tem a capacidade de saber de coisas a respeito do passado e do futuro de outras pessoas. Acho que saber algo que deverá acontecer no futuro, poderá nos influenciar, criando problemas que considero evitáveis, desde que não tenhamos essa informação. Quando nos conhecemos, você era ateu. Mudou alguma coisa ou continua na mesma?
- Mudei. Digamos que, agora, sou agnóstico. Naquela época, eu era ateu, absolutamente materialista, totalmente cético.
- O que causou essa mudança?
- A vivência, a observação da vida e, principalmente, a observação de mim mesmo. A tentativa de tentar entender uma porção de coisas que, por mais que me esforçasse, continuaram totalmente misteriosas. Descobri a grandiosidade do universo, a complexidade da natureza, até nos menores detalhes. Verifiquei que a criação de tamanha complexidade, exigiu uma capacidade muito além da imaginação de qualquer ser humano.
- Adotou alguma religião?
- Não. Todas as que conheço, alegam conhecer o que, para mim, é o mais absoluto mistério. Apelam para dógmas e não apresentam a menor racionalidade para justificar o que defendem. Considero isso, um tremendo desrespeito para com essa capacidade criadora. Além do mais, várias delas defendem pontos de vista totalmente contraditórios a respeito do mesmo assunto. Como é possível acreditar em qualquer uma delas, se nenhuma apresenta qualquer racionalidade no que defende?
- É verdade. Durante todo esse período que freqüentei o espiritismo, li muito, conversei com muita gente, analisei muito. No princípio, a doutrina espírita me pareceu bastante razoável, principalmente o que diz respeito à reencarnação com objetivo de aprimorar o espírito através de uma seqüência de vidas na terra. Porém, um dia, me ocorreu questionar o porquê da necessidade de aprimoramento do espírito. Por que ele surge imperfeito, necessitando de sofrimento para se aprimorar? Pesquisei na literatura e através de questionamento de religiosos, mas não consegui nenhuma explicação plausível. A maioria usa o conceito do livre arbítrio, alegando que Deus o propiciara ao homem para que ele decidisse ser bom ou mal. Isso não me convence. O que você acha?
- Não consigo acreditar que tamanha capacidade criadora, tivesse possibilitado ao homem o poder de cometer tamanhas barbaridades. De qualquer maneira, considero que tudo o que o ser humano é, foi intencionalmente criado para algum objetivo. Não tenho a menor idéia a respeito de quais seriam esses objetivos, mas acredito que eles existam. Tamanha capacidade, não cometeria tamanho erro! Portanto, acredito que o criador objetivou exatamente isso que está ai, suas causas e conseqüências. Em resumo, o criador não pretendeu que nós soubéssemos suas intenções, caso contrário, ele as teria revelado a todos e não a uma minoria que se arvora conhecedora de todas suas intenções. Eu admito minha total incapacidade para compreender isso, que por mais informações que tenha procurado e analisado; pra mim é o mais absoluto mistério.
- Você acredita que nós temos, mesmo, o livre arbítrio?
- Total, não. Inúmeros exemplos me mostraram que muitas coisas acontecem independente do que façamos. Entretanto, muitas coisas parecem depender totalmente de nossas ações. Portanto, não acredito na autonomia total, mas considero que ela exista, sem me atrever a estimar em que percentual. No entanto, não descarto a possibilidade de que não tenhamos autonomia nenhuma, que não passemos de simples marionetes, manipulados por algo que me é totalmente misterioso.
- É o caso do amor, que independe de nossa vontade. Simplesmente acontece, por alguém que não escolhemos.
- Por falar em amor, como tem sido tua vida amorosa, nestes anos todos? – Perguntei.
- Não foi. E olha que fiz tudo que esteve a meu alcance pra me apaixonar. Namorei uma porção de homens, alguns muito interessantes, no entanto, você impediu qualquer possibilidade. – Ela disse isso com boa dose de humor.
- Mas você disse que chegou a casar. Casou sem amor?
- Foi um negócio meio maluco. Ele foi meu professor, um cara muito inteligente e sensível. Gostávamos muito um do outro mas tínhamos consciência de que não nos amávamos. Ele era divorciado e continuava amando a ex-mulher. Éramos muito amigos e conversávamos muito. Certo dia ele propôs que tentássemos uma vida em comum. Não nos casamos oficialmente, passamos a viver maritalmente. No começo foi bom, no entanto, o tempo foi mostrando algumas incompatibilidades que tornaram o relacionamento insuportável e acabamos nos separando.
- Não consigo entender o que acontece para destruir relacionamentos. Vocês decidiram viver juntos, porque se relacionavam bem, se sentiam bem desfrutando a companhia um do outro. Os dois vinham de frustrações amorosas e, muito provavelmente, encontraram amparo e consolação, um no outro. Se esse relacionamento não era fonte de felicidade, pelo menos servia para diminuir a infelicidade, propiciando solidariedade e, conseqüentemente, alívio para as dores da desilusão. Desde que bem compreendida, a convivência numa vida em comum, não deveria ser empecilho para que cada um pudesse encontrar um amor verdadeiro, que lhe possibilitasse a real felicidade. Enquanto isso não acontecesse, se apoiariam e se confortariam, como faziam enquanto eram amigos, mas vivendo isoladamente. Por que defeitos individuais, pequenos, na maioria das vezes, podem se sobrepor às vantagens oferecidas pela companhia solidária? Confesso que me é impossível compreender isso, no entanto, é o que acontece na esmagadora maioria dos relacionamentos, inclusive nos que existe um grande amor entre os pares. Se não conseguimos preservar o que nos é bom e que depende de nós, como nos atrevemos a criticar o comportamento idiota da maioria da humanidade?
- É inacreditável, mas é verdade! Nós somos nossos grandes algozes e, não percebendo isso, buscamos culpados por nossa infelicidade. O desconhecimento de nós mesmos é incrível. Desprezamos o potencial que temos de prazer e felicidade, empenhando-nos em buscar essas coisas onde elas não existem. Veja o que aconteceu, agora há pouco, quando fizemos amor: Eu senti um prazer e uma felicidade indiscritíveis, e acho que com você aconteceu o mesmo. Antigamente eu sentia uma repulsa tremenda por sexo anal. A primeira vez que o pratiquei, foi naquele verdadeiro bacanal que te contei Ter participado. Ele foi possível porque eu estava totalmente despreocupada, sem qualquer tipo de prevenção. Foi dolorido, no entanto, pude perceber que era uma dor prazerosa. Muitos questionarão: como é possível Ter prazer com dor? É possível, esse é um exemplo. É uma constatação. Se eu tenho consciência disso e posso desfrutar esse prazer, por que despreza-lo? Por outro lado, ao praticar sexo, penso em como seria bom que meu companheiro tivesse cinco pênis, um enfiado na vagina, outro, no anus, um na boca e um em cada mão. Sempre penso nisso. No entanto, quando racionalizo, verifico que é impossível um homem Ter cinco pênis. Que o problema se resolveria tendo cinco homens a disposição, ao mesmo tempo. No entanto, isso agrediria minha dignidade e, principalmente, a magia do relacionamento, com o mínimo de emoção que deve existir. A compreensão disso, me possibilita aproveitar ao máximo o que é possível, alternando as possibilidades, de acordo com o momento, sem esquecer que não estou sozinha nesse relacionamento, sabendo que o prazer do parceiro me dá tanto prazer, ou mais, que o meu próprio. São coisas muito simples, que estão dentro de nós e que, a maioria passa pela vida sem percebê-las, esperando que o parceiro se encarregue de tudo, acomodando-se em criticar se a relação não for satisfatória. É comum que, mesmo que o parceiro pretenda oferecer esses prazeres, ela o impeça, dominada por preconceitos e tabus.
- O relacionamento entre um homem e uma mulher, oferece várias fontes de prazer, além do sexo. O prazer de sentir-se apoiado em situações causadoras de sofrimento, tendo alguém que nos ouça e compreenda os sentimentos envolvidos. O prazer de ser contestado e ter a oportunidade de consolidar nossa apreciação a respeito do fato, ou tendo a oportunidade de verificar que estávamos errados, possibilitando-nos correções que, muitas vezes, resolvem o problema por si só. Há o prazer de sentir-se útil, podendo ajudar a companheira ou companheiro a livrar-se de causas que o façam sofrer. A humildade e a solidariedade propiciam todos esses prazeres. No entanto, as pessoas se deixam dominar pelo egoísmo e prepotência, gerando problemas no relacionamento e, principalmente, a si próprios. Isto vem acontecendo há séculos sem que as pessoas percebam sua responsabilidade no seu próprio sofrimento.
O silêncio imperou por algum tempo, enquanto eles se olhavam nos olhos, com profundidade. Os olhos dela reflitiram lágrimas que não chegaram a rolar. Ele quebrou o silêncio:
-Qual a causa dessas lágrimas que você tenta impedir de rolar?
-Sofri muito nesses anos todos, acreditando que tinha perdido uma coisa muito importante. Estou verificando, agora, que essa perda foi muito maior e me alegro não ter percebido isso antes, o que, com certeza, aumentaria muito o sofrimento. Por outro lado, sinto uma emoção tremenda, agora, desfrutando Ter te encontrado, com qualidade muito maior do que o esperado. Estas lágrimas são de gratidão ao mistério que, depois de me ter causado tanto sofrimento, me recompensa com tamanho valor!
- Olha o exagero! Não se iluda pois, como já te disse, isso poderá gerar grande frustração.
- Não é possível. Não estou me referindo ao que possa esperar de você e, sim, ao que estou vendo e sentindo. Passei todos esses anos me decepcionando com as pessoas e, agora, me encontro aqui, descobrindo que alguém pensa como eu, tem os mesmos valores, demonstrando uma dignidade invejável. Por que não podem todas as pessoas ser assim? – Disse ela.
- Acredito que os valores são relativos. A grandeza relaciona os extremos. A felicidade é muito maior quando partimos de um grande sofrimento, ao invés de sairmos de um estado apático. Alguém que não está infeliz, sentirá muito menos felicidade que outro que, por motivo igual, tenha conseguido essa felicidade, quando estava sofrendo muito. Por outro lado, a infelicidade nos proporciona a reflexão, a descoberta, o conhecimento de muitas coisas que, sem ela, não nos preocuparia, impedindo que as descobríssemos e compreendêssemos. Portanto, por mais que deploremos a infelicidade, ela tem sua utilidade. O que me questiono é: por que isso tem que ser assim? Por que não podemos descobrir, aprender e compreender, curtindo o máximo de felicidade, sem a necessidade do sofrimento? Não consigo compreender isso! Eu passei por uma experiência que se revela assustadora. No último relacionamento, que foi maravilhoso, uma coisa fantástica; houve uma interrupção que, tudo indicava seria definitiva. Sofri terrivelmente, uma dor que só posso desejar a grandes inimigos. Nunca tive nenhum que considerasse merecer tanto. Bom, aconteceu a reconciliação, depois de um grande aprendizado. A continuidade do relacionamento, com grande consciência de seu valor e dos riscos que corria, não foi suficiente para que eu evitasse motivos que pudessem prejudicá-lo. Com ela, aconteceu o mesmo. O relacionamento chegou, novamente, ao final, causando, em mim, terrível sofrimento, novamente. Não compreendo o porquê disso ter acontecido. No entanto, aconteceu, a meu ver, por motivos insignificantes, se comparados à felicidade desfrutada.
- Você acredita que, se tivesse agido diferentemente, teria evitado o fim do relacionamento?
- No começo acreditei que sim. Agora, acredito, fortemente, que não. Não tenho dúvidas de que cometi erros, no entanto, me parecem insignificantes no conjunto das coisas que ocasionaram a separação. Depois de exaustivas análises e autocríticas contundentes, verifiquei que eu não mudara significativamente, enquanto, ela, se transformou em outra pessoa, principalmente, em relação a mim.
- Como assim? Que mudanças você identificou em si e nela?
- Eu, que sempre cuidei para que minhas críticas não fossem incômodas, relaxei um pouco nesses cuidados. Não fui capaz de perceber que alguma coisa não ia bem e, por fim, não me esforcei o suficiente para impedir que algumas coisas se tornassem rotineiras, o que sempre considerei terrível para qualquer relacionamento. No entanto, as críticas que lhe fiz, ao que tudo indica, eram procedentes, ela deu motivos para que elas acontecessem. Ela escondeu que não estava satisfeita, dificultando que eu identificasse sua insatisfação. Quanto à rotina, ela também não manifestou descontentamento e nem sugeriu que algo deveria ter sido feito.
- Você está acusando-a de ser responsável pelos erros que você cometeu?
- Não. As constatações mostraram que ela deu motivos para as críticas, que escondeu suas insatisfações, inclusive no que se refere à rotina de vida. Meu erro foi não Ter tido a necessária sensibilidade para identificar descontentamentos e ter exagerado nas críticas.
- E ela, mudou em que?
- Ela sempre se mostrou corajosa no enfrentamento de dificuldades. Foi humilde, reconhecendo não saber muita coisa e buscando aproveitar as oportunidades de aprendizado. Foi extremamente solidária, em todas as situações. De repente, agiu com extrema covardia ao fugir de discutir os motivos que a levaram a abandonar o relacionamento. Foi de um egoísmo extremado ao desconsiderar meu sofrimento, desprezando-me totalmente, procurando eximir-se de culpa, acusando-me de ser o único causador de sua insatisfação. Por fim, foi de uma prepotência imensa, acreditando que seria capaz de mudar o rumo de sua vida, considerando ser suficientemente capaz para consegui-lo. Me ofereci, insistentemente, para ajudá-la, no que estivesse a meu alcance, mostrando-lhe que as dificuldades de conseguir sucesso no atendimento de nossos desejos. As dificuldades que a vida nos coloca, defendendo o direito que qualquer um tem de pretender buscar mudanças que julgue necessárias na sua vida. Ela recusou, desprezando totalmente minha oferta, desconsiderando minha capacidade de ajudá-la.
- Olha: o que você está acusando como defeito; o fato de ela ter recusado sua ajuda, me parece ser uma demonstração de coerência. Ao verificar que o relacionamento ficara impossível, assumiu a responsabilidade pelos seus atos, dispondo-se a arcar com as conseqüências. Acho uma atitude altruísta , assumindo totalmente a responsabilidade, evitando te explorar.
- Olhando por essa óptica, você tem razão. O problema é que sempre conversamos a respeito da possibilidade de que o relacionamento chegasse ao fim, principalmente pelo surgimento de um novo amor, tanto pra ela como pra mim. Tínhamos plena consciência de que, além do amor que nos unia, nossa amizade, companheirismo, cumplicidade e solidariedade; eram uma coisa excepcional, muito rara entre casais. Considerávamos que, o relacionamento amoroso poderia terminar, no entanto, o resto, continuaria, permitindo-nos apoio e amparo, tão difíceis de se conseguir num mundo tão egoista, de tanta falsidade.
- Bom. Isso é muito comum nos casais, enquanto o relacionamento vai bem. Promessas de continuar amigos depois de uma eventual separação. No entanto, a realidade tem demonstrado que, isso, é praticamente impossível. Na maioria da vezes, o que sobra são acusações e ressentimentos de ambas as partes. – disse ela.
- Concordo. Isso é absolutamente normal, em casais normais. Porém, o nosso foi um relacionamento excepcional, entre duas pessoas totalmente diferentes da maioria, propiciando um relacionamento sem comparações no comum. Desfrutávamos de intimidade, cumplicidade, compreensão, confiança e conseqüente liberdade. Era uma relação totalmente aberta à discussão, propiciando que qualquer assunto fosse abordado, sem restrições sem medos.
- Aparentemente, tudo isso deixou de ser importante, pra ela, que preferiu tentar algo diferente. Foi honesta ao terminar com o compromisso, assumindo a liberdade e, a conseqüente responsabilidade pelas conseqüências de sua opção. Ela te libertou, te eximindo de qualquer ônus pelo que ela viesse a sofrer. Manteve a coerência ao recusar qualquer ajuda sua. Me parece que a atitude dela foi coerente e louvável
- Esse é o problema, pela óptica que você está analisando, sua conclusão é perfeita. Ela teria sido honesta, digna, coerente e totalmente responsável. Atitudes mais que louváveis. No entanto, considerando a dificuldade de conseguir amigos sinceros, leais, solidários e humildes; o que levaria alguém a dispensar alguém que lhe propiciasse tudo isso?
- É...Pra abrir mão disso, que é uma verdadeira raridade, é preciso ter um motivo muito forte! A verdadeira amizade, implica em companheirismo, confiança, cumplicidade e total solidariedade. Confesso que não estou conseguindo identificar algum motivo que pudesse levar uma pessoa a dispensar um amigo assim. Um motivo que me parece justificável para dispensar uma amizade assim, é o amor por alguém que não admita a continuidade dessa amizade, colocando o seu final como condição para o relacionamento amoroso.
- Essa poderia ser uma justificativa. No entanto, o que se pode esperar de um relacionamento que começa com desconfiança, considerando que um amigo seja um rival? – disse eu.
- O amor, principalmente na fase da paixão, onde a racionalidade tem grande dificuldade de ação; é possível que o apaixonado cometa verdadeiras loucuras, inclusive essa de abrir mão de uma verdadeira amizade. Não acredito que um relacionamento com esse tipo de restrição, possa ser duradouro. No entanto, a loucura da paixão, é capaz de tudo, até das coisas mais absurdas.
- Concordo. No entanto, não é esse o caso. Não existiu nenhuma paixão nesse caso.
- Que explicação você tem para o acontecido?
- Nenhuma! O resultado foi uma inversão de valores, onde a covardia substituiu a coragem, a prepotência tomou o lugar da humildade e o egoísmo expulsou a solidariedade. Tudo isso está evidente em relação a mim. Com relação aos outros, isso não é tão evidente, talvez nem tenha acontecido. Pra mim, é um verdadeiro mistério!
- O que ela alegou como motivo para a separação?
- Que eu andava implicando muito com as visitas que ela fazia à mãe e do tempo que ela gastava nisso. Que eu tinha pressa de vir para casa e que, chegando, me dedicava a assistir televisão. Que eu implicara com a festa de aniversário que ela fez para o irmão.
- Por que você implicava com as visitas que ela fazia à mãe?
- Porque a mãe dela é uma mulher ignorante, prepotente, que só sabe falar do dia a dia e recordar o passado e reclamar do marido e dos filhos. É péssima educadora para os filhos, o que causou sérias deformações na personalidade deles. Age com grande irresponsabilidade, gerando vários problemas, principalmente, econômicos. Em fim, é uma pessoa que tem muito pouco de bom a oferecer e, por outro lado, é um péssimo exemplo.
- Mas é mãe dela. E isso é muito forte em muitas pessoas.
- Tenho plena consciência disso. Sempre abordamos os problemas dela, o quanto ela gerava de problemas e quanto isso era pernicioso. No entanto, há o lado emocional, que independe da racionalidade. Sempre aleguei que tive muitos amigos com personalidade que eu detestava, no entanto, não conseguia deixar de gostar deles. Porém, sempre procurei separar as coisas, não permitindo que a emoção interferisse no julgamento de seus atos e de minha ação de acordo com a situação. Nunca fui conivente com seus erros e sempre procurei fazer o possível para que se corrigissem. Porém, seus erros, não impediam que gostasse deles e desfrutasse de sua companhia. Nunca criei impecilhos para que ela visitasse a mãe e convivesse com ela. O que criticava era a freqüência com que o fazia e o tempo gasto nisso. Sempre me pareceu estranho que ela gastasse tanto tempo conversando com alguém que tinha tão pouco assunto, cuja conversa era repetitiva, sem novidades, numa vida rotineira.
- Bom, se a conversa com a mãe não tinha nada de construtivo, assistir televisão, não é muito melhor que isso.
- Concordo. No entanto, a televisão não era uma obsessão. Ela se interessava mais por ela do que eu. Nós sempre conversamos muito, abordando os mais variados assuntos, questionando, analisando, em fim, aprendendo um com o outro. Sempre me empenhei para que ela progredisse culturalmente e, sem forçar, incentivava-a a ler e estudar. Ela gostava de aprender embora, tivesse ojeriza pelo estudo. Em resumo: o problema não eram as visitas à mãe e, sim, o exagero.
- Era um sentimento de que algo andava errado, não acha?
- É verdade. Mas não tive capacidade para perceber o sintoma. Ela estava dando grande preferência à mãe, em detrimento de outras pessoas, inclusive eu. Sempre acusei que a mãe tinha uma influência negativa sobre ela. Não que a mãe se esforçasse para isso, pois não acredito que ela tenha capacidade para agir nesse sentido conscientemente. No entanto, essa influência sempre aconteceu e acusei-a inúmeras vezes. É quase certo que, quando ela comentou com a mãe que estava insatisfeita no relacionamento; ela deve tê-la incentivado a abandoná-lo.
- Você falou numa festa de aniversário...
- Ela quis fazer uma festa de aniversário para um irmão, menino de treze anos, que morava conosco e me ajudava nos trabalhos da fazenda, principalmente tirando leite. Ele tem uma personalidade bem deformada, comete muitos erros e é rebelde em corrigi-los, principalmente, por não admitir que os comete. Quando ela falou na pretenção de oferecer-lhe a festa, argumentei que deveríamos aproveitar a oportunidade para mostrar-lhe que na vida tudo tem um preço; que se ele não se empenhava em corrigir seus erros, perdia o direito a recompensas. Sugeri que, como se tratava de um menino e que não tinha sentido exagerar em punições, que lhe dissesse que poderia oferecer-lhe uma festa para que ele pudesse convidar quem quisesse, mas, devido a seu comportamento, só teria um bolinho, para que o aniversário não passasse em branco. Ela concordou. Na Sexta-feira, véspera do aniversário, veio uma amiga dela para fazer o bolo. Passou o dia todo, ajudada por ela e pela mãe, e fizeram um bolo exageradamente grande, com grande desperdício de massa. No final do dia, quando fomos levar a amiga e a mãe embora; na volta, comentei que ela não havia feito o que combináramos, fazendo um bolo exagerado ao invés de um bolo simples, só para a família e alguns amigos mais chegados. Ela alegou que a amiga fora a responsável pelo exagero. Que ela não pretendia chamá-la, mas que a amiga se sentira ofendida ao Ter sua ajuda desprezada. Que ela aceitara a ajuda para evitar problemas. Que não tivera coragem de impedir que ela fizesse o bolo a sua maneira, resultando num tamanho exagerado. Em fim, ela concordou que houvera exagero. No dia do aniversário, a amiga e a mãe dela voltaram logo pela manhã. Passaram o dia preparando comida, ajudadas por outra amiga que chegou por acaso. Se o tamanho do bolo fora exagerado, a quantidade de comida não ficou a dever nada. Uma quantidade exagerada de bolo e comida, para um número reduzido de convidados. Fiquei revoltado com aquilo, afinal, conversáramos na noite anterior sobre o exagero do bolo e, agora, reincidia no erro, exagerando na comida. Não falei nada, mas ficou clara minha revolta. Não nos falamos mais até na manhã de Terça-feira, quando ela me chamou para conversarmos. Ela acusou a situação em que estávamos, sem conversar desde o Sábado, que era uma coisa muito ruim e que, talvez, o melhor seria a separação. Percebi, imediatamente, que era realmente uma situação idiota. Se havia um problema, o melhor era conversarmos para tentar resolvê-lo. O silêncio e a minha revolta, não ajudariam em nada. Disse-lhe que reconhecia o erro, mas que, no entanto, o problema era muito pequeno, que já havíamos nos defrontado com problemas muito maiores e que, sempre, os havíamos resolvido a contento. Pedi-lhe que procurasse se acalmar, que eu precisava ir à cidade buscar uma peça do trator e que, na volta, ou quando ela se sentisse com disposição, voltaríamos a conversar e resolveríamos o problema com facilidade. Fui para a cidade e, quando voltei, encontrei um bilhete dela dizendo que decidira ir embora e que estaria na casa da mãe. Fiquei atônito, não encontrava motivo para uma decisão tão drástica.
- Você foi procurá-la?
- Não. Considerei que precisava dar-lhe um tempo para que se acalmasse e pudesse refletir. Fui no dia seguinte, devolver a camionete do patrão de sua mãe, procurei-a e disse-lhe que o carro, a moto, tudo que havia em casa, inclusive eu, estávamos a sua disposição, para que ela pudesse usar quando achasse conveniente. Fiquei sabendo que, no Sábado, ela iria com a família e alguns vizinhos à Aparecida do Norte. Fui na casa da patroa da mãe dela e lhe pedi que comunica-se a ela que eu gostaria de conversar, como amigo, tentando buscar a melhor solução para nós dois. Ela não apareceu. Na Segunda-feira, foi com a patroa da mãe para São Paulo, fazer faxina na casa da mulher. Quando voltou, na Quarta-feira, de ônibus; chegou na cidade e procurou casa para alugar e trabalho, que uma tia se propôs a arranjar. No final da tarde, encontrou um ex-namorado, com quem tivera um relacionamento antes de me conhecer, com quem tivera muitos problemas e, depois de uma conversa aceitou ir morar com ele, que lhe prometera trabalho, ajudando-o em seus negócios. Passou uns dois meses na companhia dele e, alegando que não era possível continuar, porque ele estava sendo um péssimo companheiro; voltou para a casa da mãe. Enquanto ela estava com ele, liguei-lhe várias vezes, alertando-a do risco que estava correndo e prontificando-me a ajudá-la no que fosse possível. Quando voltou, procurei-a e reiterei meu oferecimento. Depois de alguns dias, ela me propôs que tivéssemos um relacionamento sem compromisso, em que ela continuaria morando com a mãe e, quando tivesse vontade, viria me visitar. Começou a trabalhar como doméstica num sítio vizinho e, de vez em quando, aparecia, conversávamos, fazíamos amor e, quando estávamos juntos, era uma maravilha. No entanto, ela continuou dando muito mais importância a outras pessoas do que a mim. Fez uma festinha de aniversário para outro irmão e não me convidou, embora tivesse convidado vários vizinhos e amigos. Me disse que só fizera um bolinho para que o aniversário não passasse despercebido. No entanto, festejaram e dançaram até a madrugada. A partir de então, ela e a família, começaram a se relacionar com a família de um homem que trabalhava comigo, freqüentando-se assiduamente. Viviam desfrutando a companhia enquanto eu, mesmo declarando minha carência, era deixado de lado, preterido em relação a eles. Verifiquei que ela estava mentindo e escondendo coisas de mim. Disse-lhe que havia percebido que isso estava acontecendo e que, a amizade implica lealdade, sinceridade e que ela estava falhando em relação a isso. Ela não quis admitir que isso fosse verdade, mesmo com tantas evidências e decidi acabar com o relacionamento que estávamos tendo. O principal do relacionamento era a amizade e ela a estava traindo, não considerei razoável que aquilo continuasse daquela maneira. Depois de um tempo, conversei com ela e propus que procurássemos recuperar a amizade, que me era muito importante, que eu sentia falta de Ter alguém como ela para conversar. Que acreditava que isso poderia ser bom para ela também. Concordamos e resolvemos que tentaríamos retomá-la. Ela continuou me desprezando, preferindo a companhia daquela família e seus amigos. Certo dia, ela veio me consultar a respeito de um projeto que tinha para montar um bar, em sociedade com esse amigo com quem estavam se relacionando. Alertei-a dos riscos, principalmente da falta de confiabilidade no homem. Propus-lhe retomar um negócio que ela vinha desenvolvendo quando vivíamos juntos, que era vender utensílios para casa. Era uma coisa que ela conhecia e que propiciava ganhos razoáveis. Ela ficou de pensar. Dias depois, me consultou a respeito do negócio que lhe propusera, de como eu imaginava que poderia funcionar. Disse-lhe que eu providenciaria um carro para fazer as compras em São Paulo, arcaria com as despesas iniciais, que trabalharíamos juntos e que dividiríamos o lucro. Ela ficou de pensar e não me procurou.
- Tudo indica que ela está tendo uma rejeição muito forte por você. O que poderia Ter causado isso?
- Não faço a menor idéia. Ela já teve tempo e experiência para verificar que não tem muitas alternativas de sucesso em qualquer empreendimento que pretenda, pois as dificuldades são grandes e ela não tem muito conhecimento e nem dinheiro. Mesmo assim, despreza minha amizade, minha capacidade e meu conhecimento, que não lhe custariam nada, preferindo se relacionar com gente ignorante, que vive se iludindo e iludindo aos outros. Me é absolutamente incompreensível.
- O detalhe fundamental nessa história, é o desprezo que ela demonstra pela amizade incondicional que você lhe oferece. Te conhecendo, com ela deve conhecer, e sabendo da raridade de uma amizade assim; parece absurdo que alguém despreze uma coisa dessas! Se o oferecimento da amizade estivesse condicionada a um relacionamento amoroso ou à convivência, isso poderia ser tão penoso que justificaria o abrir mão dessa amizade. No entanto, podendo tê-la, sem custo nenhum, é totalmente estranho! O interessante é que, se não se atentar para esse detalhe; o comportamento é absolutamente justificável, coerente e dígno. – disse eka.
- O pior é que é verdade. Omitindo-se o detalhe do desprezo da amizade incondicional, o comportamento dela é irrepreensível.
- Você ainda a ama?
- Acho que sim. É difícil afirmar qualquer coisa em relação a emoção nesta situação. É uma mistura de amor, amor próprio ferido, frustração, sentimento de impotência, em fim, uma situação muito confusa. Essa mulher que está agindo, me causa náuseas, não me merece respeito nenhum, muito pelo contrário. No entanto, não posso deixar de considerar que o culpado por tudo isso, seja o mistério e que, todos nós, não passemos de vítimas. Se, eventualmente, ela voltasse a ser o que foi, acho difícil que eu não a retomasse. No entanto, acho isso muito difícil, já se passou muito tempo e, provavelmente, ela não se sentiria moralmente capas de retomar a relação.
- E entre nós, você vê alguma possibilidade de um relacionamento? De que tipo?
- Já te disse da confusão nos meus sentimentos. A tua chegada foi como um raio de luz nas trevas. Ainda me sinto atordoado pelo reencontro e não sei definir o que estou sentindo a teu respeito. Estou muito feliz! E acho que um relacionamento com você, é um milagre que eu nem sonhava pudesse acontecer. Como acredito na influência do mistério na vida, esperava que algo acontecesse, inclusive que pudesse me apaixonar de novo. Mas confesso que tinha muito poucas esperanças nisso. De repente, você aparece, linda, sedutora, apaixonada e demonstrando inteligência, sensibilidade e conhecimento; é muito mais do que poderia imaginar. Em princípio, me atiraria de cabeça numa relação com você, sem qualquer restrição. No entanto, a experiência me tem mostrado o quanto nossas vidas independem de nós. Da influência do mistério, capaz de provocar as coisas mais absurdas. Por outro lado, temos muito que saber um do outro, ainda. Precisamos de tempo para isso. Por fim, não sei quais tuas intenções e disponibilidade. Sugiro que aproveitemos o tempo da melhor maneira possível e deixemos que ele nos mostre a decisão a tomar. Como é que você está de tempo?
- Bom, hoje é Quinta-feira, estou livre até na Segunda. O que você sugere?
- Que fique aqui comigo, se não se importar com a simplicidade da casa e do mobiliário. Aqui teremos tranqüilidade e isolamento para aproveitarmos o tempo, conversando, reconhecendo-nos e amando-nos. Acho que no Domingo, poderemos Ter uma posição razoável a respeito do que for melhor pra nós. Que você acha?
- Concordo. O que você faz aqui?
- Tomo conta da fazenda. Como só tem umas cabeças de gado, o trabalho é mínimo; o que nos permitirá usar tempo integral para nós, nestes dias. E você, o que anda fazendo?
- Estou fazendo mestrado. Estava lecionando numa faculdade, mas, resolvi pedir licença para me dedicar ao mestrado. Consegui uma bolsa, que é suficiente para as despesas.
- Pra deixar de lecionar, é porque deve estar se dedicando intensivamente ao mestrado. É isso?
- Não. Foi falta de ânimo. Nos últimos anos, me dediquei intensivamente a lecionar. Dei aulas em três faculdades, pela manhã, tarde e noite. Usei isso como uma maneira de fugir à solidão. Comecei a fazer o mestrado e senti a impossibilidade de compatibilizar todas as aulas com os trabalhos da tese. Pensei em deixar algumas das aulas, mas, decidi abandonar todas e me dedicar só ao mestrado.
- Qual a tese do seu trabalho?
- Educação profissional.
- Se você quiser, acho que posso te ajudar em alguma coisa. Fiz parte da comissão do ministério da educação, em São Paulo, que analisou o projeto para modificação do ensino profissional de nível médio.
- Que legal! Claro que quero! Pra dizer a verdade, estou meio perdida. Escolhi esse tema por achar a qualificação profissional muito importante para atender a necessidade dos trabalhadores e das empresas. No entanto, tenho tido dificuldade em definir a linha do projeto. Minha orientadora de tese, também não tem conseguido me ajudar muito. O que você puder me ajudar, será muito bem vindo. Agora é sua vez. O que você tem feito até chegar aqui?
- Trabalhei em engenharia até 1996, mais ou menos. Fui conselheiro do CREA-SP durante três anos e participei de política sindical e estudantil por vários anos. O casamento já estava deteriorado há muitos anos. Desde o nosso relacionamento, a mulher não se conformou e fez de tudo para se vingar. Ao invés de me trair maritalmente, partiu para me prejudicar financeiramente. Foram anos muito difíceis, de muita falsidade. Me apaixonei por outra mulher e a situação ficou pior ainda, até que nos separamos, de corpos. Continuamos vivendo na mesma casa, mas o casamento havia acabado. Eu estava de saco cheio com tudo e não agüentava mais as maracutais econômicas que envolviam as obras, financiamentos, burocracia, cobrança de qualidade e eficiência sem que se oferecesse condições de melhoria aos operários. Chegou uma hora que não dava mais. Aproveitei que havia terminado os dois últimos prédios que fiz e resolvi, tentar alguma coisa diferente. Tentei montar uma empresa para manutenção de luminosos, mas não deu certo. Apareceu a oportunidade de trabalhar com recuperação de drogados, Me associei a um amigo, que tinha um filho dependente de drogas e montamos uma clínica, num sítio de um amigo nosso, aqui atras da fazenda. Passei quatro anos ali, mas infelizmente foi um fracasso econômico. Eu gostei de trabalhar naquilo, no entanto, não conseguimos sobreviver financeiramente. Foi nessa época que conheci a Mari. Ela tinha dezessete anos e eu quarenta e nove. Diante do fracasso da clínica, fui tentar outras coisas e a Mari foi comigo. Fabricamos queijos e doces em Mogi das Cruzes, tentamos um empresa de limpeza em Ribeirão Preto e continuamos fracassando. Decidimos recomeçar tudo de novo. Ela ficou um tempo na casa da irmã e eu fui pra São Paulo. Comprei uma perua e passei a destribuir folhetos de propaganda. Ela foi se reunir comigo e trabalhamos juntos. Depois de algum tempo, ela continuou com a distribuição de folhetos e eu fui trabalhar como socorrista, para companhias de seguros, socorrendo carros com defeitos nas ruas. Surgiu uma oportunidade de trabalho em Campo Grande e fomos pra lá. Não deu certo e voltamos pra cá. A irmã dela morava aqui nesta fazenda, onde o marido era caseiro. Comprei um trator e comecei a trabalhar na extração de madeira, aqui perto. Até que surgiu a oportunidade de trabalhar aqui. Mudamos pra cá e, estou aqui até agora.
- Que mudança heim! Engenheiro, terapêuta, doceiro, entregador de folhetos de propaganda, mecânico...Fez mais alguma coisa?
- Pratiquei paraquedismo e vôo livre.
- E eu que achava que tinha feito muita coisa! Perto de você, sinto que fiquei parada esse tempo todo. Você acha que valeu a pena Ter abandonado a engenharia, optando por aventurar-se em outras atividades?
- Economicamente, não. Porém, se considerada a experiência e o conhecimento da vida, principalmente, do ser humano; considero que a opção foi vantajosa. Portanto, se valeu a pena ou não, o julgamento depende dos valores de quem julga.
- O conhecimento é extremamente importante, no entanto, é preciso sobreviver e, isso, exige pagamento em dinheiro, que é preciso ser ganho. Se não se consegue sobreviver, o conhecimento desaparecerá conosco.
- Não, obrigatoriamente. Tenho escrito e conversado muito. Se eu morrer hoje, as pessoas que me ouviram e as que lerem o que escrevi, poderão tirar proveito disso. O que é altamente questionável, é se isso vai despertar interesse em alguém. Se terá aproveitamento prático. Até aqui, não tem despertado maior interesse. O ser humano é dominado por uma inércia incrível. Tem enorme dificuldade de enfrentar o desconhecido. É uma mistura de medo, comodismo, preguiça mental; que o leva a aceitar coisas prontas, que satisfaçam seus interesses imediatos; evitando questionamentos. Os que se propõe a aprender, na maioria dos casos, se contentam em receber informações, sem questionar sua validade. Conhecimento sem compreensão é quase tão inútil quanto não tê-lo. É o caso do alfabetizado que sabe ler e escrever; no entanto, não é capaz de interpretar o que lê, nem consegue expressar de maneira inteligível o que pretende transmitir.
Ela ficou me olhando por alguns instantes, com uma expressão que misturava admiração e dúvida. Franziu o queixo e falou:
- Entendi errado ou você está questionando todo o sistema educacional, acusando-o de estar totalmente errado?
- O que você entende por sistema educacional? – Ela ergueu as sombrancelhas e gesticulou com as mãos, como se minha pergunta tivesse uma resposta óbvia.
- O sistema educacional como um todo, desde a pré-escola até a universidade. Você acha que tudo isso está errado, ou identifica algum ponto em especial?
- O sistema educacional a que me refiro, é mais abrangente do que esse que você identificou. Ele começa nos pais, abrange a família como um todo, passa pela igreja, pela comunidade e chega ao sistema educacional institucional. Considero que o erro se distribui por todas essas esferas. Quando o indivíduo chega na escola, já vem com uma grande carga de conhecimentos que, infelizmente, já causaram grandes deformações. A escola, paralelamente ao conhecimento que oferece, propicia mais deformações ao indivíduo.
- Concordo com você, no que diz respeito a abrangência do sistema educacional, incluindo a família, igreja e comunidade. Também concordo com que a criança chega na escola com várias deformações; continuo concordando em que, na escola, essas deformações são ampliadas. Porém, não consigo identificar, com clareza, essas deformações e suas causas. Percebo que isso é verdade, mas nunca me dediquei a analisar essa questão. Como parece que você já questionou bastante isso, me ajuda a entender, a compreender. – disse ela.
- Normalmente, os pais se julgam capazes de educar os filhos, independente do seu nível de conhecimento. Eles vivem da maneira que lhes parece certa, de acordo com o que acreditam ser o melhor. É comum que esses pais estejam recheados de tabus, preconceitos e demais deformações. Grande parte dessa carga é transferida para os filhos, consciente ou inconscientemente. – Ela interrompeu e questionou:
- Mas, você acha que poderia ser diferente?
- Esse é o problema. Como alguém pode transmitir como certo, algo que considera errado? Acreditando estar certo, transmite o errado, como se estivesse fazendo a coisa mais certa do mundo. Indivíduos educados por pessoas cheias de erros, difiicilmente resultarão em indivíduos acertados. Pais dogmáticos, dificultarão terrivelmente que seus filhos possam ser racionais, questionadores, em fim, analíticos; capazes de analisar, filtrar e, aceitar ou rejeitar a informação com base na compreensão. A transmissão de erros com rótulo de acertos é terrivelmente danosa; no entanto, o problema não se resume a isso; é comum que os educadores transmitam informações nas quais não acreditam, defendendo-as com vigor. O problema é que suas ações demonstram claramente o conflito entre o que dizem e o que fazem. Outro problema, é o conceito de certo e errado, para uma mesma coisa, dependendo da situação e do interesse momentâneo. Tudo isso vai gerando na cabeça do educando, as deformações existentes na do educador. – Fiz uma pausa, examinando a fisionomia dela, tentando perceber se estava animada com o que eu dizia ou se demonstrava insatisfação. Parecia uma coruja, com os olhos fixos em mim, demonstrando o maior interesse. Perguntei sua opinião sobre o que eu dissera até ali.
- Estou um tanto abismada. Já pensei muito sobre o tema de educação, de seus defeitos e sobre o que poderia ser melhorado. No entanto, minhas análises sempre se circunscreveram ao ambiente escolar. Nunca tinha dado atenção ao período anterior a ele. O que você está dizendo me é totalmente inédito, como deve ser a muita gente. O incrível, é que isso faz parte da vida de todos nós, todos passamos por isso, fomos influenciados e não nos damos conta, mesmo quando nos debruçamos sobre o problema. É como Ter descoberto uma pinta na ponta do nariz, que sempre existiu e nunca lhe demos atenção. O que você colocou é tão evidente, claro como um dia de sol, no entanto, nunca lhe dei a menor importância, nunca me passou pela cabeça que a educação familiar, religiosa e a influência da comunidade, pudessem ser a origem da maioria dos males que provocam deformações nas pessoas. Estou me sentindo envergonhada por não Ter sido capaz de perceber isso!
- Por falar em perceber, você percebeu que já é tarde e que não jantamos?
Enquanto eu preparava um lanche para nós, continuamos a conversa, só que, agora, a conversa era a respeito de sensualidade, tesão, coisas assim. A sugestão para que falássemos sobre assuntos mais amenos foi minha. Ela escolheu o tema e começou perguntando:
- O que te excita numa mulher?
- O que me chama a atenção, em primeiro lugar, são os seios e a bunda. No entanto, o importante mesmo é o conjunto. É gostoso e provoca alguma excitação, olhar para uma mulher bonita e, principalmente, sensual. No entanto, num relacionamento, a emoção é a maior responsável pela excitação. Sem uma boa emoção, a relação acaba no gozo e, por mais bonita que seja a mulher, dá vontade se sair correndo, depois que o tesão foi saciado. E você, o que acha?
- Penso como você, acho gostoso olhar um homem bonito. Admirar a beleza é muito bom, prazeroso. Mulheres bonitas também me chamam a atenção e sinto prazer em olha-las. No entanto, só a visão, não me excita. A grande excitação, mesmo, está na emoção.
- Se existir amor, todo o resto é acessório. No entanto, os acessórios tem sua importância. A coisa que me dá o maior prazer, é sentir o prazer da companheira. O prazer dela me leva a loucura. Outra coisa importante é a intimidade, a cumplicidade, a total liberdade, pedindo, gemendo, gritando, sussurrando. Se alguma coisa pode aumentar o prazer, por que despreza-la? Numa relação amorosa, todos os sentidos participam ativamente e todos eles contribuem para propiciar o máximo prazer. Pra mim, o tato é o pricnipal. Sentir o corpo da mulher na ponta dos dedos e nas palmas das mãos é extremamente prazeroso, além do contato de todo o corpo se apertando, esbarrando, tocando de leve no outro. Alguns odores são muito excitantes. No que diz respeito ao paladar, considero que ele é insignificante na relação, no entanto, a língua e os lábios, beijando e lambendo, propiciam grande excitação. A audição nos possibilita perceber os sons: falas, gemidos, gritos. Sussurros. Qual a sua opinião?
- Continuo concordando com você em gênero, número e grau. Pra não ficar só concordando com você, deixa eu falar sobre algumas coisas que gosto. Gosto de ver o homem se manipulando, se masturbando. Gosto de vê-lo gozando em cima de mim, principalmente sobre os seios. Sinto muito tesão nos seios, sendo massageados e, principalmente, beijados e chupados. No auge do tesão, mordidinhas nos mamilos provocam um prazer tremendo. Beijo na boca, língua na língua; provoca grande excitação. Pode não ser a maior, porém, é a mais gostosa. Beijar, lamber e chupar propiciam grande prazer. O tato é fundamental, corpo no corpo, sentir o corpo nas mãos, nos dedos, é bom demais. O que você acha disso?
- Não é só você que concorda comigo, eu também concordo totalmente com você. Gosto de calcinhas de algodão, não sou fâ de tecidos sintéticos para essas peças. Gosto de saia rodada e blusa, sem calcinha e sem soutien, Pra abraçar e beijar, passando a mão. Adoro ver a mulher se manipular, deslizar as mãos por seu corpo, se masturbar. A emoçao é responsável por noventa por cento da excitação, no entanto, os outros detalhes, podem propiciar os restantes dez por cento, tornando a relação cem por cento prazerosa.
Ela se levantou, me deu um beijo e entrou no quarto. Voltou instantes depois, vestindo uma saia rodada de tecido muito fino e uma blusa abotoada na frente. Parou a dois passos de mim e disse:
- No nosso relacionamento, não era sexo que fazíamos, era amor. Era só papai e mamãe, no banco traseiro do fusca, mas era demais. Eu sentia um prazer infinito, um tesão louco e sentia que você sentia o mesmo. Portanto, isso confirma que a emoção é a maior causadora do tesão, de um prazer infinito. No entanto, um dia você comentou sobre saias folgadas e calcinhas de algodão. Isso nunca mais saiu da mente e me acompanhou por todos esses anos. Nunca usei nenhuma peça com essas características com outro homem. Por outro lado, sempre usei isso para me masturbar.
Abracei-a, beijei-a, passando as mãos por suas pernas e bunda, sentindo seus seios contra meu peito.


22/01
Na Sexta-feira pela manhã, eu preparava o café, quando ela apareceu na porta da cozinha espreguiçando os braços e bocejando. Perguntei-lhe:
- Bom dia! Dormiu bem?
- Estou me sentindo no paraíso! Deixa eu tomar um banho, pra me certificar de que não estou sonhando. Depois te conto como estou me sentindo. – Dirigiu-se ao banheiro e depois do banho nos sentamos no chão pra tomar café. Ela tomou um gole, acendeu um cigarro e ficou me olhando nos olhos, um olhar gostoso mas indefinido, sem dizer nada. Falei primeiro:
- Me conta; o que está passando nessa cabeça?
- É uma espécie de perplexidade. Estou te olhando e me perguntando se você existe mesmo. Quando acordei, pensei que ainda estava sonhando, não reconheci o quarto de imediato, mas me senti maravilhosamente bem. Lembrei que estava aqui, com você. Esfreguei os olhos pra ver se não estava sonhando, ainda. Me diz uma coisa: o que é verdade e o que é interpretação, em você?
- Você vai acreditar na minha resposta? – Perguntei sorrindo.
- Pergunta besta, né? O problema é que é difícil acreditar que alguém assim existe. Por isso a dúvida. Você pode, até, interpretar alguma coisa, até, bastante. No entanto, não acredito que tenha a intenção de fazê-lo. É que, você sabe como é, o ser humano tem a tendência pra confeiteiro: procura enfeitar tudo!
- Isso é algo que você vai Ter que verificar, conferir pessoalmente, depois de analisar se o que digo é sincero, verdadeiro ou simples interpretação, com objetivo de iludir, demonstrando a mais desavergonhada hipocrisia.
- O que levaria alguém a abandonar uma pessoa como você? Pelo que você disse, duas mulheres te deixaram. Por que?
- Porque verificaram que eu não era bom pra elas. Que, por algum motivo, a convivência comigo se tornou insuportável.
- É isso que me causa dúvida, que você possa estar escondendo algo na sua personalidade que cause essa rejeição. O que está escondido, ai dentro de você, que não me mostrou, ainda?
- Tem muita coisa que você ainda não conhece, afinal, faz menos de dez horas que nos reencontramos. Não passamos por nenhum problema, portanto, todas as reações possíveis a eles, não tiveram como se manifestar.
- Mas você parece bastante auto-crítico. Que defeitos identifica, em você, que criam problemas de relacionamento?
- Reconheço vários, no entanto, acredito que o maior seja minha racionalidade, os questionamentos, as análises e conseqüentes críticas.
- Como isso pode criar problemas de relacionamentos?
- É simples. Essa característica objetiva aprender, compreender, em fim, buscar a verdade. É muito comum nas pessoas, a hipocrisia, a influência de preconceitos, o egoísmo e a prepotência. Quando as pessoas se sentem impossibilitadas de justificar seu comportamento, suas atitudes e os pensamentos que defendem; não querendo ou não podendo aceitar mudanças; tendem a repudiar quem expõe o que consideram suas fraquezas. Nesses casos, eu sou um verdadeiro demônio a ser evitado, já que não posso ser exorcizado.
- Mas, por que você força essa situação, constrangendo as pessoas?
- Não acho que force. Pelo menos, não tenho a intenção de forçar e me esforço para não fazê-lo. Porém, acho que não é necessário forçar. Numa conversa, numa discussão normal; essa situação acaba acontecendo naturalmente. A tendência da maioria é justificar o que defende e acredita. Na conversa, suas justificativas vão sendo invalidadas. Eles tentam outras, que vão sendo derrubadas também; até que, chega o momento em que eles não conseguem mais argumentos em apoio ao que defendem. Percebem isso e, ao invés de admitir que o que defendem pode ser ou estar errado, uma vez que as justificativas usadas tiveram sua validade contestada, continuam defendendo a validade, contra todas as evidências do contrário. Isso demonstra que são prepotentes, teimosos, irracionais. Ninguém pode admitir isso e sentir-se bem consigo mesmo, sabendo que alguém pode provar que ele está errado e que não tem como se defender. Conviver com a pessoa que personifica essa acusação, deve ser muito difícil. Acredito que esse é o maior problema para alguém que conviva comigo num relacionamento mais íntimo.
- Será que isso é tão significativo assim? Veja; tenho uma tia que é religiosa fanática e se considera uma pessoa racional. Embora eu fuja de discutir religião com ela; teima em me provocar a isso. Quando mostro a irracionalidade do que ela defende e ela não consegue invalidar minhas teses; apela, fica brava e, invariavelmente, foge do assunto, encerrando-o. No entanto, embora isso perdure por vários anos, continuamos convivendo sem maiores problemas. É só não discutir religião. As brigas passadas vão para o esquecimento.
- Isso é bastante comum. Tem acontecido comigo muitas vezes. Muitas vezes, a discussão chegou a ser uma verdadeira briga, onde chegaram a acontecer, até, ofensas pessoais, gritos e vários tipos de baixaria. Terminada a discussão, tudo volta ao normal, sem maiores problemas. Essas discussões podem se repetir, com as mesmas pessoas, com os mesmos atritos; sem ocasionar maiores problemas de relacionamento. Quando essas discussões se referem a religião, futebol, política, em fim, ideologias, fanatismo, crenças; as conseqüências geram descontentamento, até, alguma raiva. No entanto, não geram animosidades significativas, que tornem o relacionamento insuportável. O problema é quando isso acontece no que se refere ao íntimo do indivíduo, a sua personalidade.
- Coloca alguns exemplos, vamos ver se consigo entender. O que você diz, me parece lógico, mas está meio confuso na minha cabeça.
- Consideremos um casal. Eles podem torcer, fanaticamente, por times diferentes, discutir isso com freqüência sem que resulte maiores problemas para o relacionamento. O mesmo acontece se eles defenderem ideologias políticas ou religiões diferentes. Esse tipo de divergência possibilita convivências longas, sem maiores problemas; mesmo quando um é fanático, incapaz de qualquer justificativa racional; contra o parceiro que se apoia em justificativas baseadas na racionalidade. Porém, se a questão se referir a características pessoais, principalmente com influência direta no relacionamento; as conseqüências podem ser desastrosas, inviabilizando totalmente a continuidade do relacionamento.
- Dá algum exemplo desses casos.
- Imagine um casal em que o homem passe a gastar dinheiro com coisas que deseja, em detrimento do que seria prioritário. Pode ser que ele opte por trocar o carro, ao invés de reformar o telhado da casa, que ocasiona vazamentos, que prejudicam a vida dos moradores. Pode ser que ele gaste dinheiro com diversão particular em detrimento de necessidades mais urgentes da mulher, como tratamento dentário, necessidade de roupas ou qualquer outra coisa pessoal dela. A mulher questiona e provoca a discussão do assunto. Os argumentos apresentados pelo homem, tentando justificar seu procedimento, vão sendo derrubados pela mulher, até que ele não tenha mais nada a argumentar em sua defesa. No entanto, ele continua agindo da mesma maneira, mesmo que tudo indique que está errado e que deveria corrigir seu comportamento. Toda a vez que a mulher reclamar, ele não terá nada para alegar em sua defesa. Se por um lado ele continua satisfazendo seus desejos, poderá sentir-se mal ao não conseguir justificar seus atos, tendo que admitir estar errado. Muitas pessoas tem enorme dificuldade de admitir que erram. Quando são acusados de erros e não conseguem defender-se, sentem-se muito mal. Neste exemplo, mesmo que a mulher evite reclamar ostensivamente, poderá causar mal estar no homem, pelo simples olhar ou simplesmente pela presença.
- Um cara com um comportamento desses não deve se incomodar muito com o sentimento de culpa. Se a mulher deixar, ele vai continuar agindo da mesma maneira, sem se preocupar muito com ela, nem com a consciência de que está sendo egoista e incoerente. Você acha que esse motivo pode Ter causado que a tua última mulher te abandonasse?
- É uma possibilidade.
- Como?
- Nós sempre tivemos um relacionamento muito aberto, pelo menos da minha parte e, tudo indica que da dela, também. Conversávamos muito, questionando, analisando, os mais variados assuntos; inclusive nossas personalidades, defeitos, qualidades e o próprio relacionamento. Concordávamos que dificilmente um casal se entendia tão bem como nós. Não tínhamos uma obsessão pela racionalidade, compreendíamos que há o mistério influenciando nossas vidas, a força da emoção dificultando e, até impedindo soluções racionais. Em fim, isso nos possibilitava total abertura, ausência de barreiras para abordar o que quer que fosse. Tínhamos consciência da falibilidade humana e não tínhamos problema em admitir nossos erros, usando-os como aprendizado. Veja que são coisas simples, mas raras nas pessoas e, mais ainda, nos relacionamentos. Isso fazia a excepcionalidade do nosso relacionamento. Como você pode perceber, não haveria dificuldade para que qualquer problema fosse abordado. No entanto, ela sentiu uma insatisfação, provavelmente o desejo de realizações, que não aconteciam. Falta de espectativas mais audaciosas ou coisa assim. Como já te contei, os motivos alegados, não me parecem suficientes para determinar o término de um relacionamento que considerávamos excepcional. Reclamações minhas, que podem ser consideradas chatas, até exageradas; mas que, no entanto, eram justificáveis, tinham razão de ser. Acredito que essas reclamações foram o bode expiatório. O motivo real deve, mesmo, Ter sido uma insatisfação. Porém, por algum motivo, ela não acusou que estava insatisfeita, omitiu esse estado ou, nem ela mesma tinha consciência de que isso estava acontecendo. Portanto, não tivemos oportunidade de discutir, analisar a questão, em busca de solução. Ela concluiu, unilateralmente, que o problema estava no relacionamento e, portanto, a solução começava pelo rompimento. – Ela interrompeu e observou:
- É uma coisa muito no ar, não te parece?
- Estou te colocando uma especulação, decorrente das análises que fiz dos dados disponíveis. Ela chegou a admitir a insatisfação, mas não conseguiu especificar com o quê. Acho que você deve se fixar no que estou dizendo, buscando incoerências ou irracionalidades. Caso não as encontre, a análise deve ser considerada válida. Concorda?
- Concordo.
- Bem, ela sentiu uma insatisfação, mas não sabia com o quê. Que ela era causada pelo relacionamento, por isso decidiu acabar com ele. No entanto, como justificar algo que nem ela mesma conhecia? Isso a fez fugir de mim, dos questionamentos que eu faria e que ela não conseguiria argumentar, defender sua opção.
- Será que não poderia te sido o término do amor?
- Pode. No entanto, essa possibilidade fora abordada por nós inúmeras vezes e concordávamos que era uma possibilidade real, bastante provável, principalmente com ela. Que isso não deveria criar problemas na continuidade de nossa amizade. Por outro lado, acho difícil o término de um amor, sem que haja a interferência de outro. Ao que tudo indica, ela não se apaixonou por outro alguém, nesse período. O término do amor não seria motivo suficiente para rompimento tão radical. Ela poderia Ter avisado que isso acontecera e que se abriria para a possibilidade de amar de novo. No tipo de relacionamento que tínhamos, isso não seria problema. Poderíamos, até, continuar vivendo juntos como amigos, com relacionamento sexual ou não. Portanto, não acredito que o motivo principal tenha sido o término do amor. Continuo defendendo que o verdadeiro motivo tenha sido uma insatisfação, que somada às minhas reclamações, podem Ter causado ou feito parecer que o amor teria terminado.
- Por que ela não teria acusado essa insatisfação?
- Provavelmente, por não conseguir identificá-la e, portanto, sentir-se incapaz de justifica-la.
- Mas, como você afirma com muita convicção, vocês tinham total abertura, que permitia, inclusive que ela acusasse a insatisfação, mesmo não identificando a causa. Não é isso?
- É. Isso nos faria tentar buscar os motivos que causavam essa insatisfação, ou admitir que ela não tinha procedência, buscando solucionar o problema. Por exemplo: poderíamos analisar a possibilidade de tentar alguma outra atividade, investir em lazer, sei lá, buscaríamos o que pudesse acabar com o mal estar. Talvez optássemos por uma separação temporária. Não há limite para possibilidades quando se pretende resolver um problema e se está disposto a investir na sua solução. Portanto, ela poderia Ter acusado o problema, no entanto, não o fez. Por que? Não sei. É um mistério.
- Bom, até aqui, o que você está defendendo parece razoável e não vejo outra alternativa. Então, ela sentiu uma insatisfação muito forte, por algum motivo não identificado, não acusou o que estava sentindo; decidindo, unilateralmente, acabar com a relação. O que ela pode Ter imaginado conseguir com isso?
- Não sei. Mas, continuando na especulação, ela deve Ter considerado que era capaz de enfrentar o problema sozinha, na busca de solução. Dispensou a minha ajuda. Aliás, não a dispensou, julgou-me parte do problema, talvez a causa principal. Por isso, optou por se afastar de mim. Claro, que nesse caso, eu teria que ser evitado e não usado como ajuda na busca de solução. Por isso resolveu assumir, sozinha, a busca da solução.
- O que seria a solução?
- Se o problema era insatisfação, a solução seria conseguir satisfação. Porém, não sabendo qual era a insatisfação, como resolver o problema?
- Boa pergunta! O que você acha?
- Ao que tudo indica, não conseguindo identificar o motivo da insatisfação, ela passou a considerar que o motivo era eu.
- O que você pode Ter feito para causar isso?
- Pelo que já te contei, de como era o relacionamento, de como vivíamos; você indicaria algum motivo razoável que me tornasse num mal pra ela?
- Não. Não consigo atinar com nada que pudesse causar repulsa nela, em relação a você. Se você a contrariou com reclamações, por outro lado, respeitou-a, amou-a, apoiou-a, esteve aberto a discutir qualquer coisa, em fim, ofereceu muito mais do que cobrou. Portanto, ela não teria motivos para sentir repulsa por você. Muito pelo contrário, tinha todos os motivos para buscar tua ajuda para resolver qualquer problema que tivesse. Isso nos deixa com poucas possibilidades de compreendermos o que realmente aconteceu na cabeça dela. Acho que o melhor, seria analisarmos que vantagens ela teria em separar-se de você. Você identificaria alguma?
- Se ela tivesse algum relacionamento em vista, onde o cara não aceitasse que mantivesse um relacionamento de amizade comigo e, esse relacionamento fosse mais importante que nossa amizade, teria motivo para me retirar de sua vida. No entanto, ao que tudo indica, isso não aconteceu. Se ela tivesse uma oferta de trabalho e/ou de estudo, em algum lugar onde eu não pudesse acompanha-la, não haveria necessidade de acabar com a amizade e poderia Ter declarado isso, sem o menor problema. Considerando que o amor acontece independente de nossa vontade, admitindo que não me amasse mais e que pretendia se expor a um novo amor; não teria motivos para esconder isso, nem para terminar o relacionamento, enquanto esse amor não acontecesse. É difícil. Não consigo identificar nada significativo, em função dos dados existentes. Você identificaria alguma vantagem que pudesse Ter com a separação?
- Realmente, é difícil. Deixa eu pensar um pouco. – Enquanto ela pensava, fui tratar da criação e, na volta, perguntei se identificara alguma coisa e ela disse que não. Coloquei-lhe uma especulação que me parece razoável:
- Ela pode Ter se sentido diminuída, considerando que minha presença, sempre disponível a ajudá-la, a impedisse de demonstrar sua capacidade. Resolveu mostrar que era capaz, livrando-se do meu apoio, para garantir que o sucesso obtido, seria mérito exclusivamente seu, totalmente independente de mim. Verificando a dificuldade de conseguir isso, não tendo coragem de admitir que errara, continuou a me evitar, acreditando que ainda conseguiria. No entanto, se o problema fosse esse, ela poderia Ter comunicado, dizendo que pretendia tentar caminhar por suas próprias pernas, sem a minha interferência e é provável que eu concordaria. Se eu não concordasse, ela poderia alegar o direito de fazê-lo e eu não teria como impedi-la. Não precisaria provocar a ruptura, da maneira que fez.
- Aparentemente, você argumentaria, na tentativa de mostrar-lhe que era uma coisa sem sentido. Afinal, se ela tivesse méritos, sua ajuda não deslustraria as conquistas dela. Em fim, ela poderia conseguir seus objetivos, desfrutar os louros merecidos, com menores dificuldades, contando com sua ajuda. Dificilmente ela conseguiria contra-argumentar, defendendo a importância de lutar sozinha. Estou começando a te dar razão, quando você diz que a inteligência pode criar sérios problemas a um relacionamento. É provável que, pretendendo realizar algo irracional, sem qualquer justificativa; ela percebesse na racionalidade a grande inimiga, acusadora do absurdo pretendido; portanto, uma grande inimiga a ser evitada a qualquer custo. Como você representava a racionalidade, é lógico que fugisse de você, para se livrar dela.
- Essa interpretação tem grandes possibilidades de ser a causa da sua decisão de abandonar o relacionamento. No entanto, há um detalhe que ainda não considerei com o devido valor. Nos últimos tempos, ela vinha se relacionando muito amiúde com a mãe. Considerando que a mãe não tem maiores atrativos a oferecer, é limitada nos assuntos sobre os quais pode conversar, é prepotente e muito instável emocionalmente; o que a atrairia para o desfrute dessa companhia? Considerando que continua a conviver com a mãe e, mais, somou ao relacionamento pessoas como a mãe dela, com quem está convivendo em grande intimidade. Ela sempre renegou a maneira de ser dessas pessoas, acusando-as de tentarem fazê-la desistir de seus projetos, sem capacidade de argumentar para justificar o que defendiam. Isso sempre a obrigou a decidir contra a vontade deles, enfrentando-os e sofrendo a sua revolta. Ela sempre quis fazer coisas diferentes, arrojadas, o que era considerado verdadeira loucura por essas pessoas e, por isso, faziam tudo para impedi-la, demovêla de seus intentos. Eu representava a compreensão, o incentivo, o apoio a suas expectativas, repeitando-a, ajudando-a, aplaudindo suas conquistas. Eram dois extremos, um contra e outro a favor. De repente, ela inverteu os valores. Passou a assumir os que atacara e considerar extremamente pernicioso, quem a apoiara e incentivara a ser diferente deles. Por outro lado, ela sabe que conheço bem esses valores distorcidos e consigo identificá-los nas pessoas. Ela sabe que eu sei que ela inverteu esses valores e não quer que isso seja conhecido, nem dela mesma. Portanto, sou uma espécie de espelho que a mostra pra ela mesma. Ela foge de mim para não se ver, para não Ter que admitir para si própria que perdeu a dignidade, entregando-se a impulsos, desistindo de lutar, acomodando-se.
- Tudo isso é razoável, mas não se pode Ter certeza de nada. – Ela disse isso com certo ar de desconsolo.
- É um grande mistério! Só podemos fazer especulações. Não é possível Ter certeza nenhuma. É uma insegurança total. Como acreditar no resultado de nossos projetos, ações ou qualquer coisa que acreditamos depender de nós?
- Realmente! As atitudes dela nos parecem absurdas, suicidas, mesmo; sem racionalidade. No entanto, ele prefere isso ao que, a nós, parece ser lógico. Ela preferiu estacionar sobre o que já conhecia, desprezando a aventura de novos conhecimentos; a busca do desconhecido. Optou por estacionar sobre o que alegara não gostar, desprezando o que declarara desejar. – Ela trocou o semblante carregado por um sorriso amplo – Se ela não tivesse mudado, provavelmente eu não teria maiores possibilidades de Ter outra chance com você. Sonhei muitos anos com esse reencontro; nos últimos, me empenhei em conseguir. Se tivesse te encontrado enquanto ela ainda estava com você, provavelmente nos reveríamos, conversaríamos e eu, provavelmente, nem teria coragem de confessar o que me levara a te procurar. O mais provável é que nos afastássemos definitivamente. É difícil considerar que não haja a mão do mistério em tudo isso! – Disse ela.
- É a constatação que tenho feito nos últimos anos. Acontecimentos particulares tem demonstrado a influência dele; no entanto, olhando para o geral, verifica-se que, enquanto a grande maioria das pessoas se submete à vida, acomodando-se como pode, apelando para pseudas facilidades, fugindo de usar a razão e procurar agir de acordo com ela. Por outro lado, há uma minoria que faz exatamente o contrário: vive tentando entender, pesquisando, estudando, experimentando; num eterno inconformismo. Você vê isso de uma maniera diferente?
- Agora não. – Ela fez uma pausa e prosseguiu. – Até aqui, considerava que essa diferença se devia, pura e simplesmente, às próprias pessoas, ao sistema político e ao meio em que vivem. A maioria dos considerados ignorantes, não teriam tido chance de estudar, de Ter acesso à educação; por isso viviam o possível. No entanto, te ouvindo, percebo que, entre os considerados cultos, há pessoas oriundas do mesmo meio que eu acreditava ser o responsável pela ignorância. Por que esses poucos, verdadeiras exceções, conseguem superar as dificuldades e o restante não? É evidente que eles tem alguma característica diferente dos outros, mas, por que? O que propicia essa diferença?
Ficamos em silêncio durante algum tempo, refletindo. Ela me olhou nos olhos durante algum tempo e perguntou:
- Por que você acha que isso acontece?
- Não faço a menor idéia. Não há como negar que alguns indivíduos, verdadeiras exceções, nascem com características diferentes das que acontecem na maioria dos outros. São talentos de toda ordem. Para esportes, cultura, artes, comércio, artesanato, em fim uma infinidade de atividades. Há os que tem capacidades sobrenaturais, totalmente inexplicáveis. É evidente que esses indivíduos excepcionais existem, no entanto, porque só uma minoria muito pequena é aquinhoada, é um grande mistério. Deve ser uma ação do criador, mas por que? Por que só uma minoria é distinguida?
- É o que você diz: é um mistério! – Ela disse isso com o olhar perdido em alguma parte do forro. – E a maioria, os que não foram aquinhoados com características especiais; como você os vê?
- É no que mais tenho pensado ultimamente. Antes, pensava como você, que eles eram assim por falta de educação, conhecimentos; o que os impedia de compreender grande parte das coisas. Debitava isso ao sistema, manipulado por interesses dos exploradores que sempre preferiram manter os explorados na ignorância. No entanto, percebo que não é a ignorância que faz as pessoas ruins. O que as faz ruins é o comodismo, o egoísmo e a prepotência.
- Você acha que essas características são inatas, nessas pessoas? – Ela ergueu as sombrancelhas ao perguntar.
- Não sei. É possível. Porém, também é possível, que seja uma herança cultural. Parece que as pessoas tem uma tendência natural ao comodismo, às facilidades. O que é natural, afinal chega a ser burrice tender para a dificuldade. No entanto, a maioria das pessoas, tendem à facilidade inicial, aquela que, em princípio, é o caminho mais fácil. Porém, eles não consideram que isso, muitas vezes, é uma espécie de armadilha. – Ela perguntou, com uma expressão de não estar entendendo:
- Armadilha? Como assim?
- É uma espécie de armadilha, porque o resultado final é de dificuldade. Portanto, a facilidade inicial é uma ilusão, levando o indivíduo por caminhos que o levarão a resultados piores do que caminhos que, em princípio, apontavam para maiores dificuldades.
- Tá meio complicado de entender! – Ela disse.
- Consideremos um exemplo: Imaginemos que estamos numa casa, na encosta de um morro. Temos que comprar mantimentos. Há uma venda no alto do morro e outra na parte de baixo dele. A distância da casa a qualquer delas duas é igual. Qual você escolheria para fazer as compras? – Ela pensou um pouco, deu um sorriso e respondeu:
- Pensei em escolher a de cima porque acho que sua tese levará a isso. No entanto, resolvi ser honesta e optar pelo que eu faria naturalmente. Iria na de baixo. É isso que caracteriza a facilidade inicial?
- É.
- Por que?
- O que você precisa carregar para fazer a compra?
- Dinheiro e, talvez, uma sacola ou algo para trazer as compras.
- É. Na volta, no entanto, você terá que carregar o que comprou, morro acima. Continua achando que fez a escolha certa?
- Realmente... – Ela mostrou surpresa – Sabe que eu nunca tinha ouvido falar nessa tal de facilidade inicial? Nunca me passou pela cabeça pensar nisso!
- Ainda tem tempo. – Eu disse sorrindo. – Só descobri isso aos cinqüenta anos. Você ainda não chegou lá.
- Você conhece outros exemplos que caracterizam isso?
- Sim, muitos. É o caso de quem usa drogas ou bebidas para fugir de problemas. Além do problema continuar sem solução, essa atitude acentua-o e cria outros, como mal estar, por exemplo. Outro exemplo é o caso de quem compra para pagar depois. Na hora da compra, não se preocupa com o pagamento, que só terá que efetuar no futuro. Na hora de quitar a dívida, ele poderá verificar que comprou mais do que podia. Outro exemplo muito freqüente é o caso de quem deixa de estudar, para se livrar do trabalho que isso dá. A falta de estudo poderá gerar dificuldades para o resto da vida, que o conhecimento poderia evitar. São inúmeros os exemplos. Acho que esses já dão uma boa idéia a respeito do que seja a facilidade inicial, não acha?
- Está mais do que claro! – Ela mostrava uma expressão de incredibilidade – Não me conformo que esse tipo de coisa nunca me passara pela cabeça. É tão Óbvia e tão comum no dia a dia!
- Essa sua perplexidade em verificar que desconhecia uma coisa óbvia, é a constatação de outro problema da humanidade. Os indivíduos que fogem de usar a racionalidade, não gastam tempo analisando problemas. Os racionais, dedicam-se a coisas complexas. O simples, deixa de merecer atenção e, grande parte das vezes, é ai que estão as respostas para muitos problemas, inclusive os mais complexos. É preciso ser mais simples; deixar de procurar na lonjuras o que pode estar ao alcance de nossas mãos.
- Você não existe! – Ela se atirou sobre mim, me abraçou e me pregou um monte de beijos nas faces. – De onde você tira todas essas idéias?
- Da vida. Dos problemas vividos. Do sofrimento chorado. – Abracei-a, dei-lhe um beijo na testa e disse:
- Vou preparar alguma coisa pra gente comer. Já faz tempo que passou a hora do almoço.
- O que você quer que eu faça?
- Nada. Ou melhor, faça o que quiser. Só vou esquentar o que sobrou de ontem a noite e fritar ovos. Você gosta de ovos fritos?
- Muito.
Fui até a cozinha esquentar arroz e um pouco de feijão que sobraram da janta de ontem e fritar ovos. Pensei que, “isso é que é anfitrião; oferece comida requentada com ovos fritos para a visita.” Ela apareceu na porta da cozinha.
- Não quer que eu faça alguma coisa, mesmo?
- Quer tomar um pouco de caipirinha?
- Se você quiser, eu quero.
- Então pega limão no pé, alí fora, a pinga está sobre a prateleira e o açucar, no pote, em cima do armário. Relembra seus tempos de filha de dona de restaurante. – Disse-lhe sorrindo.
Enquanto preparava a caipirinha, ela disse:
- Como é que alguém pode, podendo estar com você, optar por te deixar?
- Tanto pode, que aconteceu. E mais de uma vez. Isso, sem contar as pessoas que me acham um chato. E não são poucas.
- Sabe de uma coisa? – Ela me abraçou por trás e encostou a boca na minha orelha pra sussurrar: - Vou te demonstrar uma coisa que você detesta: egoísmo. Tomara que todo mundo te despreze, te abandone. Ai, você ficará inteirinho pra mim.
- Quanto tempo será que você agüentaria carregar esta mala, heim?
- Pelo resto da vida.
- As que me deixaram, também diziam isso. – Tomei um pouco de caipirinha, que ela me ofereceu e disse-lhe: - Sirva-se do banquete.
- Não consigo entender o que as teria levado a te deixar. Só pode ser loucura ou, como você mesmo diz: Mistério! Um grande mistério!
- Espera pra conhecer o meu lado ruim, depois você julga as que me deixaram. Tá bom?
Depois do almoço, deitamos um pouco para tirar um cochilo. Quando despertei ela estava sentada na cama me observando e disse:
- Já acordou? Não cochilou nem meia hora.
- É o bastante. É um vício, preciso tirar um cochilo depois do almoço se não fico sentindo que falta alguma coisa. E você? Nem cochilou, né?
- Não. Tentei, mas não consegui. Preferi ficar olhando pra você, te observando. Você dorme como uma criança. Sinto que poderia ficar olhando pra você a vida inteira, sem me cansar.
- Toma cuidado...Você está se deixando dominar pela fantasia. Está indo muito alto e isso propicia o aumento do tombo, quando a fantasia se desvanecer.
- Não é só fantasia! É claro que estou empolgada, mas o motivo é real. Se ficarmos muito tempo juntos, é claro que essa empolgação vai passar, no entanto, o que você é vai continuar e isso é motivo suficiente para que eu continue te admirando. -– Sua expressão era de contemplação, me olhando profundamente.
- Acho muito bom que você esteja se sentindo assim. Não tenho nada contra fantasias, mesmo porque eu sou um grande sonhador. Também fico empolgado quando encontro alguma coisa boa, principalmente pessoas interessantes. Sempre supervalorizei o bom e procurei curti-lo ao máximo. No entanto, acentua-se o valor da decepção quando ela acontece. Continuo preferindo supervalorizar o bom e sofrer grandes decepções, do que correr o risco de desperdiçar a possibilidade de sentir prazer e felicidade. Porém é preciso ter consciência disso e estar preparado para o golpe que virá.
- Acho que já nasci assim. Lembra quando você propôs que nos separassemos e me pediu que eu fosse para a casa da minha irmã? Era evidente que nosso relacionamento não teria futuro, uma vez que você não pretendia deixar sua família e não admitia me manter como amante. No entanto, era uma coisa boa demais, que já estava acontecendo. Por que furtar-se a aproveitar o que fosse possível? O sofrimento da separação aconteceria de qualquer jeito. Então, porque desprezar a felicidade e prazer possíveis enquanto o fim não fosse inexorável? Por isso voltei, te convenci e pudemos curtir mais algum tempo. Você se arrepende de Ter vivido essa prorrogação?
- Não. Muito pelo contrário, foi maravilhoso. E isso não aumentou o sofrimento. Ele foi infinito. Não poderia ter sido maior. Muitas vezes tenho pensado sobre isso e sempre te agradeço por ter insistido para que fosse assim. Isso me propiciou uma dose extra de felicidade e prazer. – Segurei o rosto dela com as mãos e beijei-lhe os lábios, como sinal de agradecimento.
O cachorro latiu e fui até a janela verificar o que estava acontecendo. Chegava um carro pela estradinha. Ela chegou junto a mim e perguntou:
- Quem é?
- Parece o carro de uma miga que tem um sítio ali atrás do morro.
Vestimos calças e saimos para receber a visita. Quando o carro se aproximou de nós, tive uma suspresa. Era a Lena. Ela desceu do carro, parou em pé ao lado dele e disse:
- Então é aqui que você se esconde?
Fui até ela, cumprementei-a e fiz as apresentações:
- Lena, esta é a Rina. Aquela da qual te falei tanto.
- A sua grande paixão! – A Lena disse isso com ar brincalhão.
- É. Rina, esta é a Lena, o amor que tive depois de você.
As duas se abraçaram e beijaram, num gesto mecânico, social. A Lena perguntou:
- Como é que vocês se encontraram depois de tantos anos? Ou já haviam se encontrado antes?
- Eu o encontrei. – Disse a Rina. – Depois de uma longa busca.
- Você, com certeza, não tinha nada melhor pra fazer, uma vez que resolveu vir me visitar. – Disse rindo à Lena.
- Pode ser. – Ela falou como era seu costume, meio debochada. Dando a entender que eu não era, mesmo, muito importante. – Estou atrapalhando alguma coisa?
- Não. – Respondi. – Estávamos conversando, rememorando, reconhecendo-nos.
- Rina, me perdoe a indiscrição; mas o que te levou a procurá-lo depois de tantos anos?
- A saudade, o desejo de encontrar alguém que me acompanhou, no pensamento, durante todos esses anos.
A Lena olhou pra mim e disse em tão zombeteiro:
- Não vai explodir, heim!
- Bem que poderia. O motivo é bastante forte. – Falei seriamente. – Enquanto tanta gente me desprezou, se afastou de mim, saber-se importante para alguém, ao ponto de merecer o trabalho de longa busca; é bastante gratificante. São essas coisas que me fazem reconhecer a importância da vida. Se não faltam sofrimentos, acontecem coisas assim, que nos mostram que valeu a pena não desistir, continuar na caminhada. – Fui até a Rina, beije-lhe o rosto e agradeci:
- Muito obrigado!
A Rina passou carinhosamente a mão desde o alto de minha cabeça até a nuca, dirigiu-se à Lena e disse:
- Me desculpe se parecer prepotente, me atrevendo a interpretações com poucos dados. Me parece que você está armada até os dentes, na defensiva, tentando mostrar que veio procura-lo, como ele disse, por não ter coisa melhor a fazer. Me desculpe, mas não acredito que tenha sido isso. Algo te atraiu pra cá. Que tal se nos desarmássemos e aproveitássemos a oportunidade para aprendermos alguma coisa, uns com os outros?
- O que você acha que uma conversa entre três ex-amantes pode propiciar? – Perguntou a Lena com um ar um tanto arrogante.
- Não considero que a qualificação deva ser essa. Sugeri que a conversa aconteça entre três pessoas, que viveram, inclusive relacionamentos, mas não só isso; que têm experiências e que podem compartilha-las. Nas poucas horas em que estou aqui, já tive a oportunidade de conhecer coisas, descobrir enganos e erros, que, em muitos anos não consegui.
- Menina! Acho que você está cometendo um tremendo erro, enchendo a bola desse cara, com tanta pressão. O estouro pode te atingir violentamente. Cuidado! – O tom dela soava sarcástico.
- Desculpe mas, sou uma menina bem crescidinha e com experiência suficiente para preferir sofrer os danos de uma explosão do que perder a oportunidade de aprender e compreender. No entanto, parece que você cultiva outros valores e só me cabe aceitá-los. Me desculpe. – As palavras da Rina, embora envolvidas em grande serenidade, saiam como verdadeiras chicotadas. A Lena baixou os olhos, ficou um instante em silêncio e, depois, encarando a Rina, disse:
- Você tem razão. Tenho sido uma estúpida durante esses anos todos e estou pagando o preço por isso. Não vim até aqui por falta do que fazer. Saí de casa com esse objetivo: vir procurá-lo, buscar alguma coisa, nem sei o quê. – Seus olhos se marejaram de lágrimas, que não chegaram a rolar. Ela baixou a cabeça, olhando para o chão e ficamos em silêncio, até que a Rina tomou a iniciativa: passou o braço pelos ombros dela, puxou-a pra perto de mim e me envolveu com o outro braço, juntando os três. Levei os braços até a cintura delas e a Lena fez o mesmo comigo e a Rina. Permanecemos abraçados por longo tempo, misturando nossas lágrimas em silêncio.
Molhei meus lábios nas lágrimas das duas, afastei-me um pouco e fiquei olhando-as, a testa de uma na da outra. O braço da Rina sobre o ombro da Lena e, o desta, cingindo a cintura da outra. Os olhos miravam o chão. Por fim, quebrei o silêncio.
- Quem pode explicar uma coisa dessas? Até ontem eu estava aqui sofrendo o peso da solidão, amargando o abandono. Agora estou na companhia de vocês duas, desfrutando essa enorme emoção. É como alguém no deserto, que depois de dias de enorme sede, encontra uma represa com milhões de metros cúbicos de água. – E dirigindo-me à Lena: - Você não imagina a felicidade que senti ao te ver despir a armadura, mostrando a humildade que nunca pude ver em você. Parabéns. Espero que isso te propicie aproveitar melhor os valores, os bons valores da vida.
A Rina afagou os cabelos dela, abraçou-a com os dois braços e beijou-lhe o rosto. A Lena retribuiu e disse:
- Obrigado menina. Menina adulta. Muito obrigado por ter me propiciado tirar a máscara.
- Não acredito que tenha sido eu que te levou a tirar a máscara, desvestir a armadura. Acredito que só te incentivei a fazer o que você já vinha disposta a fazer. Pelo menos é isso que senti. Você deve Ter ficado surpresa ao me encontrar aqui, pois deve ter imaginado que ele estaria sozinho. Isso deve Ter barrado a intenção que te trouxe até aqui. O importante é que, agora, poderemos conversar abertamente, espero que sem restrições, com objetivo de ajudar-nos, de aprender uns com os outros.
Ela puxou a Lena par junto de mim e nos abraçamos novamente, demoradamente. Sugeri que nos sentássemos na grama. A Lena disse que precisaria ir ao banheiro fazer xixi. A Rina sugeriu, sorrindo:
- Que tal começarmos a demonstrar nossa disposição à intimidade, fazendo xixi aqui mesmo, na frente dos outros. – Afastando-se um pouco, abaixou as calças e fez xixi de cócoras. A Lena fez o mesmo e eu acompanhei-as. Voltamos a nos sentar em círculo, na grama. A Lena perguntou:
- Rina, conta essa história de passar tantos anos esperando encontrá-lo. Quantos anos faz?
- Quase vinte e oito.
- Isso me parece uma verdadeira maluquice. Você passou todos esses anos pensando nele, sem ninguém? – A expressão da Lena era de enorme incredibilidade.
- Ele sempre esteve no meu pensamento, embora, durante algum tempo, eu o tenha odiado, pelo que eu sofria. Tive vários relacionamentos, inclusive estive casada durante algum tempo. No entanto, o fantasma dele nunca me abandonou, seja desejando-o ou odiando-o. – Provocada pela Lena, ela foi contando o que já havia me contado.
Deixei-as conversando e fui preparar um café. Quando voltei com uma caneca para cada um, a Lena falava a respeito do que a fizera me procurar. Entreguei uma caneca a cada uma, sentei-me e pedi à Lena que recomeçasse. Ela sorveu um gole de café e recomeçou.
- Estava começando a contar para a Rina o que me provocou a te procurar. Há bastante tempo venho me sentindo mal. É um grande sentimento de frustração. Acho que vivi sonhando muito alto, imaginando conseguir coisas grandiosas. O tempo foi passando e as frustrações se acumulando. Os filhos cresceram e não precisavam mais de mim. O mercado de trabalho, cada vez mais restrito, mostrando toda a dificuldade de se conseguir o mínimo, até, para a sobrevivência. Numa noite em que estava me sentindo muito mal, mexia em livros e, de repente, me surpreendi com um livro de poesias nas mãos. Lembra aquele, uma coletânea que o editor do seu livro publicou, com poesias de vários autores, inclusive quatro suas?
- Lembro. – Respondi.
- Então. Comecei a folhar o livro e me detive a ler a poesia de tua autoria: Lucidez. Me lembrei que você dissera que a fizera pra mim. Li e reli várias vezes. Senti um peso enorme, como se estivesse me achatando no chão. Você dizia, ali, que me amara através de uma fantasia que fizera a meu respeito e que, o tempo, se encarregara de te mostrar que estivera errado, que eu não tinha nenhuma correspondência com a fantasia. Senti uma revolta muito grande e muito ódio contra você. Senti que você estava me cobrando que eu correspondesse à sua fantasia e achei isso uma tremenda injustiça, um verdadeiro despropósito. Me deixei cair de costas no sofá e permaneci fitando o teto, corroída pelo ódio. De repente, não sei depois de quanto tempo, me surpreendi calma, refletindo sobre os motivos que teriam te levado a construir aquela fantasia. Não consegui identificar tais motivos, no entanto, estava calma e empenhada em continuar procurando o que teria te causado aquilo. Você seria capaz de me dizer que motivos foram esses? – A Lena me disse isso fitando-me profundamente nos olhos e apoiando sua mão no meu braço.
- Quem primeiro te qualificou como forte e lúcida, foi o Levi. Ele falava de você como um verdadeiro mito: lutadora, liberal, sensível, inteligente, corajosa, em fim, detentora de todos os valores bons possíveis a um ser humano. Ele demonstrava um verdadeiro amor por você. Eu ainda não te amava, te considerava como o amor secreto dele e, por isso, não te olhava como mulher, mesmo porque nunca fui dado a conquistas. Quando você declarou que tinha vontade de me beijar, algo aconteceu em mim e aquele beijo disparou um verdadeiro amor. No decorrer do nosso relacionamento, você demonstrava que tudo o que o Levi dizia a seu repeito era verdade. Estava empenhada nos estudos, cursando a faculdade, para recomeçar numa nova carreira. Defendia a liberalidade e fazia acreditar ser totalmente livre de preconceitos. Mostrava Ter uma relação liberal e responsável com os filhos. Em fim, confirmava tudo o que o Levi dissera a seu respeito.
- E o que foi que te fez acreditar que isso tudo era mentira? – A Lena perguntou.
- Comecei a perceber que você era instável e insegura. Tentava disfiarçar isso com agressividade. Notei que se empenhava em acentuar meus defeitos, realçando-os e, até, criando alguns que eu não tinha. O objetivo era manter-se superior a mim, puxando-me pra baixo ao invés de tentar crescer. O estranho é que eu te dedicava o maior respeito e consideração, portanto, isso era totalmente desnecessário. Eu nunca, ao menos, insinuei que me considerasse melhor que você, mesmo porque nunca considerei isso. Lembra uma vez que fomos à Ilha Comprida fazer uma filmagem num hotel para servir de piloto para um vídeo promocional?
- Lembro.
- Nesse dia, enquanto jantávamos, o seu professor que dirigia os trabalhos, te pediu para fazer algo, não me lembro o quê. Você se irritou e destratou o homem com tamanha violência, demonstrando sua incapacidade de servir, de descer do altar em que se imaginava. Você não passava de uma espécie de estagiária e se dava ares de profissional importante. Lembra-se da viagem que você fez à Espanha e de como descreveu o comportamento do povo de lá, em relação às visitas?
- Não me lembro dos comentários que possa Ter feito a esse respeito.
- Você generalizou, descrevendo as pessoas como arrogantes, que tratavam mal os visitantes, verdadeiros grossos. Pouco tempo depois, eu também fui pra lá. Inclusive visitei parentes seus que você havia, também, visitado. Em todos os lugares fui tratado como um rei, inclusive pelos seus parentes. Quando, na volta, comentei com você como havia sido recebido, acusando que você havia sido injusta no julgamento que fizera a respeito deles; você alegou que me dispensaram bom tratamento porque eu era homem. Que o problema deles é com as mulheres. Aquilo me mostrou que você, além de falsear a verdade, era totalmente prepotente ao não admitir o erro, insistindo em justificar o injustificável. Bem... Foram inúmeros exemplos que me foram mostrando a verdade sobre você. Essa verificação me machucava terrivelmente. Era uma decepção muito sofrida, a cada descoberta.
Eu te amava e todas essas constatações não modificavam o que sentia por você. Acredito que o amor acontece independente de qualidades ou defeitos, no entanto, as qualidades geram admiração e, pelo menos eu, sinto grande felicidade ao respeitar e admirar alguém que mereça isso. Não te amei por causa da fantasia. Amei porque tinha que te amar, independente de querer ou não. Não depende de nós escolher a hora e a quem amar. No entanto, a perda da consideração e do respeito por você, me causou grande sofrimento. É duro saber que não se consegue deixar de amar alguém que só merece desprezo.
- Que verdadeiro monstro eu sou! – Ela disse isso com sarcasmo.
- Não considero que isso seja uma monstruosidade. Se considerasse assim, teria que usar esse adjetivo para a maioria da humanidade. Ai é que a minha fantasia pode ser acusada de prejudicial, de Ter te prejudicado. Ela, apoiada no que ouvi e no que você se empenhou para que acreditasse; te imaginou excepcional, fora do comum. Foi isso que me levou a te admirar e respeitar. As constatações me convenceram que você era, simplesmente, uma mulher normal, com todos os defeitos comuns à grande maioria. E como a maioria, tinha suas qualidades também. Portanto, que fique bem claro que não te considerei nenhum monstro. Somente que você era normal, igual a maioria.
- Não sei o que é pior, ser monstro ou normal. – A Lena disse isso mostrando alguma amargura.
- Será que essa avaliação que você fez da Lena, não foi influenciada pelo término do relacionamento? Uma tentativa de culpá-la pelo que você perdeu? – A Rina disse sem muita convicção.
- É claro que o emocional sempre interfere na racionalidade. É idiotice negar isso. No entanto, a poesia a que ela se referiu, foi escrita nos meados do relacionamento. As constatações começaram num tempo relativamente curto. depois do início do relacionamento. Elas foram se sucedendo através do tempo. Mesmo descontando a influência da emoção, ainda sobra muita coisa para demonstrar minha análise. Foi muito difícil, na maioria das ações ela demonstrava ser excepcional, admirável. Isso foi o que mais me machucou: ela sabia o que a faria diferente, tanto é que interpretava esse papel. O problema é que era só interpretação.
- Lena, o que você acha dessa análise que ele fez sobre você? Perguntou a Rina.
- Não sei. Como eu disse no começo, estou confusa a respeito de mim mesma. Foi exatamente isso que me trouxe aqui, tentar saber dele sua opinião sobre mim. Meu primeiro impulso foi rechaçar todas essas críticas, considerando-as absurdas. No entanto, é possível que algumas delas sejam procedentes, talvez todas, sei lá... – Ela se mostrava abatida.
- É muito ruim! Já sofri bastante por isso. A Rina fez esse comentário demonstrando uma expressão sofrida.
- O que você fez pra superar? Perguntou a Lena.
- Bom, devo te dizer que não é uma questão resolvida. Ainda tenho muitas interrogações sobre mim mesmo. Continuo me procurando. Passei muito tempo me enganando e enganando os outros. Os efeitos disso na minha vida, as conseqüências foram muito ruins e chegou uma hora que me senti arrasada.
- E o que você fez? – A pergunta da Lena demonstrava grande ansiedade.
- Fugi. Fui para a casa de uma tia, numa cidadezinha muito pequena. Não sei porque escolhi esse lugar para me refugiar. Minha tia é uma beata, viuva, que sempre viveu na roça e, depois que meu tio morreu, mudou-se para a cidade e passou a viver em função da igreja. Nunca tive qualquer afinidade com ela e ela nunca perdeu a oportunidade de me criticar, de me considerar uma louca, despudorada e coisas assim. Ela me recebeu bem embora estivesse clara a hipocrisia. Quando me perguntou sobre o que me levara até lá, disse-lhe estar confusa e sem saber o que fazer para resolver o problema. Ela, de imediato, acusou que meus problemas se deviam a meu afastamento de Deus, da igreja. Disse que, no dia seguinte, me levaria à igreja para conversar com o padre, defendendo que esse era o caminho para me livrar dos meus problemas. Passou a pedir notícias da família e a contar o que vinha acontecendo, enquanto jantávamos e até a hora de dormir.
- Ela não quis saber detalhes sobre os problemas que você alegara estar enfrentando? Perguntou a Lena.
- Não. Dirigiu a conversa para a família, comentando fatos passados, evitando falar sobre mim. No dia seguinte, logo cedo, me levou com ela na missa e, ao final, me apresentou ao padre e pediu-lhe que conversasse comigo, que eu estava passando por problemas e que ela achava que eles se originavam no meu afastamento da igreja. O padre me perguntou se eu pretendia me confessar ou se preferia conversar abertamente, sem o compromisso da confissão. Optei pela conversa. Contei-lhe por alto o que vinha acontecendo. Ele, depois de ouvir sem interromper, diagnosticou que os problemas se originaram no meu afastamento da vida espiritual, optando por assumir a minha vontade, tentando satisfazê-la, sem considerar a ajuda que a espiritualidade poderia oferecer para o julgamento do que fosse bom ou ruim. Me aconselhou a refletir sobre tudo que havia feito, identificar os erros cometidos, confessa-los honestamente, pedir perdão e, a partir daí, assumir a importância da espiritualidade como parâmetro para dirigir a vida. Me abençoou e se colocou a disposição para voltar a ouvir-me quando eu achasse necessário.
- O problema dos religiosos é esse: pra eles tudo se resume a Deus, a obediência a rituais religiosos, a aceitação de dógmas e a influência do bem representado por Deus e do mal provocado pelo Diabo. – A Lena fez esse comentário demonstrando desalento com a religião.
- Eu também não consigo aceitar as doutrinas religiosas, nas quais não vejo racionalidade. No entanto, aquela conversa me provocou a pensar na maneira como tinha vivido até ali; do que acontecera, do comportamento dos outros em relação a mim e o meu em relação a eles. Me chamou a atenção para a espiritualidade, não como religiosidade mas, sim, como a existência de algo que interfere na nossa vida, compreendendo que existem coisas que não dependem de nós, que nos afetam sem que lhe atinemos as causas. A análise do meu comportamento me mostrou uma quantidade enorme de erros cometidos. Do quanto as farras, os verdadeiros bacanais encharcados em bebida, a droga, em fim, a busca de prazer, de fugir de outros problemas, sem considerar o mal que aquilo poderia causar. Pude perceber que fizera isso para fugir dos problemas, principalmente para tentar sufocar a dor da perda do grande amor. Percebi, também, que havia me julgado muito mais forte e capaz do que o era na realidade. Isso me levou a amargar muitas derrotas, por tentar realizar coisas para as quais não estava capacitada. Esse foi o começo: admitir erros, procurar não repeti-los, aprender com eles. É um processo que vem se desenvolvendo de lá pra cá e que, provavelmente, nunca chegará ao fim.
A Lena se dirigiu a mim, perguntando:
- O que você me recomendaria para resolver o problema?
- Coragem, humildade, solidariedade e persistência.
- Isso é muito vago. Como usar isso? – Ela demonstrava desalento.
- É preciso se armar de coragem para assumir a humildade. Esta possibilitará a identificação dos erros cometidos, partindo do princípio da falibilidade humana, do reconhecimento de nossa incapacidade para muitas coisas. A solidariedade propiciará que compreendamos os erros alheios e nos disponhamos a ajudar. É muito difícil conseguir isso, por isso é necessária a persistência, para seguir na perseguição do objetivo contra as dificuldades que surgirão.
- Você acha que a espiritualidade seja dispensável? – Perguntou a Rina.
- É preciso tomar cuidado com esse termo, pois ele pode gerar confusão. Eu defino espiritualidade como o reconhecimento da infinita grandiosidade da criação do universo. Isso nos mostra o quanto, mesmo com toda nossa capacidade e potencial, somos insignificantes quando comparados a tamanha grandiosidade. A história do mundo e a nossa própria, nos fornecem exemplos em abundância para constatarmos o grande mistério que envolve a vida. Mistério é tudo aquilo que conhecemos os efeitos e não atinamos com suas causas. A humanidade vem desvendando mistérios desde seu início até hoje. No entanto, existem mistérios que perduram e que, ao que tudo indica, perdurarão por muito tempo, quem sabe, até o infinito dos tempos. Os maiores mistérios se referem a coisas simples, que afetam o ser humano, que o submetem, dificultando e, até, impedindo que ela possa determinar o rumo de sua vida. É o caso do amor que acontece independente da vontade do indivíduo. Da correspondência do amor que, também, independe da vontade dos indivíduos envolvidos. É o caso do pensamento involuntário que ocupa nossa mente, mesmo contra nossa vontade. São evidências constantes na humanidade, cujas causas continuam sendo um grande mistério. A aceitação e reconhecimento do mistério é que eu chamo de espiritualidade. Considero a compreensão disso como fundamental para que possamos questionar e analisar em busca de soluções, tendo consciência de que podemos muito, mas que temos limitações intransponíveis.
O silêncio nos dominou por um bom tempo, ocupado pela reflexão. Aproveitei a pausa e entrei em casa para pegar mais café para nós, deixando-as imersas na reflexão.
Ao voltar, encontrei-as como as havia deixado. Estendi uma caneca a cada uma, que as pegaram maquinalmente. A Lena quebrou o silêncio:
- Vem cá, eu te conheço? – Disse isso tentando brincar, dirigindo-se a mim.
- Acho que não. Conviveu anos comigo, teve a oportunidade de me conhecer nos mais variados ambientes, pelos mais variados ângulos. No entanto, acho que sempre viu o que queria ver, desprezando a realidade. Mudei bastante nestes últimos anos, mas não na essência. Acho que as maiores mudanças aconteceram no aprofundamento de questões, na expansão da compreensão e, principalmente, na descoberta da importância do mistério e de sua influência no cotidiano.
- A que você atribui essas mudanças a que se refere? Perguntou a Rina.
- Basicamente ao sofrimento. Fui muito feliz nos últimos anos, desfrutando a companhia de uma companheira maravilhosa, com quem compartilhava tudo. Conversávamos muito, freqüentemente e abordávamos os mais variados assuntos. Isso me possibilitou um grande crescimento, no entanto, a perda dessa companheira, que aconteceu duas vezes, foi o que propiciou as mudanças mais intensas, descobertas novas e compreensões de muitas coisas que estavam nebulosas.
- Então você acredita que o sofrimento é causador de aprendizado? Voltou a perguntar a Rina.
- Sim. Quando estamos bem e felizes, não sentimos necessidade de maior compreensão. Nesse estado, o importante é curtir a felicidade, desfrutar o prazer que ela propicia. No sofrimento, o questionamento surge naturalmente. Depende de nós racionalizarmos ou nos entregarmos inteiramente aos desmandos da emoção. Se optarmos por racionalizar, enfrentando as dificuldades inerentes de fazer isso, sob tão grande carga de emoção; poderemos aprender muito, crescer bastante em compreensão.
- Quer dizer que aquela menininha bonitinha te propiciou tudo isso? – A Lena não conseguia deixar o sarcasmo de lado.
- Ela me propiciou viver mais de vinte anos em sete, ao desfrutar de sua companhia. No entanto, devo Ter vivido o equivalente a mais de cem anos durante os meses que tive que viver sem ela. Porém, Lena, você foi a primeira a me propiciar esse amargo conhecimento; a primeira fonte de sérias reflexões a respeito da constituição e do comportamento do ser humano.
- Bom...Pelo menos, fui de alguma utilidade. – A Lena continuava sarcástica.
- Esse teu sarcasmo é uma das coisas que mais me incomodou e, continua incomodando. Já que você preferiu usar o termo utilidade; devo confessar que você me foi muito útil, me propiciou muita felicidade e muito prazer. Te amei intensamente e curti muito isso. Enquanto pude te respeitar e admirar, também, isso, me causou enorme prazer. Por fim, você me provocou a questionar, analisar, aprender e compreender muitas coisas. Pena que não foi você que me deu isso. Você foi um simples objeto que propiciou tanta coisa boa, mesmo sem querer. Esse é o problema: você poderia Ter merecido os louros do que eu consegui através de você. No entanto, sua maneira de ser, acabou por me levar a sentir pena de você. E pode acreditar, isso foi muito dolorido.
- Você mudou mesmo! Nunca te vi pegar tão pesado assim, criticar com tanta ênfase. – A Lena demonstrava algum ressentimento.
- Não acredito que ajudaria se sonegasse meus conceitos sobre você e sobre o relacionamento que tivemos. Te acusando abertamente, te propicio o direito de defesa e, se reconhecer que eu tenha razão em alguma coisa, poderá usar essas críticas para promover mudanças. Agora, por favor, me poupe desse seu sarcasmo.
- Me descupe. – Parecia sincera.
- Lena, você vai ficar aqui conosco? Vai dormir aqui?
- Não quero atrapalhar vocês, afinal, ficaram tantos anos afastados que merecem desfrutar o máximo de iintimidade. – Novamente, parecia sincera.
- Não sei a opinião dele. No que me diz respeito, gostaria de desfrutar ao máximo a sua companhia, conversando com a gente, propiciando-nos conhecimento e compreensão. O que você acha? – A Rina perguntou a mim.
- Se ela estiver disposta a se desarmar, conversar abertamente, com lealdade, me deixaria muito feliz.
- E então Lena, você nos faz companhia? Perguntou a Rina.
- Eu gostaria. Só preciso ir avisar minha irmã. Será que vocês poderiam ir me buscar? O carro é dela e preciso deixá-lo lá.
- Sem problema. Nós iremos no meu carro. – Disse a Rina.
- Aproveitaremos para comprar alguma coisa, na venda, para o jantar. – Eu acrescentei.
A irmã da Lena fez questão que jantássemos com ela. Depois do jantar e de um pouco de conversa, voltamos para a fazenda, onde a Rina preparou um café, esticamos um cobertor no chão da sala e nos sentamos para conversar. A Lena começou a conversa:
- Vocês repararam na curiosidade da minha irmã a respeito desse nosso encontro?
- Qualquer um, no lugar dela, sentiria a mesma coisa. Afinal não é todo dia que um homem se reúne com duas ex-amantes e passam a noite juntos, conversando sobre os seus relacionamentos. – Disse a Rina.
- Conversando e tudo o mais que a cabeça dela deve estar imaginando! – Disse a Lena.
- Como é que eu posso deixar de considerar a influência do mistério? Estive aqui, sozinho, durante quase seis meses, com o mínimo de oportunidade de conversar e dividir meu sofrimento. De repente, me aparecem vocês duas, como se houvessem combinado esse encontro comigo. Vocês vêem alguma justificativa pra isso?
- Você tem razão. Quanto do que nos acontece na vida, depende de nós? Quanto podemos influenciar nosso destino, se é que podemos? – Disse a Rina.
- Estou meio bestificada, se é que não estou de tudo! Já fui influenciada por exoterismo e o sobrenatural; no entanto, nunca me dei conta desse mistério, nesses termos que o estamos abordando.
- Lena, o nosso relacionamento aconteceu porque você tomou a iniciativa. O relacionamento com a Rina, também foi provocado por ela. Porém, o que foi que vos provocou a fazer isso? O que me fez aceitar a sedução e ter amado as duas? Esses relacionamentos dependeram de nós, mesmo? Ou simplesmente atendemos aos comandos de algo que pretendeu que tudo isso tivesse sido assim?
- Nesse caso, pode ser que tudo o que eu possa Ter feito de errado, não tenha sido culpa minha e , sim, do mistério? Colocou a Lena.
- É possível. O que não é muito confortável, uma vez que isso implicaria que não passaríamos de simples marionetes, manipulados independentemente de nossa vontade. Quando se considera a existência do mistério, tudo é possível, menos afirmar qualquer coisa como verdade absoluta, no que se refere às causas. Por isso, é possível que tudo o que você possa Ter feito de errado, não tenha dependido de opção sua. No entanto, é preciso considerar que, se o mistério te levar a cometer um crime, quem irá para a cadeia é você e não ele.
- E o livre arbítrio, tão propalado pelas religiões, existirá mesmo ou não? – Perguntou a Rina.
- Eu acho que existe. Nós vivemos escolhendo, optando, acertando e errando. Isso mostra que temos essa capacidade. Outra coisa que demonstra a existência do livre arbítrio, é a intervenção humana na natureza, gerando a grande quantidade de problemas que a afetam. Não acredito que uma entidade que manipulasse os indivíduos, permitiria que eles fizessem isso. – Disse a Lena.
- Concordo com você. – Disse eu. – São muitas evidências demonstrando a existência do livre arbítrio. No entanto, não é pequeno o número de acontecimentos que se mostram independentes da vontade humana, de suas decisões. O surgimento do amor entre casais, por exemplo, independe da escolha das pessoas. Nem sempre ele é correspondido e, isso, também não depende delas. Existem as premonições em algumas pessoas, mas não em todas. Há o caso de ocorrências que contrariam o conhecimento humano e suas ações, o que muitos chamam de milagres. Existe o pensamento que ocupa nossa mente, independente de nossa vontade, contrariando-a, inclusive. Todas essas coisas e muitas outras, independem de nosso querer, de nossa vontade. Portanto não tivemos possibilidade de arbitrar sobre elas. Como vocês vêem isso?
- Me parece que nós temos uma capacidade de decisão, de livre arbítreo; no entanto, isso tem limite e, além desse limite, as coisas ficam a cargo do mistério. – Disse a Rina.
- Concordo com a Rina. Nunca tinha considerado a influência do mistério, porém, agora, percebo que sua influência é significativa nas nossas vidas. Acho que nosso poder de decisão é bastante grande, mas não me atrevo a imaginar quanto. Você faz alguma idéia de proporção entre livre arbítreo e mistério, na direção de nossas vidas? – Perguntou a Lena se dirigindo a mim.
- Não. Considero, inclusive, a possibilidade de que o livre arbítreo seja um engodo para nos motivar a agir, acreditando que estamos no comando. A minha convicção é de que não temos cem por cento de autonomia. Entre uma autonomia bastante grande e a total ausência dela, tudo é possível.
- É assustador! Imaginar que não passemos de simples marionetes na mão desse mistério. Considerando que fosse assim, o que você acha que deveríamos fazer, a partir dessa constatação? – A Rina dirigiu a pergunta à mim.
- Não é nada agradável considerar-se sendo usado o tempo todo. No entanto, que poderíamos fazer? Acho que eu continuaria pensando, mesmo porque isso seria uma imposição e não uma opção. Pode ser que me empenhasse em desafiar o mistério, tentando desobedecê-lo. Porém, acho que nunca teremos certeza sobre o quanto somos influenciados pelo mistério e quanto nos cabe de autonomia. Hoje, procuro pensar e fazer o que posso e espero que o mistério me leve ao que pretende.
Novamente o silêncio nos dominou, como se os três refletissem sobre a questão. A Rina quebrou o silêncio, perguntando à Lena:
- Ele disse que você o deixou. Que motivos te levaram a fazer isso?
- Eu queria mais. Achei que ele me atrapalhava, que era um empecilho no caminho de meus objetivos.
- Que objetivos eram esses?
- Progresso. Progresso profissional, financeiro. Paralelamente, sem admitir nem pra mim mesma, tinha esperança de encontrar um cara bem apessoado, bem de vida, que me amasse e a quem pudesse amar e que me propiciasse uma vida confortável e tranqüila.
- Ele agia no sentido de impedir que você alcançasse o progresso pretendido? Te impedia de conhecer pessoas e, conseqüentemente, o sonhado príncipe encantado?
A Lena quedou-se pensativa e demorou um bom tempo para responder à Rina.
- Não. Ele nunca me dominou, mesmo porque, deveria saber que não conseguiria. Portanto, ele não era um estorvo para que me relacionasse com outras pessoas; tanto é que tive alguns casos no período em que nos relacionamos e ele sabe disso. Profissionalmente, não me criou qualquer tipo de problema, muito pelo contrário, sempre procurou me ajudar e me ajudou efetivamente.
- Então, os motivos alegados não existiram. Está arrependida de tê-lo deixado?
- Algumas vezes pensei nisso e senti arrependimento. Outras, considerei que tinha que tentar e que, por outro lado, ele me fazia alguma espécie de mal, que me obrigava a livrar-me dele.
- Que tipo de mal? – Voltou a perguntar a Rina.
- Não sei. Nunca consegui identificar o que pudesse ser.
- Tenho pensado muito sobre isso. – Eu disse. – Vejamos se você concorda com as possibilidades que aventei. Fui te conhecendo no decorrer do tempo, colhendo dados e analisando-os. Fui te descobrindo, inclusive o que você se esforçava para esconder, até, o que procurava esconder de você mesma. Portanto, passei a ser uma espécie de espelho, te revelando o que você não queria ver. Minha presença passou a ser um símbolo de acusação. No entanto, mesmo que isso seja verdade, duvido que você tivesse consciência disso e, não sei se conseguiria verificar isso agora.
Novo silêncio. A Rina olhava para ela fixamente, demonstrando ansiedade pelo que ela diria. Depois de um tempo, a Lena falou:
- Até pouco tempo atrás, eu rebateria essa hipótese sem pestanejar, achando-a um verdadeiro absurdo. – Expressou um risinho meio amarelo e continuou. – Me segurei pra não fazer isso, agora. No entanto, é uma possibilidade e não me atrevo a dizer que seja remota. Durante o silêncio, pensei no que você disse, horas atrás, que eu interpretava um papél, que escondia a verdade. É verdade. Nos últimos tempos tenho pensado sobre isso e descobri que procurava esconder muito mais coisas do que aquelas que o fazia intencionalmente. Acho que algumas, pretendia esconder de mim mesmo. É uma coisa a ser analisada com tempo, buscando identificar detalhes que possam demonstrar que isso é verdade ou não. Em princípio, me parece bem possível, muito provável que seja verdade.
- Já que você se dispõe a analisar essa possibilidade, vou te colocar mais uma coisa para que a considere também. – Procurei a melhor maneira de expor o que pensava e continuei: - A constância com que você me criticava, não perdendo a mínima oportunidade de fazê-lo, buscando realçar meus defeitos e erros e, até, criando alguns que eu não tinha; me faziam crer que você sentia necessidade de me desvalorizar. Provavelmente, por me considerar superior a você, não conseguindo admitir que isso pudesse ser verdade. Percebendo que isso não produzia efeito, não conseguindo admitir a inferioridade, procurou se desvencilhar de mim. Está clara essa colocação? – Perguntei à Lena.
- Está. – Ela respondeu depois de um tempo em silêncio. – Novamente senti o impulso de repudiar a possibilidade de imediato, por isso a demora em responder. No entanto, como na outra questão que você colocou, vale a pena analisá-la. É outra possibilidade.
- Onde é que você foi buscar tudo isso? O que te fez considerar essas hipóteses? – A Rina perguntou a mim.
- Tentando entender, compreender o que me parecia absurdo. O abandono da Lena me provocou esse questionamento, no entanto, não consegui evoluir nele. Ao ser abandonado, agora, voltei a considerar essa hipótese, uma vez que a situação era similar. Considerei, exaustivamente, minhas atitudes e comportamento que pudessem justificar as atitudes delas. Não consegui me convencer que meus defeitos fossem suficientes para causar tal desfecho. Por isso passei a buscar outras hipóteses que os justificassem. Esta última hipótese só se aplica à Lena, à outra, não. Mas a primeira, é bem provável para a duas.
- Será que se nosso relacionamento tivesse perdurado eu, também, poderia Ter te deixado? – Perguntou a Rina.
- Quem sabe? Se aconteceu com elas, poderia Ter acontecido com você também. – Respondi.
- Rina, o que você sentiu ao ser abandonada por ele? – Perguntou a Lena.
- Sofri muito! Porém, ele teve motivo razoável para me deixar. Não pude acusá-lo, sabia que ele não teve culpa, tinha me prevenido que o relacionamento seria temporário, que não abandonaria a família e que não poderia me prender a ele como amante.
- Em nenhum momento você chegou a sentir raiva dele? Perguntou a Lena
- Algumas vezes, quando o sofrimento se acentuava, cheguei a acusá-lo, inconscientemente. Acusei Deus, também. Acho que é natural a gente tentar incutir a terceiros a culpa por nosso sofrimento. No entanto, foram períodos curtos. Conscientemente, continuei amando-o e respeitando-o, por todos esses anos.
- Deve Ter sido uma barra! Tantos anos sendo acompanhada por um fantasma, não deve Ter sido fácil! – Comentou a Lena.
- Nos primeiros meses, o sofrimento foi terrível, era dioturno, tirava o sono o apetite, a vontade de qualquer coisa. Quando apelei para o que se pode classificar de vida mundana, bebendo, fumando maconha, participando de verdadeiras orgias, tentando fugir da lembrança dele; consegui me sentir pior ainda.
- Por que? – Perguntou a Lena.
- Porque eu imaginava que, se ele soubesse o que eu estava fazendo, perderia o respeito que sempre me dedicou e, isso, fôra de importância fundamental pra mim. Nunca, até hoje, senti de alguém, aquele respeito que ele me dedicou. Se por um lado, pensar sobre isso me causava um mal terrível, fazendo-me sentir-me indígna de Ter recebido tamanho respeito; por outro, foi o que me levou a investir em mim, estudar e crescer como pessoa.
- Quando você imaginava encontrá-lo, como considerava que ele poderia estar? – Perguntou a Lena.
- A lembrança que tinha dele, me indicava que ele tivesse evoluido. No entanto, muitas vezes, considerei que pudesse Ter sido levado a se acomodar, aproveitando o sucesso profissional e desfrutando os resultados financeiros, que eu não tinha dúvida de que conseguiria. Lembrava-o como um grande líder , respeitado pelos que trabalhavam com ele. Em fim, considerava a possibilidade de que tivesse se transformado num tradicional pai de família, acomodado a desfrutar uma vida normal e confortável.
- E agora, o que está achando do que encontrou? – Perguntou a Lena.
- Quando imaginava que ele pudesse Ter evoluído como pessoa, não cheguei a pensar em detalhes, no que poderia ser essa evolução. A lembrança que eu tinha dele, era grandiosa, provavelmente obra da minha imaginação, uma vez que, naquela época, minha capacidade de compreender o que ele representava era muito pequena. Devo Ter construído essa imaginação, a partir da realidade que conheci, das referências que ficaram na minha memória. Ao chegar aqui, tive a primeira surpresa: pessoalmente ele me pareceu mais atraente do que eu imaginara. Eu o imaginara mais velho e gordo.
- Vocês se reconheceram de imediato?
- Eu sim. Parei naquela porteira de arame da entrada, por causa do cachorro e buzinei. Quando ele apareceu aqui, ao lado da casa, reconheci-o imediatamente. Ele, no entanto, não. Precisei refrescar-lhe a memória.
- Ela está tão diferente assim? A Lena me perguntou.
- Nem tanto. Porém, ela era uma menina grande, de cabelos curtos, calças compridas e camiseta mostrando a barriga. Agora, com cabelo mais comprido, sofisticada, mais suave e leve. Essas diferenças, associadas a minha péssima memória fisionômica, justificam o não tê-la reconhecido de imediato. Ela sabia a quem ia encontrar. Eu, nem de longe, poderia imaginar que isso aconteceria, que ela chegasse aqui.
- E o que aconteceu quando você a reconheceu? – Perguntou novamente a Lena.
- Fiquei abobado! Fui dominado por uma enorme emoção. Sentia vontade de abraçá-la, de olhá-la e fui misturando essas duas coisas: abraçava-a, me afastava para olhá-la e voltava a abraçá-la. Foi muito forte.
- E no referente à personalidade, o que você achou? – Perguntou a Lena à Rina.
- Foi uma surpresa inimaginável! Posso te dizer que, por mais que tivesse exagerado nas expectativas, não teria conseguido chegar ao pé da realidade.
- Você não tem medo que ele exploda, ao Ter a bola tão cheia assim? – Disse a Lena numa mistura de brincadeira e sarcasmo.
- Não. Ele já me criticou por isso. Considerou que eu exagerava, Me previniu contra a responsabilidade que estava lhe imputando e da decepção que eu sofreria ao verificar a realidade. Pode ser que, no início, eu tenha sido envolvida pela emoção do reencontro. No entanto, agora, principalmente depois que você chegou e da conversa a partir daí, acho que não exagerei em nada, muito pelo contrário, a admiração está crescendo, ainda. E você, o que acha dele?
A Lena olhou para a Rina e depois pra mim, fixando-me por longo tempo, ao final do que, disse:
- Estou me sentindo uma verdadeira idiota. – Falou com acentuada tristeza na voz. – Ele mudou bastante, sem dúvida. No entanto, reconheço a mesma essência que sempre teve, que tive a minha disposição, que não aproveitei e que acabei jogando fora, como uma coisa imprestável. Não sei dizer o quanto este clima que está rolando entre nós três pode estar me influenciando, no entanto, tenho a impressão de estar olhando para uma aberração. – Os olhos da Lena ficaram marejados, ela se acercou de mim e me deu um beijo na face. Foi até a Rina e beijou-a também. Voltou a sentar-se e permaneceu com a cabeça baixa e duas lágrimas caíram.
A Rina foi até ela, passou o braço sobre seu ombro, beijou-lhe os cabelos e permaneceu com a cabeça encostada na dela. Eu fiquei um instante observando-as, depois aproximei-me, abracei as duas e permacemos juntos por muito tempo, em silêncio.
A Lena quebrou o silêncio pedindo:
- Dá pra vocês me levarem embora?
- Por que? – Perguntou a Rina.
- Eu não tenho o direito de estar aqui atrapalhando vocês. Você o amou durante todos esses anos, se empenhou para reencontrá-lo, não lhe causou qualquer mal. Eu, ao contrário, provoquei-lhe muito sofrimento, desprezei tudo que me ofereceu e, por fim, joguei-o fora como se faz com um traste imprestável. Não bastasse isso, ainda o considerei um imbecíil quando soube que estava se relacionando com uma menina com idade para ser sua filha. Senti desprezo ao vê-lo com ela. Que direito eu tenho, agora, de interferir no que vocês podem desfrutar?
- Acho que você tem razão nessa auto-crítica. Porém, me parece que presenciei um verdadeiro milagre. Você demonstrou coragem de reconhecer seus erros. Isso é tão raro que eu detestaria me sentir culpada pela interrupção desta conversa, do que ela pode representar para nós. Eu te peço: fique.
- Eu também gostaria que você ficasse, que pudéssemos continuar aprendendo e compreendendo coisas que ficaram perdidas pelo caminho. Não há como recuperar o passado, no entanto, é bom viver essa emoção e fazermos o que pudermos para melhorar o futuro. Eu, também, te peço que fique.
A Lena ficou olhando para nós, calada, com lágrimas rolando pelo rosto, até que o choro se tornou convulsivo e ela escondeu o rosto entre as mãos. A Rina e eu nos levantamos, aproximamo-nos dela, a levantamos e abraçamos. Juntamos nosso choro ao dela e permanecemos abraçados por longo tempo.
Quando o choro permitiu, a Lena balbuciou:
- Obrigada...obrigada.
Nos separamos e a Rina sugeriu que preparássemos um café. Fomos os três para a cozinha e a Rina se encarregou da tarefa. Permanecemos calados, olhando-nos, abraçando-nos, beijando-nos.
Tomamos o café e voltamos a nos sentar sobre o cobertor no chão da sala. A Rina quebrou o silêncio:
- Enquanto você falava que queria ir embora por considerar que atrapalharia meu relacionamento com ele; senti uma coisa estranha, que não consegui identificar. Fiquei pensando nisso, enquanto estávamos na cozinha e, agora, me dei conta do que era. – A Rina se calou e eu a instiguei a prosseguir:
- E o que foi?
- Me ocorreu que o maior impedimento a qualquer relacionamento com você, é a sua última mulher. Se ela resolvesse voltar, o que você faria?
- Não sei. Realmente não sei. Por isso não me dou o direito de assumir qualquer compromisso, enquanto não sentir segurança que poderei rejeitá-la, se tentar voltar.
- Qual a diferença entre essa relação e as que você teve conosco? – Perguntou a Lena.
- Com você, a relação foi uma verdadeira montanha russa. Em alguns momentos, foi tão intensa e completa como esta última. No entanto, o sofrimento, durante a relação, foi intenso e muito dolorido. Nos bons momentos, encontrei em você a amante maravilhosa, a companheira e amiga, alguém com quem pude dividir as maiores intimidades. Por outro lado, teu egoísmo e prepotência acompanharam o relacionamento do princípio ao fim. Nos bons momentos, a que me referi, eles não chegaram a atrapalhar mas estiveram de plantão, entrando em ação logo que a emoção diminuia. – Silenciei, procurando na memória mais algum detalhe que merecesse menção. A Lena perguntou:
- Mais alguma coisa?
- Acho que não. O relacionamento com a Rina, foi absolutamente emocional. Não tivemos tempo, nem condições para explorarmos a amizade, companheirismo, humildade e solidariedade. O amor apaixonado dominou todo o tempo, impedindo a ação de outros valores. Qual a sua opnião Rina?
- Acho que foi isso mesmo. Pra mim, o que você dizia, suas idéias, foram muito importantes. Além disso, como já disse, me tocava profundamente o respeito que você me dedicava. Mas concordo com você, não tivemos tempo de um relacionamento mais completo. Sinto, agora, que seria extremamente feliz convivendo com você, ainda que não te amasse ou não fosse amada por você, desde que essa amizade a que você se refere existisse entre nós.
- E este último relacionamento, como foi? – Perguntou a Lena.
- Quando a conheci, ela tinha a mesma idade da Rina, quando a conheci: dezessete anos. Só que a Rina, aparentava uma idade bem maior, mais de vinte anos. Eu também era muito mais novo, portanto, a diferença de idade não causava espanto. Com esta não. Ela, além de nova, aparentava a idade que tinha. Quando a vi pela primeira vez, me pareceu mais nova ainda, uma menininha. Nem pensei na possibilidade de um relacionamento. No decorrer do tempo, conversando com ela, percebi que era uma pessoa excepcional, demonstrando idéias incompatíveis com uma menina nascida e criada na roça, sem oportunidade de maiores conhecimentos. A atração que ela demonstrava por mim, associada a impressão que me causava, desembocaram numa paixão enorme. Reagi durante um bom tempo, principalmente pela reação que imaginava, que um relacionamento entre nós, provocaria nas pessoas, principalmente entre os parentes dela. Chegou o ponto em que a emoção tomou conta e nada mais conseguiria impedir que a relação acontecesse, ainda que fosse a última coisa que eu fizesse na vida. Foi como a erupção de um vulcão. O tempo foi mostrando a aceitação daquela relação que, ao invés de críticas, foi razoavelmente bem aceita, principalmente pelos parentes dela. Foi um amor apaxonado, infinito. Até ai, é impossível compará-lo com qualquer outro, com o que senti por vocês, por exemplo. Infinito é infinito, impede comparações. A esse amor se somaram uma amizade e companheirismo indescritíveis, humildade e solidariedade inimagináveis. Ela se entregou à relação inteiramente, com uma dedicação sem comparação. Enfrentava qualquer trabalho e dificuldade com tamanha coragem e determinação que me emocionava ao extremo. Além disso, foi uma companheira em conversas, análises e discussões como nunca tinha podido desfrutar. Demonstrava uma maturidade incompatível com sua idade. Nunca brigamos. Fomos verdadeiros arrimos um para o outro, ajudando-nos, amparando-nos, consolando-nos. Em fim, um relacionamento com tamanha compatibilidade que, dificilmente, haverá outro, nas condições em que ele aconteceu. Será que vocês conseguirão acreditar que tenha sido assim mesmo?
- Sendo você quem está dizendo, não tenho porque duvidar. No entanto, parece tão espetacular, que dá a impressão de ser produto de uma paranóia. Uma verdadeira utopia. – Disse a Rina.
- Se foi do jeito que você disse; que outra mulher teria alguma chance de se relacionar com você, daqui pra frente? – Perguntou a Lena.
- Nem imagino a possibilidade de poder Ter outro relacionamento como esse. É tanto mistério envolvido nele ou envolvendo-o, que, se não o tivesse vivido, não acreditaria que fosse possível.
- E, por que terminou? – Perguntou a Lena.
- Pra mim, é o mais absoluto mistério. Tudo me indica que ele promoveu o início, pautou o desenrolar e se encarregou do desfecho.
- Que avaliação você faz do conjunto, do todo, do início, desenrolar e final? – Perguntou a Rina.
- Ele me proporcionou o pico mais alto da minha vida. Pico não, patamar, uma vez que foi bem duradouro. Por outro lado, foi o responsável pelo maior e mais intenso sofrimento. Acho muito difícil que palavras possam traduzir o que representaram esses dois extremos.
- Valeu a pena? Perguntou a Lena.
- Valeu. Além da felicidade que pude desfrutar, me sinto excepcional por ter tido a oportunidade de viver algo assim. É claro que gostaria de ter sido poupado de tamanho sofrimento. Não precisaria dele para valorizar o que pude desfrutar. No entanto, ele é a conseqüência natural e, desde o início, sempre tive consciência do que me esperava quando o relacionamento terminasse.
- Ele poderia Ter terminado por iniciativa tua. Nesse caso, você não teria porque sofrer. – Comentou a Rina.
- Claro que seria uma possibilidade. No entanto, nunca considerei essa possibilidade; tinha como certo que o final contrariaria a minha vontade.
- Como você está se sentindo agora? – Perguntou a Lena.
- Como quem foi retirado do corredor da morte e colocado num lindo jardim. Estou muito bem, feliz. Acho difícil conseguir felicidade maior que esta.
- Nem se ela voltasse? – Perguntou a Rina.
- Não sei. Talvez não seria mais como foi. O respeito e admiração que lhe dediquei e que foram fortes componentes do que eu senti na relação, dificilmente voltariam a ser os mesmos. No entanto, se ela voltasse a ser o que foi, com certeza tudo se repetiria, provavelmente com melhor aproveitamento. Porém, acho difícil que isso aconteça. Este nosso encontro e o que possa resultar dele, também pesarão muito. Em fim, a magia que envolveu o relacionamento, dificilmente poderá ser recuperada, se ela não recuperasse a personalidade que teve.
- Lena, você gostaria de saber o que ele sente em relação a nós ou não? – Perguntou a Rina.
- Será que eu gostaria? – Pensou um pouco e continuou – Acho que a palavra não é gostar e, sim , necessitar. Sinto que necessito desse parecer, em relação a mim. Não que tenha que ser agora, mas em algum momento, gostaria de saber.
- Você acha que poderia declarar o que sente em relação a nós? A Rina me perguntou.
- Posso dizer o que estou sentindo agora, o que não implica que amanhã deva ser o mesmo.
- Sou toda ouvidos. – Disse a Rina.
- Eu também. – confirmou a Lena.
- Em relação a você Rina, considerando tudo o que você passou, o amor que me dedicou durante todos esses anos, o esforço para me encontrar, a sua personalidade, sensibilidade e inteligência demonstradas; me provoca uma emoção enorme, um carinho e um respeito incalculáveis. De resto, espero que o que você tenha sentido em mim, diga mais que qualquer palavra. Por tudo isso e pelo momento em que você chegou, não sentiria nenhum mal em te acompanhar até o final da minha vida, me empenhando para te oferecer tudo que esteja a meu alcance.
- Obrigada.
- Lena, até hoje, vinha te considerando uma pessoa desprezível. Por tudo que já coloquei hoje aqui. No entanto, foi uma agradabilíssima surpresa sua demonstração de humildade, admitindo a possibilidade de Ter errado e se dispondo a tentar corrigir o que for possível. Eu que sempre defendi a humildade, o reconhecimento dos erros como caminho para aprendizado e crescimento; sinto-me tremendamente gratificado em poder presenciar isso acontecendo em uma pessoa. Tenho certeza que, se você conseguir prosseguir nesse caminho, juntando as correções às qualidades que já possui, será uma pessoa excepcional, a quem eu gostaria de estar ligado. Acredito que as dificuldades que terá que enfrentar para conseguir o objetivo, serão enormes e eu adoraria poder ajudá-la no que me for possível. Não gostaria de perdê-la e deixar de desfrutar os resultados dessa guerra.
- Isso quer dizer que você gostaria de ficar com as duas? – Perguntou a Rina.
- Se isso fosse possível, sem causar problemas e constrangimentos, não teria dúvida em responder afirmativamente. No entanto, não vejo a menor possibilidade de que isso possa acontecer. No momento, o que ganho só dá pra me sustentar, nem viajar eu posso. Portanto, a nossa relação vai depender da possibilidade de vocês virem aqui. Por outro lado, considerando a influência do mistério, ele deverá determinar o que vai acontecer no nosso futuro.
- Se você tiver que escolher, está claro que optará pela Rina. – Disse a Lena.
- Se você me obrigasse a escolher, não tenho dúvida de que a escolha seria essa mesmo. Se ela impusesse a escolha, cairia muito no meu conceito dificultando ser a escolhida. O que tenho para oferecer, no momento, é amizade sincera e incondicional, além de carinho. Adoraria me apaixonar de novo e poder desfrutar essa emoção. No entanto, isso não depende de mim.
- Se você se apaixonasse por outra, como agiria conosco? – Perguntou a Lena.
- Procuraria preservar a amizade e desfrutá-la.
- E se a outra não aceitasse a continuidade dessa amizade? – Voltou a perguntar a Lena.
- Eu seria obrigado a abrir mão da paixão.
- Eu vou me esforçar para te desfrutar ao máximo, evitando que o ciúmes crie obstáculos para esse desfrute. Confio plenamente na sua sensibilidade, bom senso e inteligência. – Disse a Rina.
- Você vai acabar provocando a explosão da minha bola! – Brinquei me dirigindo à Rina. – Não sei o que vai acontecer daqui por diante, no entanto, seja lá o que for, contrai uma dívida impagável com você. Você tirou meu amor próprio do fundo de uma fossa, limpou-o e está lustrando-o, fazendo-o brilhar. Não há o que pague o que você está fazendo. Muito obrigado.
- Ainda estou muito confusa e acredito que vai demorar para que eu consiga digerir tudo que está acontecendo. Estou convencida da importância do mistério interferindo nas nossas vidas. Gostaria de poder contar com a amizade de vocês dois e a ajuda que possam me dar na minha tentativa de mudança. No meio dessa confusão que se estabeleceu na minha cabeça, sinto que vocês poderão ser muito importantes pra mim, como, aliás, já estão sendo. – Disse a Lena.
- Bem, sugiro que aproveitemos essa abundância de humildade e solidariedade de que estamos possuídos, para dormirmos. Vocês duas podem usar a cama de casal, enquanto eu ocupo esta aqui da sala. Aproveitem para refletir no que aconteceu hoje, enquanto o sono não chegar.
- Eu gostaria de sugerir, para aproveitar este momento mágico que estamos vivendo, que dormíssemos os três juntos, aproveitando a energia que deve fluir do contato entre nós. Que você acha Lena? – Sugeriu a Rina.
- Acho que é uma boa idéia. O que você acha? - Ela perguntou a mim.
- Emocionalmente acho ótimo. No entanto, meu ronco e movimento durante a noite, pode irritá-las e por tudo a perder.
- Se isso incomodar, realmente, te acordaremos e você vem pra outra cama. – Disse a Lena.
Depois do banho nos deitamos e desfrutei de um sono profundo e leve como há muito não acontecia.
Quando acordei as duas ainda dormiam. Esgueirei-me entre as duas, o mais suavemente que pude e sai da cama. Contemplei-as e senti um carinho doce por aqueles rostos relaxados e tranqüilos.
Enquanto preparava o café, ouvi que elas despertaram e conversavam, embora não distinguisse o que diziam.
Deixei o café e o leite sobre o fogão e fui tratar das galinhas e dos porcos. Quando voltei, elas ainda continuavam conversando na cama. Fui até o mangueiro tirar leite.
Ao voltar, elas saiam do banheiro e continuavam conversando. Desejei-lhes bom dia e perguntei sobre como passaram a noite e se eu incomodara muito. A Lena respondeu primeiro:
- Há muito não dormia tão bem. Comentei com a Rina que passara muitas noites mal dormidas com você roncando a meu lado. Era um verdadeiro martírio! Você se lembra do quanto eu reclamava?
- Lembro. Uma vez, você me chacoalhou várias vezes durante a noite. Não era um simples chacoalhar para interromper o ronco; era uma verdadeira agressão, ostensiva vingança. Por volta das cinco horas da manhã, acordado por um chacoalhão, levantei, me vesti e sai para a rua. Andei por mais de uma hora sentindo uma mistura de culpa por incomodar seu sono e raiva pelo seu comportamento.
- É verdade. Esta noite, demorei para pegar no sono, pensando no que conversáramos. Você dormiu rápido e logo começou a roncar. Passei a mão no seu rosto, te acariciei e senti uma ternura imensa. Pensei no quanto havia sofrido com seu ronco, quanta raiva ele me causara. Agora, eu estava alí te acariciando, percebendo que o ronco não me incomodava, pelo contrário, me provocou ternura. Percebi quanto a nossa pré-disposição interfere no que sentimos e, até, nas nossas ações. Esta noite me senti gratificada por ouvir teu ronco, ele comprovava que você estava ali, que a nossa conversa de ontem fora verdadeira e não um sonho. Percebi que eu tinha uma prevenção contra você, que me forçava a buscar motivos pra te criticar, te diminuir. Não consigo atinar com o que poderia provocar isso, mas está claro que isso acontecia.
- Eu dormi de imediato, como uma pedra. Acordei leve e bem disposta com há muito não acontecia. – Disse a Rina.
Tomamos café e saímos para andar um pouco. Caminhamos pelas estradas internas da fazenda e conversamos o tempo todo. A Lena contou o que fizera nos últimos anos, alguns romances que mantivera e falou sobre os filhos. A Rina também falou sobre sua vida, as experiências, os estudos, o trabalho e a decisão de se dedicar, exclusivamente, à tese de mestrado, durante algum tempo. Eu me dediquei a ouvir, falando muito pouco. Na volta, a Lena apanhou alguns limões e preparou uma limonada. Enchemos os copos e fomos nos sentar no gramado, na frente da casa. A Lena me perguntou:
- Você está com algum problema? Quase não falou durante a caminhada.
- Foi de propósito. Me esforcei pra controlar a matraca e curtir o que vocês diziam. Foi muito bom. Há muito que acredito que é muito mais importante ouvir do que falar, no entanto, tenho grande dificuldade de agir de acordo com essa crença. Me empolgo e falo pelos cotovelos. Muitas vezes percebo que chateio as pessoas por falar tanto.
- Infelizmente deve ser verdade. Você vai fundo nas questões e a maioria das pessoas prefere a superficialidade, onde se sentem mais seguras para ocultar sua leviandade. – Disse a Rina.
- Eu sou testemunha disso. Me sentia muito mal percebendo que ele me conhecia mais que eu mesma, identificando coisas que eu mantinha trancadas a sete chaves dentro de mim e outras que eu procurava esconder de mim mesma. Mesmo não acusando, sendo condescendente com os defeitos e erros alheios, ele não consegue esconder o que sabe e, isso, é assustador para a maioria das pessoas. Ouvi muitas pessoas criticando-o, acusando-o de coisas que, consideradas com isenção, seriam motivo de elogios e não de críticas.
- Como assim? – Quis saber a Rina.
- Em duas ocasiões ele foi acusado por várias pessoas, todas amigas dele, de estar tendo caso com com mulheres, amigas comuns a todos. O tempo se encarregou de mostrar que não era verdade, que quem manteve casos com essas mulheres, foram dois amigos dele, maridos das suas maiores acusadoras. Ele sempre negou que tivesse mantido essas relações, no entanto, nunca acusou os verdadeiros amantes, o que poderia tê-lo livrado das acusações recebidas.
- Lena, é inacreditável observar sua transformação! Passou de crítica sarcástica a defensora obstinada; de especialista em acentuar defeitos e erros, em condescendente, empenhando-se em minimizá-los e até escondê-los. Até quando isso deve durar? – Perguntei.
- Você acha que isso é só uma fase?
- Gostaria que não fosse, porém, é uma mudança muito rápida e radical. Aqui, só nós três, sem interferências externas de outras pessoas, é relativamente fácil manter-nos assim humildes e solidários. No convívio com outras pessoas, com o egoísmo e prepotência imperando, as coisas são bem mais difíceis. Torço com todas as forças pra que você resista e supere as dificuldades. Mas, enquanto estivermos aqui, embebidos nessa mágica de confiança, lealdade, humildade e solidariedade; vamos tirar o máximo proveito. Concordam? – Perguntei-lhes.
- De pleno acordo. – Disse a Rina
- Idem. Declarou a Lena.
- Que tal você nos dizer o que acha de si próprio? – Perguntou a Rina.
- É dificil. Já tentei muito me definir, descobrir quem sou, os porquês de mim. Em todas as tentativas o pensamento acaba se desviando, como se intencionasse me impedir de me descobrir.
- Ela pediu pra você falar sobre o que acha de si mesmo; não do que seja realmente. – Ponderou a Lena.
- Sou sensível e racional, sem atinar com qual das duas características é mais influente, em mim. Na racionalidade, procuro simplificar ao máximo os problemas, eliminando o que possa camuflar as causas, dificultando o raciocínio e as possíveis soluções. A emoção tende a me dominar, obrigando-me a grande esforço para racionalizar. Tenho enorme dificuldade de me opor a pensamentos involuntários, que me atormentam e dificultam a racionalidade. Tenho enorme dificuldade para usar a hipocrisia, por isso sou vulnerável, me expondo com facilidade. Por fim, sinto muito forte a influência do mistério sobre mim e, considero cada vez mais, que não passo de um marionete nas mãos dele. Nunca tive visões, premonições ou qualquer coisa desse tipo; no entanto, acredito que algo me dirige, através de provocações da emoção e dos pensamentos que não me pertencem. Luto contra uma convicção cada vez mais forte: que o ser humano é desprezível, gerador e alimentador do mal, quando tem tudo para promover e facilitar o bem e a felicidade. Claro que sei que existem exceções, mas a análise das experiências me tem demonstrado que são só exceções.
O silêncio se estabeleceu e permanecemos por um bom tempo imersos em nossos próprios pensamentos.
- Estava aqui pensando que você declarou o que acha de si mesmo, de maneira muito resumida. Você considera que é só isso? – Perguntou a Lena.
- Não sei a que você se refere quando diz: “só isso”. O que você acha que haveria mais do que isso?
- Não sei. Você já pensou sobre tanta coisa, sobre os mais variados assuntos. Presenciei tua atuação profissional e fui testemunha da admiração que você causava nesse ambiente. Conheci tua luta no movimento estudantil, o empenho com que você se dedicou a ela e a força da argumentação na defesa do que pretendia. Presenciei teu relacionamento com os amigos, a solidariedade dedicada a eles. Acho que é muita coisa, pra caber na definição que fez de si mesmo. – Disse a Lena.
- Concordo com a Lena. Acho que, por modéstia, você está sonegando dados que você conhece sobre si mesmo. O que você está escondendo? – Perguntou a Rina.
- Não escondi nada que seja do meu conhecimento. Claro que haverá coisas que desconheço, mas, essas, não tenho como abordá-las, simplesmente porque não as conheço. Por outro lado, acho que vocês não atentaram para o que coloquei. Acredito ter me considerado por inteiro, sem esconder nada.
- Continuo não acreditando. – Disse a Lena.
- Nem eu. – Emendou a Rina.
- Bom, vamos tentar de outro jeito, então. O que caracteriza uma pessoa é o que diz, faz, pensa, sente e demonstra de alguma maneira, não é isso? – As duas concordaram. – No meu conceito, o que possibilita essas coisas é: razão, emoção, memória, valores e a interferência externa, através da emoção e dos pensamentos involuntários. A razão nos possibilita coletar dados, analisá-los, estabelecer hipóteses, definir teses e tirar conclusões. A emoção nos provoca sentimentos bons e ruins, pode ser provocada pela razão mas, na maioria das vezes, tenta subjugá-la, dominá-la, colocá-la a seu serviço. A não ser quando provocada pela razão, ela é totalmente autônoma, independe de nossa vontade. A memória é um banco de dados que armazena informações. Os pensamentos involuntários independem de nossa vontade e, como a emoção, agem contra ela.
- Contra quem? – Perguntou a Lena.
- Contra a nossa vontade. Mesmo que não os queiramos e nos esforcemos para expulsá-los; eles permanecem ocupando nossa mente, normalmente, provocando emoções ruins e dificultando a ação da razão. Por fim, somos equipados com valores, usados pela razão e pela emoção como parâmetros para julgarmos o que é bom ou ruim, certo ou errado, através de comparação. Vocês concordam com isso ou acham que há alguma coisa diferente disso, influenciando as ações e pensamentos do ser humano? - Perguntei às duas.
- Eu acrescentaria os cinco sentidos: olfato, paladar, tato, visão e audição. – Disse a Rina.
- Eu não vejo que haja mais alguma coisa. – Disse a Lena
- A Rina tem razão, havia me esquecido dos sentidos, que tem uma influência importante. Vou tentar explicar o que acho sobre como essas coisas me afetam e que uso faço delas. Os valores mais importantes, pra mim, são: humildade, solidariedade, honestidade e lealdade. O amor e a amizade são as emoções a que sou mais sensível. Quando verdadeiros e correspondidos, me causam enorme felicidade, fazendo com que todo o resto perca importância. Quando não correspondidos e, principalmente, quando traídos; são causadores da maior infelicidade. Portanto, esses dois sentimentos, são causadores dos dois extremos: felicidade e infelicidade. Tenho enorme dificuldade de resistir à emoção. Ela e os pensamentos involuntários tendem a me dominar e me obrigam a esforços hercúleos para enfrentá-los. A perda de um amor, de uma amizade, ou a decepção com qualquer deles, me causam um mal terrível. O pensamento involuntário me atormenta e me instiga a acusar culpados e castigá-los, provocando desejo de vingança. Uso toda minha força para enfrentar tanto a emoção ruim como os pensamentos involuntários, através da razão. Me esforço para identificar dados, buscá-los, analisá-los, buscando ser justo. Me é muito difícil fazer isso, pela ação da emoção e dos pensamentos involuntários. Tanto uma como os outros, procuram escravizar a razão a seu serviço, tentando justificar o que pretendem, dificultando que eu possa usá-la. É muito difícil! Sou constantemente tentado pelo egoísmo, prepotência, preconceitos e covardia, e me esforço para não ser dominado por eles. No entanto, muitas vezes fracasso nesse intento e repudio meu comportamento; principalmente quando exagero nas críticas e cobranças.
- Nossa! Nunca tinha considerado que a emoção pudesse usar a razão a seu serviço. – Exclamou a Lena, demonstrando surpresa.
- Acho que muitos planos, até mirabolantes, com intuito de vingança, são totalmente elaborados pela emoção, sem interferência do indivíduo que fica totalmente dominado. Aliás, acredito que grande parte das pessoas, se não a maioria, tem a razão totalmente dominada pela emoção e pelos pensamentos involuntários.
- Explica esse negócio de pensamentos involuntários, que ainda não consegui entender o que sejam. – Pediu a Rina.
- São pensamentos que ocupam nossa mente, independente de nossa vontade e, até, contra ela. Ao perder um ente querido, por morte, não há o que fazer, é uma situação irreversível. As pessoas conscientes, compreendem que é inútil sofrer mais que o necessário, que o inevitável. No entanto, por mais que o indivíduo tente esquecer o ente morto, sua lembrança continua no pensamento,, mostrando detalhes, causando sofrimento, dificultando o uso da razão, pelo indivíduo. Em resumo, são aqueles pensamentos que gostaríamos não Ter mas que insistem em permanecer no nosso pensamento. – Ficou claro?
- Ficou. – Respondeu a Rina.
- Quanto à memória, a minha falha muito. Me lembro de detalhes pequenos de coisas distantes; no entanto, ela falha quando mais preciso dela. Ela parece Ter alguma autonomia, colocando no pensamento coisas que não pedi e negando-se a fornecer dados que desejo.
- Você ainda não falou sobre a sua racionalidade. – Disse a Lena.
- Considero que minha racionalidade é normal. Ela não tem nada de excepcional. Ela funciona normalmente, analisando dados, procurando entender e compreender fatos e buscando solução para problemas. Ela não tem nada de genialidade, muito pelo contrário, tem que trabalhar muito para entender e compreender. Tenho muito trabalho para evitar a interferência da emoção e dos pensamentos involuntários, que pretendem usá-la, impedindo-me de fazê-lo. Acredito que a capacidade da minha racionalidade é igual a de qualquer um. No entanto, verifico uma diferença entre eu e a maioria das pessoas: eu desenvolvo um grande esforço para possibilitar um mínimo de liberdade para a racionalidade, segurando a emoção e os pensamentos involuntários para que ela possa trabalhar para mim.
- Muitas pessoas acham que você tem uma inteligência excepcional. – Disse a Lena.
- Me inclua entre essas pessoas. Declarou a Rina.
- Pois eu, que acredito Ter mais informações sobre mim do que qualquer uma delas, considero que elas estão erradas. Se eu me submeter a um teste de QI, por exemplo, provavelmente não passarei da média e, não duvido que fique abaixo dela. Quando decidi voltar a estudar, depois de Ter ficado fora da escola por dez anos; muita gente achou que isso era uma coisa excepcional. Consideraram isso, porque consegui concluir o primeiro e o segundo grau em menos de um ano, fazendo supletivo e conclui a faculdade no tempo mínimo.
- E isso não é excepcional? – Perguntou a Lena.
- Não. Isso foi fruto de, motivação, determinação, muito trabalho e persistência. Coisas absolutamente possíveis para qualquer pessoa normal. Me dediquei de corpo e alma a isso e trabalhei o que pude para conseguir meu objetivo. Não foi fácil, pois como já disse, tenho as mesmas dificuldades que qualquer um para aprender. Além de tudo, tive que vencer as deficiências da memória, que me dificultava decorar coisas. Portanto, não teve nada de excepcional. Foi resultado de determinação, trabalho e perseverança.
- No tempo em que trabalhei com você, pude verificar que você resolvia problemas com facilidade, enquanto outras pessoas tinham dificuldade para fazê-lo, o que causava admiração nelas. Por que isso acontecia? – Perguntou a Lena.
- Porque elas não conseguiam prover sua racionalidade do mínimo de liberdade que ela necessita para trabalhar. Considero que o maior problema, além da interferência da emoção e dos pensamentos involuntários; é a tendência que as pessoas tem para fugir do simples, preferindo a complexidade. Se tenho algum mérito, ele está na simplificação, no buscar transformar a complexidade em segmentos simples e trabalhar com eles. É só isso.
- De qualquer maneira, isso é excepcional! Considerou a Rina.
- Acho que esse é um dos maiores problemas da humanidade. As pessoas preferem supervalorizar o normal, a tentar vencer o comodismo e usar o que está ao alcance de qualquer um. Entendeu? Qualquer um poderia Ter feito o que fiz, desde que se dedicasse, trabalhasse e se submetesse aos sacrifícios necessários. Foram cinco anos de muito estudo, trabalho e abstinência de prazeres e lazer. Só isso. Eu quis, trabalhei, enfrentei dificuldades e consegui. Foi só isso.
- Você quer dizer que, conseguiria qualquer coisa que quisesse, desde que se propusesse a trabalhar e arcar com os sacrifícios exigidos? – Perguntou a Rina.
- Não. Já quis muito, várias coisas, trabalhei muito para conseguir, me propus a todos os sacrifícios necessários e não consegui. A análise racional de todos esses projetos, os mostravam como factíveis, no entanto; não fui capaz de realizá-los com sucesso. Fracassei em todos eles. Eu afirmei que, o que fiz ao estudar e me formar, é possível a qualquer um. Eu provei isso. No entanto, sou exemplo de que tudo o que fiz em várias outras tentativas de realizações, não surtiram resultado satisfatório, não consegui realizar os objetivos. Está claro?
- Não muito... – Disse a Lena, demonstrando confusão.
- Acho que compreendo o que você está querendo dizer. – Disse a Rina. – É mais ou menos como o que acontece quando as pessoas elogiam alguém por Ter agido com honestidade. Fazem isso porque elas e a maioria não teria agido com honestidade no caso em questão. Consideram como exceção o que deveria ser a regra. É mais ou menos isso?
- É. Transformam em exceção o que deveria ser a regra. Isso acontece com a solidariedade, com a humildade, com a lealdade e tantos outros valores que deveriam nortear a conduta das pessoas. No entanto, o desvirtuamento dos valores bons, se generalizou tanto pela sociedade, que o seu uso se transformou em exceção. Com a racionalidade acontece a mesma coisa. O império dos preconceitos, tabus, preguiça mental, domínio da emoção e dos pensamentos involuntários; criam tamanhos impecilhos à racionalidade, que ela não tem como agir. Ao invés de se esforçar para se livrar dos obstáculos à racionalidade, as pessoas preferem enaltecer como excepcional os que simplesmente se empenham para que a racionalidade possa atuar.
- Acho que compreendi o que você defende e acho razoável, bem provável, mesmo. No entanto, continuo te considerando excepcional. Não pela inteligência, mas pela percepção do que a impede de funcionar, de estar a serviço da solução de problemas. Isso me parece uma descoberta excepcional! Agora, depois da sua exposição, isso me parece tão evidente, tão simplesmente claro, que me sinto uma verdadeira idiota por não Ter atentado para isso, até aqui. Portanto, meu amor, não gaste tempo em tentar me convencer que você é normal. Não vai adiantar. Desde que cheguei aqui, até agora, minha admiração por você só tem crescido. Portanto, poupe-se de tentar me convencer de que não é merecedor dessa admiração, de ser uma pessoa excepcional. - Disse a Rina.
- Eu confesso que ainda estou muito confusa. Acho tudo isso que você está defendendo, muito razoável, bastante lógico. No entanto, não sei de que valem esses conceitos e valores numa sociedade como a nossa. Veja o seu caso, toda sua capacidade, toda a compreensão que você tem de tantas coisas, te serviram de que? Enquanto um monte de imbecis ocupa altos cargos, muito bem remunerados, tanto na inciativa privada, quanto no serviço público; você está aqui, tomando conta de uma fazenda, de algumas cabeças de gado e recebendo um salário que mal dá para o seu sustento. Você teve muitas oportunidades de alcançar grande sucesso financeiro e não o fez por incapacidade de jogar pelas regras do sistema. De que adiantou tudo o que você pensou, todas as lutas travadas, todo o sacrifício. O que você ganhou com isso? – Perguntou a Lena, depois de expor seu ponto de vista.
- Ganhei conhecimento, compreensão, bastante felicidade e um bocado de sofrimento. Tenho plena consciência de que sou um fracassado passageiro da nave do capitalismo. Mas, e você? Você procurou jogar o jogo, apelou para a prepotência, para a hipocrisia, pisou em pessoas, entre outras coisas. Por que o sucesso financeiro não está ai, ao teu lado? Por que você não o conseguiu?
- Falta de sorte, talvez. – Respondeu a Lena.
- Bom, tudo que conheço de você é o que conversamos aqui. Não é um conhecimento suficiente para permitir julgamento substancial. No entanto, Lena, você não acha que o seu insucesso financeiro pode ser causa de o lado bom Ter interferido no ruim? – Perguntou a Rina.
- Como assim? Não entendi.
- Ele disse que você interpretava um papel. Que se mostrava corajosa, solidária, racional e determinada, entre outras qualidades. É difícil acreditar que isso tenha sido só interpretação, que algo disso não fosse verdadeiro. Pode ser que isso tenha interferido nas horas erradas, atrapalhando o resultado das armações preparadas, criando problemas para o jogo que você pretendeu jogar com as regras adequadas. Dá pra entender a minha tese? – Perguntou a Rina, depois da explanação.
- Não me atrevo a considerá-la absurda, no entanto, não é suficientemente lógica. É possível, mas não é tão evidente. Não sei não... – Disse a Lena.
- O que pude perceber na Lena, é que ela foi egoísta e prepotente, acreditando que tinha capacidade maior que a real e negando-se a trabalhar em coisas que lhe parecessem indignas dela. Isso eu pude constatar diversas vezes. Se isso não foi determinante, acredito que tenha sido importante para seu fracasso. Ninguém pode negar que ela tinha bastante capacidade. Continuo acreditando que a tenha. No entanto, faltou humildade para considerar que essa capacidade poderia não ser suficiente, que seria necessário aumentá-la e que, isso, poderia exigir sujeitar-se a trabalhos menores, como necessidade para alçar vôos mais altos. A reação a sujeitar-se a essa necessidade, pode Ter causado a impossibilidade de alcançar os objetivos. – Considerei.
- Isso é bem provável. Não é nada lisonjeiro, mas é bastante provável. – Concordou a Lena, demonstrando incômodo.
- Lena, imagino como deve estar sendo difícil pra você encarar todas essas críticas. Eu adoraria me eximir de fazê-las, no entanto, acreditando que você está em busca de um novo caminho, de livrar-se de problemas que te incomodam; acho fundamental a identificação dos possíveis erros. Os erros, quando admitidos e reconhecidos, possibilitam aprendizado e meios de evitar sua repetição, além de mudanças de rumo quando se constate que os escolhidos nos levaram ao indesejado. O ideal seria que você não se melindrasse, não se ofendesse com a exposição de possíveis erros. Isso te possibilitaria admiti-los como possíveis, analisá-los com liberdade, sem pressões emocionais; o que evitaria sofrimento e possibilitaria soluções. No entanto, reconheço a dificuldade de se conseguir isso, principalmente pela intervenção da emoção que, como já acusei, é muito forte, exigindo grande esforço para opor-nos a ela.
- Eu concordo. Reconheço a dificuldade de encarar nossos erros, o sofrimento que isso causa. Não é teoria, é experiência. Tentei isso várias vezes e recai outras tantas. No entanto, quando pude enfrentar a realidade, encarar os erros, admiti-los e compreendê-los; o resultado foi gratificante. Nós estamos totalmente solidários com você e, nem ele, nem eu, temos a mínima intenção de te crucificar. – Estou certa? A Rina me perguntou.
- Totalmente. Acredito que estamos vivendo um relacionamento solidário, leal e humilde, reconhecendo nossos defeitos e dificuldades. Se cada um de nós não conseguir se enfrentar num ambiente destes, dificilmente o conseguirá em qualquer outro. Portanto, Lena, você não tem que se expor se não quiser. Porém, se considerar que poderemos te propiciar alguma ajuda, conte conosco, com nossa solidariedade e com a lealdade que somente verdadeiros amigos podem propiciar. Portanto, a opção é sua. – Eu disse.
- Acredito nisso. É que é muito difícil encarar-nos, olhar pra dentro de nós e verificar quanta coisa ruim esteve, e ainda está lá. A razão me indica que a solução é exorcizar tudo isso, como numa confissão: admitir todos os erros, pedir perdão, pagar a penitência devida e livrar-se desse peso. No entanto, algo, aqui dentro, tenta impedir que isso seja feito. Mas, vou tentar, vou me esforçar para conseguir e espero contar com a vossa ajuda. Disse a Lena.
- Vou te sugerir um método para organizar essa auto-análise. Baseie-se nos valores que considero fundamentais, quais sejam: humildade, solidariedade e lealdade. Procure verificar onde você os substituiu pelos seus opostos. Tente escrever, fazer uma listagem do que encontrar. Procure se lembrar do máximo de acontecimentos que deram certo e que não, avaliando cada um no que te parecer mais significativo e que possa Ter causado o sucesso ou o fracasso. – Recomendei à Lena.
- E é bom não esquecer que todas as pessoas tem seu lado ruim. Que isso não é exclusividade de ninguém. A diferença é a intensidade e a freqüência com que isso acontece no indivíduo. Quantas mâezinhas, com caras de santas, não causaram males enormes objetivando proteger ou propiciar melhorias aos filhos? É muito comum que pais e demais familiares criem os maiores obstáculos a pessoas amadas por seus filhos, simplesmente por considerarem não serem um bom partido. São capazes de matar um grande amor acreditando estar protegendo os filhos. Desde que a questão não envolva os filhos, irmãos ou outros familiares; essas pessoas podem ser humildes e solidárias, bons exemplos de pessoas admiráveis. – Disse a Rina
- E é bom, também, não esquecer do mistério, interferindo, provocando, sendo, talvez, o maior responsável pelo que nos acontece e pelo que praticamos. Alertei eu.

Enquanto eu me dediquei a pescar uns peixes para o almoço, a Rina se dedicou a ler o livro que eu estava terminando sobre o rompimento do meu último relacionamento e a Lena se dedicou a recolher, na memória, casos que lhe fornecessem indicações das causas de seu comportamento, listando-os.
Preparei o almoço: peixe frito e arroz branco. A Rina preparou uma caipirinha. Após o almoço, deitei-me para cochilar um pouco, enquanto as duas continuaram o que faziam antes do almoço.
- Ao invés de cochilar, dormi durante duas horas. Há muito tempo isso não acontecia. Fui até a frente da casa e verifiquei que as duas conversavam enquanto caminhavam em volta do lago. Não me viram. Entrei, sentei-me na sala e me dediquei a ler o livro que estava lendo. Depois de uma meia hora, as duas apareceram na porta e a Rina perguntou: Tudo bem? Tudo. – Respondi - Estranhei porque ontem você cochilou menos de quinze minutos e já levantou. Hoje você dormiu quase duas horas. – A Rina demonstrou que se preocupara. – Fui te olhar, mas verifiquei que dormia tão gostoso, que saí de mansinho. - Quando acordei, verifiquei que vocês conversavam, enquanto caminhavam em volta do lago. - Conversávamos sobre a leitura que a Rina está fazendo do teu livro, onde você relata o final do último relacionamento. - Disse a Lena. - A Lena fez uma pausa nas suas reflexões e me perguntou o que eu estava achando sobre o que estava lendo. Disse-lhe que estava impressionada com o estilo da escrita, onde se alternam relatos emocionais, análises e poesias. Percebe-se a intensidade da emoção que te dominava. No entanto, as análises são claras, objetivas e, muitas vezes, opondo-se ao que a emoção induziria a pensar. Como você conseguia analisar racionalmente, encharcado de tamanha emoção? – Perguntou a Rina. - Não foi fácil, mas, também, não foi tão difícil assim. Exige esforço, mas é possível. Não sei qual a impressão do leitor, mas acredito que, mesmo nas análises, a emoção aparece, ainda que sutilmente. - Acho que sim, mas sem interferir significativamente na análise que é bastante racional, ou melhor, totalmente racional. – Comentou a Rina - A Rina não está demonstrando na tua frente, mas ela acha incacreditável que um cara como você possa ser abandonado por uma mulher, principalmente se o motivo não for uma nova paixão. Ela insistiu para que eu explicasse os motivos que me levaram a fazer isso e eu tentei colocá-los. No entanto, ela não se convenceu...Nem eu. – Disse a Lena. - Os motivos que a Lena alegou, a princípio, parecem lógicos, no entanto, se aplicariam bem a uma relação normal, com um homem comum. Porém, todas elas caem por terra quando o homem em questão é você. – Disse a Rina. - Por que você acha isso? Baseada em que? – Perguntei. - O desejo de liberdade, por exemplo. É um motivo bastante forte para alguém desfazer um relacionamento. No entanto, segundo o que ela mesma diz, você nunca tentou o menor cerceamento da liberdade dela. Ela sempre teve toda a liberdade para fazer o que bem entendesse, até o que contrariava sua opinião. Ainda que ela não te amasse, isso não seria motivo para terminar a relação, pelo menos enquanto não surgisse um novo amor. Você não cobrava que ela te amasse, mesmo porque sabia que isso não teria sentido. Aceitava que a relação se sustentasse na amizade. Ela diz que você nunca forçou a prática sexual, que esta só acontecia quando ela queria. Ela teve oportunidade de experimentar manter relações com outros homens, enquanto o relacionamento de vocês vigorava, te contou, e você nunca a recriminou por isso, considerando que era um direito dela procurar alguém que lhe fosse mais importante que você, que lhe despertasse coisas que você não conseguia. Portanto, ela poderia continuar desfrutando as coisas boas que você poderia oferecer, mantendo o relacionamento até que um novo amor aparecesse. – Falou a Rina e perguntou à Lena: - - - Que outros motivos você alegou? - A falta de exclusividade, o fato de ele amar outras mulheres e me dividir com uma delas, sua primeira mulher. - Ter que dividir um companheiro, principalmente se for muito amado, realmente não é fácil. No entanto, se você o amava, essa emoção não era tão forte, mas, mesmo que fosse; o que ele te oferecia era muito mais do que a maioria dos homens poderia oferecer, mesmo que te dedicassem total exclusividade. Você tinha indícios mais do que suficientes de que o casamento dele estava irremediavelmente condenado ao final. Quando você o abandonou, ele já estava totalmente separado da mulher e poderia se dedicar exclusivamente a você. Portanto, esse motivo também se mostrou totalmente descabido. Disse a Rina. - Analisados, agora, todos os motivos se mostram incoerentes, totalmente irracionais e me arrependo amargamente de ter sido levada por eles. No entanto, naquela época, me pareciam mais que suficientes para terminar com o relacionamento. Disse a Lena. - Tinha mais um motivo que consideramos forte. Qual era mesmo, Lena? – Perguntou a Rina. - Eu tinha esperança de progredir e Ter sucesso e não pretendia dividir isso com ninguém. Considerava que, com ele ao meu lado, empenhado como era em me ajudar, isso apareceria como componente das causas do sucesso conseguido e eu teria que reconhecer sua participação. Eu não queria isso. Pretendia receber sozinha os louros do meu sucesso, sem Ter que dividi-los com ninguém. Agora compreendo o tamanho da imbecilidade que me dominava; a idiotice de tamanho egoísmo e a falta de capacidade para perceber isso. Isso agora está tão claro, que me sinto a maior das idiotas entre as pessoas. – Declarou a Lena, demonstrando grande pesar. - Se você não o tivesse deixado, ele provavelmente não teria conhecido esta última mulher, provavelmente não estariam aqui e, eu provavelmente não o teria encontrado. Portanto, de minha parte, devo te agradecer por tê-lo abandonado. Disse a Rina, em tom sombeteiro, sorrindo. - A racionalidade é muito importante. Veja-se a análise que vocês fizeram, analisando motivos, causas, analisando os fatos e concluindo que a Lena errara ao decidir me abandonar. Tudo muito racional e perfeitamente compreensível. Porém, os acontecimentos futuros, inclusive os de agora, quando fui novamente abandonado, quando vocês apareceram, como se isso tivesse sido combinado, a possibilidade de estarmos, agora, conversando sobre tudo isso; me parece ser obra de algo muito misterioso, absolutamente imcompreensível! – Disse eu. - É verdade. A racionalidade explica quase tudo. Quase! O que não conseguimos explicar, portanto, não compreendemos; mostra que, pelo menos isso, é misterioso. No entanto, pode ser que, até o que acreditamos compreender e conseguimos explicar; também seja obra do mistério que, inclusive, nos possibilitou as explicações, levando-nos a acreditar que ele não tenha interferido. Você acha que isso pode ser assim? – Perguntou a Rina dirigindo-se a mim. - É provável. Muito provável. Me parece ser o mais provável. O mistério arma o seu teatro, convoca os atores, dirige a interpretação e, finalmente, faz com que os atores se sintam responsáveis, autores da peça. No que temos analisado aqui, há indícios muito fortes de que possa Ter acontecido isso: que não tenhamos passado de fantoches, comandados pelo mistério. – Eu disse. - Rina, você não o abandonou, dividiu-o com a ex-mulher, perdeu-o, viveu anos atormentada por esse amor, procurou-o e encontrou-o . E agora, como está se sentindo? Como o vê? O que espera que aconteça? – Perguntou a Lena - É só isso que você quer saber? Mais nada? – Perguntou a Rina, rindo, com ironia à Lena. - Estou me sentindo repleta de felicidade, tremendamente feliz. Quanto a como o estou vendo, posso te dizer que, por mais otimistas que tivessem sido minhas espectativas, e você sabe que cheguei a considerar que ele pudesse estar acomodado como chefe de família tradicional; nunca teria imaginado o que encontrei. Estou me segurando para não considerá-lo um verdadeiro tesouro, seguindo recomendação dele mesmo. Pode ser que esteja sofrendo algum tipo de síndrome de admiração, no entanto, na medida que o tempo passa, que ouço o que ele diz, o que defende e o que condena; a simplicidade do que demonstra compreender, a aceitação do mistério, demonstrando sua existência; só faz crescer minha admiração, uma vez que o amor nunca morreu. Que mais você perguntou? – Perguntou a Rina dirigindo-se à Lena. - O que espera que aconteça? - Gostaria de poder desfrutá-lo ao máximo, até o final da minha vida. No entanto, não quero me iludir com expectativas impossíveis. Vou aproveitar o máximo que puder, até quando for possível e torcer para que isso dure até o fim da minha vida. – Declarou a Rina. - Por que você considera impossível tê-lo com exclusividade pelo resto da vida? – Perguntou a Lena. - Porque ele pode ser descoberto, Ter seu valor reconhecido e, a partir daí, como será possível que ele se dedique com exclusividade a quem quer que seja. Como já disse antes, prefiro dividi-lo, me contentar com uma pequena parte de sua dedicação, do que desfrutar com exclusividade, qualquer outro homem, pelo menos até que me apaixone perdidamente por outro alguém. – Disse a Rina.
- Será que algum dos mais adorados ídolos ou dos mais venerados santos, já receberam declaração como a que você está lhe fazendo? – Disse a Lena em tom de brincadeira.
- Não sei se eles a teriam merecido, como ele a merece. – A Rina falou com tal convicção que, mesmo tendo consciência do exagero, senti-me extremamente lisonjeado. Fui até ela, levantei-a, abracei-a e beijei-a longamente, totalmente colados, de cima a baixo. Quando nos separamos e retomei o lugar que ocupava, a Rina perguntou à Lena:
- E você. Como o está vendo e o que espera?
- Além do que já conhecia dele, que seria suficiente para admirá-lo muito, estou verificando um grande amadurecimento em tudo aquilo, uma verdadeira lapidação de uma pedra preciosa, além de descobrir o lado místico que surgiu. Algum tempo atrás, mesmo reconhecendo tudo isso, não o diria nem sob a mais violenta tortura. Declarou a Lena.
- E o que espera? – Voltou a perguntar a Rina.
- Como você, gostaria de curti-lo pelo resto da vida. Claro que tenho plena consciência de que não tenho direito a isso, que tive todas as oportunidades de tê-lo e desprezei-o. Mas gostaria de poder aproveitar alguma coisa, por menor que fosse. Desfrutar sua amizade já seria bastante bom. Mas não se preocupe, Rina, não pretendo ser um estorvo no caminho de vocês. – A Lena falou demonstrando grande seriedade.
- Não acredito que nem eu, nem você, nem mesmo ele; poderemos decidir o que vai acontecer. Sinto que o tal mistério a que ele tanto tem se referido, determinará o futuro. Por isso estou me preparando para aproveitar o máximo que puder, aceitando o inevitável, procurando sofrer o mínimo possível ou, até mesmo não sofrer, com as divisões de que tiver que participar. Aproveitando a deixa, gostaria de pedir a vocês que dormissem juntos hoje, que deixem rolar o que der vontade, sem restrições. Pediu a Rina.
- Por que isso? – Perguntei à Rina.
- Porque gostaria de evitar ficar imaginando o que poderia rolar entre vocês. Prefiro saber diretamente, evitando especular e sofrer com a espectativa. Acredito que se tiver que te dividir com a Lena, não me parece que seja tão ruim. No entanto, gostaria de saber como será, o mais rápido possível, para Ter certeza do que sentirei. Vocês farão isso, por mim? – Perguntou a Rina.
- Acho bastante razoável a sua argumentação. Da minha parte não haverá problema. – Respondi
- Na sua posição, eu não proporia isso não. Considero que você tem todo o direito de forçar para que ele me rejeite e acredito que tem cacif pra isso. No entanto, se você quer isso mesmo, estou disponível para atender seu pedido. Só que eu gostaria de te pedir algo também, pra me sentir mais a vontade. Disse a Lena para a Rina.
- O que é?
- Que vocês façam amor antes. Depois atenderemos seu pedido.
- Você concorda? A Rina perguntou pra mim.
- Concordo. Vamos ver no que vai dar isso!
- Bom, eu vou sair pra caminhar e deixar vocês a vontade. Fechem a porta da sala e só a abram quando eu possa entrar. Enquanto isso, vou caminhar e se voltar antes da hora, esperarei lá fora. -–Disse a Lena, calçou tênis e saiu.
Como fizesse calor, sugeri à Rina que tomássemos banho. Depois de molhar-nos, desligamos o chuveiro, ensaboamo-nos um ao outro e passamos a nos massagear, percorrendo o corpo um do outro com as mãos, lentamente, observando-nos, em silêncio. Depois de algum tempo, abrimos o chuveiro, nos enxaguamos, secamos e fomos para o quarto.
Deitamo-nos na cama, lado a lado, de frente um para o outro e ficamos nos olhando nos olhos por longo período. Abraçamo-nos e permanecemos colados um ao outro por longo tempo, imóveis, calados.
O ficar ali com o corpo colado ao dela, sentindo-lhe a respiração, o calor de sua pele junto da minha, tendo a impressão de que fluia uma energia entre nós; propiciava uma sensação tão gostosa, de tanto prazer, que rejeitei a possibilidade de tocá-la sexualmente, de penetrá-la. Ela também dava a impressão de pretender continuar curtindo aquele contato, sem mais nada.
Depois de algum tempo, passamos a nos beijar, não beijos ardentes, mas suaves, roçando os lábios, carinhosos, leves, olhando-nos nos olhos. Senti uma paz profunda, leve, suave, acalentadora. A Rina cochilou um pouco, fiquei observando seu semblante tranqüilo, sereno, como uma criança dormindo. Afastei-me com cuidado e permaneci observando-a até que despertou.
Abraçamo-nos e nos beijamos num beijo longo e suave. Quando nos separamos a Rina falou:
- Que vamos dizer pra Lena?
- A verdade.
- Mas ela nos pediu para fazermos amor.
- Nós fizemos amor. Não praticamos o sexo, mas fizemos amor e, para mim, um grande amor. Você sentiu falta do sexo?
- Não. Acho que se tivéssemos praticado o sexo pleno, perderíamos a mágica do que vivemos, do que sentimos que, para mim, foi de um prazer maravilhoso, suave e terno. – Disse a Rina.
- Não vejo motivo para ser desleal com a Lena. Não vejo sentido em forçarmos a barra para atender um pedido dela. Ela deve entender que nos propusemos a fazer o que sentíssemos vontade, com total liberdade.
- Você tem razão. O principal é que sejamos honestos conosco mesmo e leais aos outros. Vamos respeitar nosso pacto de amizade. – Concluiu a Rina.
Abri a porta e saímos para o gramado. A Lena estava sentada junto ao lago. O sol estava se pondo, avermelhando o céu por cima da mata para além do lago.
A Lena se voltou e nos viu. Levantou-se e caminhou na nossa direção.
- Estive pensando sobre o que andei fazendo na vida. – Disse a Lena. – Não estou nada lisonjeada com o que andei verificando.
- É tão ruim assim? – Perguntou a Rina.
- Bastante. Fui egoísta até quando pretendia ser solidária. No que se refere à prepotência, dificilmente alguém poderá tê-la usado mais do que eu. Fui muito covarde, fugindo de enfrentar problemas, usando a acusação como meio de defesa. É bastante ruim verificar-se assim. – A Lena falou demonstrando grande sofrimento.
- Não se torture. – Disse-lhe eu. – Você não é a única, nem a pior. O que foi feito, está feito. Talvez algumas coisas erradas que tenha feito, possam ser corrigidas, no entanto, a maioria poderá ser irremediável. Portanto, o bom senso manda que, conhecendo essas suas capacidades, possa optar em usá-las ou não, de acordo com cada situação e cada julgamento que você fizer.
- Você está dizendo que deverei continuar sendo egoísta, prepotente e covarde? – Perguntou a Lena
- Não como aconteceu até aqui. No entanto, a vida em sociedade é uma guerra, onde a santidade não tem como levar vantagem. Portanto, ter armas compatíveis com as do adversário, pode ajudar bastante. – Aleguei eu. – Ser egoísta, prepotente e covarde, de verdade; não acredito que possa ajudar em nada. No entanto, usar essas características, conscientemente para atingir objetivos, pode ser bastante útil.
- Não estou entendendo essa sua posição. – Disse a Rina. – Pode explicar melhor?
- Por exemplo: vivemos num regime capitalista, que obriga o indivíduo a conseguir o máximo de capital possível. A esmagadora maioria das pessoas, persegue esse objetivo. Se você quiser ser solidária, abrindo mão do que poderia conseguir, em benefício de outros; eles acumularão capital enquanto você poderá passar necessidades. O sistema exige uma certa dose de egoísmo, sem o que, você será uma eterna perdedora. Tendo consciência disso, conseguindo usar o egoísmo, podemos dosá-lo e aplicá-lo nos lugares e situações certas.
- Como assim? – Quis saber a Lena.
- Ao negociar um salário, por exemplo, você tentará fazer com que ele seja o maior possível, principalmente se souber que, o que você deixar de ganhar, por aceitar um salário menor, vá engordar mais ainda o capital do patrão. Por que você seria solidária com ele?
- Tá bom. E no referente à prepotência, em que exemplo você defende que ela deva ser usada? – Perguntou a Lena
- Vamos continuar considerando o exemplo do emprego. Se você for totalmente humilde numa entrevista, para conseguir um emprego; poderá perdê-lo, por reconhecer não dominar algum conhecimento exigido. Entre os concorrentes, é muito provável que a totalidade deles tenham menos capacidade que você. No entanto, não vacilarão em afirmar que tem grande experiência sobre o que nem conhecem, principalmente se não tiverem que demonstrar esse conhecimento, essa experiência. Nesse caso, a humildade pode te impedir de conseguir um emprego. Isto não é teoria, é prática; são inúmeros os exemplos que demonstram isso, que comprovam a veracidade dessa situação.
- Realmente, é impossível ser santo entre tantos demônios! – Exclamou a Rina.
- O problema é quando nos juntamos ao sistema, buscando o comodismo de explorar os mais fracos, os humildes, os solidários, simplesmente porque eles oferecem menor resistência a serem explorados. É quando nos portamos com egoísmo para com quem nos oferece solidariedade. É quando somos prepotentes contra os humildes. – Disse eu.
- Fiz isso muitas vezes. – confessou a Lena. – Principalmente com você. Abusei da prepotência enquanto você se mantinha humilde. Exagerei no egoísmo enquanto você me dedicava extrema solidariedade. Fui covarde enquanto você demonstrava coragem de enfrentar qualquer luta por mim.
- Vocês já leram o livro A Luneta mágica, do Joaquim Manuel de Macedo? – Perguntei.
- Eu já. – Respondeu a Rina.
- Lembra-se do enredo?
- Sim. Um rapaz míope, dos olhos e da moral, segundo ele próprio; consegue um monóculo, que chama de luneta, feita por um feiticeiro, que lhe permite enchergar. Mais que isso, quando ele fixava a luneta sobre algo ou alguém, por mais de três minutos, conseguia ver o seu lado ruim. Todas as pessoas que observou por mais de três minutos, por mais caridosas e boas que parecessem, a luneta mostrava o quanto tinham de ruim, de pernicioso. Depois de ser considerado louco, mirou a si próprio no espelho e descobriu o quanto era ruim, também. Essa revelação levou-o a quebrar a luneta entre as mãos, destruindo-a . O feiticeiro fez-lhe outra luneta, só que esta, após os três minutos, só mostrava o lado bom das coisas e pessoas. Isso foi tão ruim como a outra, que só mostrava o lado ruim. Disse a Rina.
- Isso nos mostra que em tudo há o lado bom e o ruim. Que se nos fixarmos exageradamente tanto num como no outro, só obteremos desilusões, desencantos, desgostos. Temos que aprender a viver com o que nos cerca, uma vez que dificilmente conseguiremos mudanças significativas nisso. Ser extremista é relativamente fácil, tanto pro lado bom quanto para o mau. O difícil é ser maleável, adaptar-se a cada situação, a cada momento, julgando o que for melhor em cada caso. A experiência conhecida, identificada, como você está fazendo Lena, nos oferece subsídios para comportamentos futuros. O que foi muito ruim, pode ajudar a melhorar o futuro. – Disse eu.
- Você é admirável! – Exclamou a Rina, dirigindo-se a mim.
- Nem tanto. Vocês estão me olhando com a luneta que só vê o bem. Estão fechando os olhos para o meu lado mau. Agora, são só elogios; mais tarde, só críticas. Nem uma coisa nem outra são justas. Portanto, é bom vocês não esquecerem do meu lado ruim, considerando-o, para que a nossa relação possa ser duradoura, evitando que ela termine por imcompreensão e julgamentos equivocados. – Disse eu.
- Que tal você nos ajudar a conhecer esse seu lado mau? – Disse a Lena.
- Já cometi muitas injustiças, fui dominado pelo ogoísmo e pela prepotência. Mesmo tentando ajudar, sendo solidário, acabei sendo injusto, prejudicando quem não merecia. Fui prepotente ao julgar, muitas vezes, que eu sabia o que era melhor para os outros, desconsiderando o que eles achavam a respeito. Em fim, são inúmeros erros. Tenho me esforçado muito, nos últimos anos, após Ter me conscientizado disso, para melhorar, no entanto, não tenho conseguido grande coisa. Enquanto me dedico a corrigir erros cometidos, cometo outros novos. Só me conformo porque tenho consciência de que me esforço ao máximo para acertar. Portanto, estou muito longe de ser o santinho bonzinho que vocês estão se empenhando para ver. Disse eu.
- No que me diz respeito, posso estar exagerando na admiração que estou te dedicando. Acho natural fixar a atenção no que queremos ver, evitando ver o que não nos interessa. No entanto, minha admiração se deve ao seu esforço para compreender o que acontece com o ser humano, questionando incansavelmente, analisando e, principalmente, experimentando em você mesmo. Outra coisa admirável é a simplicidade com que você demonstra suas idéias. As universidades estão repletas de teses de mestrado e doutorado, considerando o ser humano. Elas, normalmente, são complexas, ininteligíveis a quem não for especialista no assunto. Você não, você aborda problemas reais, que atingem a maioria das pessoas, analisando dados reais, buscando explicação no simples, traduzindo seu entendimento num linguajar acessível à maioria das pessoas. Portanto, mesmo sem a supervalorização, que é natural, sobram motivos para que te admire. – Declarou a Rina.
- Esse é o problema dele, - disse a Lena. – É simples demais, humilde demais, não se valoriza. Isso faz com que os outros o vejam como ele mesmo se vê. Observei isso, inúmeras vezes, enquanto trabalhei com ele. Ele não se valoriza, muito pelo contrário, passa a imagem de que é igual a qualquer um, sem qualquer mérito especial. Presenciei, várias vezes, demonstrações de admiração por ele, que se esforçou para tentar mostrar que não fizera nada de mais, desvalorizando seu feito, sua qualidade. As pessoas não tem o mínimo interesse em reconhecer valor aos outros. Se quem tem qualidade não se valorizar, dificilmente obterá reconhecimento. Durante os anos em que convivi com ele, testemunhei isso nos mais variados meios, principalmente na área profissional, entre os amigos e nas lutas políticas. O problema é que esse comportamento desvia a atenção para a importância do que ele pensa e faz, dificultando que um número muito maior de pessoas possa se beneficiar disso. Eu mesma, até ontem, fui influenciada por isso. Não lhe reconheci maior valor, aproveitei-me dessa sua simplicidade e humildade para sonegar-lhe o merecido reconhecimento e admiração. – Disse a Lena.
- Você nunca pensou em publicar livros? Perguntou a Rina.
- Ele já publicou um livro, por conta própria com a ajuda de um amigo empresário, que pagou a metade do custo. Houve uma noite de autógrafos na loja desse amigo dele. Eu, em mais uma de minhas imbecilidades, não compareci, aproveitando o fato para demonstrar meu desinteresse pelo que ele fazia. Alguns amigos meus, que por causa do nosso relacionamento se tornaram amigos dele também, lhe dedicaram grande admiração, enquanto eu, que tinha tudo para conhecê-lo muito mais, teimava em desvalorizá-lo. Como pude fazer isso? – Disse a Lena.
- Ainda bem que você percebeu isso e tem a chance de recuperar alguma coisa. Eu não tive a oportunidade de aproveitar o que esteve a sua disposição e de muitas outras pessoas. Por isso, não vou regatear admiração, nem perder oportunidades de desfrutá-lo. Estou exultante por tê-lo encontrado e extremamente grata ao mistério por Ter-me possibilitado isso. – Disse a Rina.
- Eu deveria estar exultando com tantos elogios, tanta demonstração de admiração. Não nego que isso é gostoso. No entanto, sinto uma coisa ruim, um verdadeiro incômodo com o que considero um exagero nessas demonstrações. - Disse eu.
- Tá vendo, Rina, continua o mesmo. Não é exatamente o comportamento que descrevi? – Disse a Lena.
- Parece que a Lena tem razão no que se refere a essa sua obsessão por se desvalorizar. Acho que você deveria pensar sobre isso, considerar que pode estar trabalhando contra a possibilidade de muitas pessoas poderem te conhecer e desfrutar do que você tem para oferecer. – Disse a Rina.
- Bom, tá na hora de preparar a janta. – Disse eu
- Nós vamos prepará-la, né Lena? – Disse a Rina. – O que você prefere que a gente prepare?
- Não há grandes opções. Vejam o que há na dispensa e preparem o que quiserem. Vou pescar, pois é a melhor mistura que poderemos Ter.

As duas foram para a cozinha enquanto eu fui pescar.
Peguei duas carpas e enquanto as limpava, ouvi que a Rina contava para a Lena o que eu lhe contara a respeito do final do último relacionamento.
Durante o jantar a conversa girou em torno de para-quedismo e vôo livre, onde a Lena e eu contamos algumas coisas vividas nesses esportes.
Depois do jantar, sentamo-nos na sala e a Lena comentou sobre o que a Rina lhe contara, durante a preparação da janta, a respeito do meu último relacionamento.
- É muito estranho o que aconteceu com a tua última mulher, levando-a a te abandonar. Quando eu soube que vocês haviam se separado, considerei a coisa mais natural do mundo. Sempre considerei, desde o início, que esse final seria inevitável. Achei, inclusive que ultrapassou em muito o tempo que eu imaginara que duraria. Porém, sabendo de como aconteceu e de como vocês viveram todos esses anos, vejo que estive enganada em tudo o que havia considerado. Eu te abandonei como conseqüência das distorções de valores que considerava e usava. Ela não, Inverteu totalmente os valores que defendia e usava durante o relacionamento. Foi uma guinada de cento e oitenta graus, total inversão. O que poderia Ter provocado isso?
- Depois de exaustivas análises, considerando todos os dados disponíveis; tudo continua envolto no mais obscuro mistério. – Disse eu.
- O que é impressionante, é que, sob vários ângulos, a análise leva a demonstrar a coerência nas atitudes dela. Enquanto ele me contava o que acontecera, cheguei a acreditar que ela fora muito consciente, que se sentira insatisfeita com a vida que vinha levando e que resolvera buscar algo melhor. Desfez o compromisso e, somente depois disso, com total liberdade, se dedicou a tentar algo novo, assumindo toda a responsabilidade. Foi uma atitude dígna! No entanto, quando considerarmos o entendimento que eles tinham, a liberdade existente no relacionamento, principalmente na consciência que tinham de que enfrentariam insatisfações, ou a interferência de que, principalmente ela, poderia se apaixonar por outra pessoa; poderia desaguar numa separação. Conscientes disso, tinham concordado em evitar que a amizade existente fosse afetada pelo final do relacionamento amoroso. O Ter sonegado a informação de sua insatisfação e, principalmente, o Ter desprezado totalmente a amizade que ele lhe oferecia, negando-se a discutir abertamente o que pensava e pretendia, é absolutamente inexplicável. – Disse a Rina.
- Que tipo de vida ela vem levando? – Perguntou a Lena.
- Ela mora com a mãe e os irmãos, trabalha em um sítio vizinho, fazendo limpeza na casa e ajuda a mãe nos trabalhos domésticos. Ficou amiga intima de uma família vizinha, principalmente com o chefe da família. Vão para a venda, bebem e conversam. Vira e meche se reúnem na casa da família amiga, bebem, comem e dançam.
- E quanto a relacionamentos amorosos? – Perguntou a Lena.
- Não sei. Não tenho conhecimento.
- Parece que está vivendo uma vida simples, mas divertida. Conversas, dança, bebida e comida, na companhia de quem se gosta; é muito bom. – Comentou a Lena.
- Esse é o problema. Realmente é uma vida simples mas que propicia felicidade, principalmente pelo desfrute de amizade, com conversas, danças e tudo o mais. No entanto, ela poderia estar curtindo tudo isso, mantendo o relacionamento, o que lhe acrescentaria a possibilidade de ter conversas diferentes, ser amada, admirada por alguém que a valorizava muito, sentir-se útil, não a qualquer coisa ou qualquer um, mas a uma pessoa excepcional; poderia Ter ajuda significativa nas necessidades. Em fim, Poderia Ter tudo o que está tendo e muito mais. O que a levaria a desprezar um cara como esse: amigo, amante, companheiro, leal, solidário, aventureiro e humilde? – Disse a Rina.
- Só uma extremada burrice! – Declarou a Lena. – No entanto, ao que tudo indica, ela não é burra, pelo contrário, é até inteligente. Portanto, é um verdadeiro mistério.
- Principalmente porque ela teria a possibilidade de reconhecer que errara e voltar a Ter o teve no relacionamento. Mesmo assim, insistiu em continuar no que me parece um erro tremendo. – Disse a Rina.
- É. Mas a realidade é essa. Quando não se consegue conhecer as causas de alguma coisa, Temos que admitir que estamos diante de um mistério; e ele o será até que se consiga descobrir o que possa elucidar a verdade.
- O que me intriga, é a possibilidade de compreendermos praticamente tudo, em relação a esse caso, por exemplo. No entanto, pequenos detalhes, que passam desapercebidos à maioria das pessoas, por preguiça mental; jogam por terra todo o raciocínio que nos fez acreditar que tinhamos compreendido totalmente. Isso me faz considerar que, muitas coisas que acreditei compreender, podem ser fruto de um engano, por não Ter valorizado algum detalhe importante, que mudaria totalmente o julgamento. – Disse a Rina.
- Isso me parece mais comum do que normalmente imaginamos. Pequenos detalhes mudariam totalmente um diagnóstico que, a princípio, parece irrefutável. – Disse eu. – Bêbados, drogados, prostitutas, ladrões, etc. são considerados elementos ruins, danosos, sem caráter, sem dignidade, etc.. Muitas vezes, o que levou várias dessas pessoas a se tornar o que são, foram detalhes muito pequenos que, no entanto, ao impedir o retorno à situação anterior, causaram o desvio permanente no rumo da vida do indivíduo. O menino ou menina, timido, que usou droga ou bebida para vencer a timidez e teve resultado satisfatório; viu-se enredado na teia da dependência e, ao tentar abandonar o vício, percebeu que lhe era impossível. Certa vez vi uma estatística que apontava que somente dois por cento dos usuários de droga, se tornavam dependentes dela. Por que noventa e oito por cento conseguem deixar o vício sem maiores problemas, enquanto dois por cento são condenados ao enorme sofrimento da dependência?
- Eu me entreguei à bebida e drogas, participei das orgias mais depravadas, permiti que me usassem como uma coisa qualquer, em fim, abandonei o mínimo de dignidade. Quem somente me conheceu naquela época, deve me Ter classificado como a mais depravada puta; afinal, era isso que eu demonstrava ser. Quantos se preocuparam em saber o que me levara àquela degradação? Quantos se interessaram em saber se eu me recuperara ou se morrera na sargeta? – A Rina falava visivelmente emocionada. – A esmagadora maioria dos que se dispusessem a buscar causas para a minha degeneração, devem Ter identificado falta de caráter e fraqueza moral. Muito poucos devem Ter considerado a força moral e caráter necessários para sair dessa situação. Da mesma maneira, poucos poderão compreender que o que me levou a isso, foi o desespero, o enorme sofrimento causado pela impossibilidade de continuar desfrutando de um grande amor. Sem dúvida faltou força para enfrentar esse sofrimento. Isso não caracteriza fraqueza. Acredito Ter sido forte, talvez mais forte que a maioria das pessoas; no entanto, o sofrimento foi descomunal, e a minha força, embora grande, não foi suficiente. Acredito Ter demonstrado minha força, dignidade e moral ao conseguir reagir, sozinha, e ter conseguido me recuperar e voltar a ser uma pessoas digna e respeitável. – A Rina disse, bastante emocionada.
- É isso aí! É um grande exemplo de como uma grande força pode ser caracterizada como simples fraqueza. – Disse eu.
- Mas a maioria permanece na marginalidade sem conseguir se reabilitar. Eu, por exemplo, não sou considerada uma marginal, pela sociedade. No entanto, sou um exemplo de desvio de conduta, de mau uso de valores. Só agora, depois de cinqüenta e tantos anos, me dou conta disso. Não sei se terei forças suficientes para reagir, para me transformar. – Disse a Lena.
- Vou contar um caso, sobre um cara que conheci e que, de certa maneira, pode se comparar ao caso da Lena.
Ele era açougueiro, dos bons, gerenciava o açougue em que trabalhava.
Certo dia, tomando café na padaria próxima do açougue, um rapaz se chegou a ele e pediu-lhe que lhe pagasse um pão, pois estava faminto e não tinha dinheiro. O Moacir, esse era o nome do açougueiro, pediu um pão com manteiga e café com leite para o rapaz.
O rapaz contou que viera do interior, arriscar a sorte, mas não encontrava trabalho e, como não conhecia ninguém na cidade, estava há vários dias pelas ruas, procurando emprego, dormindo sob marquises, pontes, onde conseguia algum lugar.
O Moacir se comoveu com a história do rapaz. Lembrou-se de quando fizera a mesma coisa, saindo de casa, no interior, por não suportar presenciar o pai chegando bêbado e batendo na mãe, nele e nos irmãos. Passara pelas mesmas dificuldades que o rapaz lhe contava agora.
Conversou com o dono do açougue, alegando que seria bom Ter alguém para ajudar. Que se o rapaz mostrasse vontade, poderia aprender o ofício e transformar-se num bom açougueiro. O patrão concordou e empregou o rapaz.
Como ele não tivesse onde morar, o Moacir levou-o para morar na sua casa, onde vivia com a mulher e um casal de filhos. Instalou o rapaz num quartinho do lado de fora da casa.
O rapaz se dedicou ao trabalho e, mais rápido do que o esperado, se transformou num bom açougueiro. Moacir e ele se tornaram grandes amigos.
Certo dia, o cadeado da porta do açougue apresentou um problema e tiveram que mandar trocá-lo. O caminhão que entregava a carne para o açougue, o fazia durante a noite. O motorista tinha a chave do cadeado e, como era de confiança, abria a porta, colocava a carne na câmara fria, dispensando que houvesse alguém ali para recebê-la. Porém, nesse dia, como o cadeado fora trocado, o motorista não conseguiria abrir a porta. Por isso, o Moacir ficou a espera do caminhão.
O caminhão chegou mais cedo do que o esperado, o que deixou o Moacir contente por poder tomar banho e jantar mais cedo do que o esperado.
Ao chegar em casa, ouvindo ruido no quartinho do rapaz, foi até lá, abriu a porta e teve a mais desagradável surpresa de sua vida: sua mulher estava na cama com o rapaz.
Além da traição, a mulher decidiu ir embora com o rapáz. Moacir ficou arrasado e foi buscar na bebida lenitivo para seu sofrimento.
A dor aumentava e o consumo de bebida também. O patrão fez o possível para consolá-lo e ajudá-lo, No entanto, Moacir reagia com prepotência, alegando que era capaz de administrar sua vida, que sabia o que era melhor para ele, que resolveria o problema e que não precisava da ajuda de ninguém.
A constância da embriaguês, impediu-o de continuar trabalhando. O patrão continuou ajudando-o financeiramente por algum tempo, até ele desaparecer.
Durante muito tempo, Moacir vagou pelas ruas, sempre bêbado.
Chegou a um bairro, onde havia uma igreja, na qual, uma vez por semana se reuniam dependentes de drogas e familiares. Ali funcionava um grupo de ajuda. Moacir tomava conta dos carros dos que se dirigiam à igreja, ganhava alguns trocados, que consumia em bebida. À noite, dormia na entrada da igreja.
O pai de um dependente de drogas, que freqüentava o grupo de ajuda, comoveu-se com a situação do Moacir e sugeriu que o grupo providenciasse o internamento dele numa clínica para tratamento de dependentes.
Moacir foi encaminhado para uma clínica no interior. Logo se destacou no grupo, pelas habilidades nos trabalhos, a dedicação às reuniões e, principalmente à religiosidade, que era o ponto principal do tratamento. Ele era inteligente, falava bem e aprendeu com rapidez todo o ritual religioso.
Era um crítico constante e mordaz. Ninguém escapava às suas críticas e ele estava sempre atento para não deixar passar em branco qualquer motivo que as justificassem, por menores que fossem.
Ao final do prazo estabelecido para o tratamento, ele continuou na clínica trabalhando como monitor. Mesmo sendo constantemente alertado para sua intolerância, ele não mudava e continuava criticando sem a menor consideração por aqueles a quem se dirigia. Não era raro que egressos do tratamento, retornassem à clínica por haver recaido, retornado à dependência. Esses eram as vítimas das críticas mais implacáveis do Moacir.
Foi convidado a trabalhar num sítio vizinho à clínica e, em pouco tempo, deixou os patrões admirados por suas capacidades. Fazia muitas coisas, com qualidade e logo conquistou a confiança dos patrões.
Pouco tempo depois, aproveitando a ausência dos patrões, atacou as garrafas de bebida que havia no sítio e só parou quando as forças o abandonaram. Os patrões tentaram considerar aquela atitude como excepcional, desculpando-o e permitindo que continuasse trabalhando. Mas, não adiantou, ele voltou a beber, perambulou pela cidade, trabalhando em alguns lugares, mas a embriagues impedia a continuidade nos trabalhos e a indigência o levou de volta às ruas.
- Você disse que esse caso tinha algo a ver comigo. – disse a Lena. – Não vejo como.
- Claro que são casos totalmente diferentes, no entanto, me parece que tem uma coisa em comum. A prepotência que os fez acreditar que estavam acima dos outros, que eram mais capazes que qualquer um, sendo implacáveis nas críticas, sem a menor condescendência com a falibilidade humana. Considerando-se superiores, não admitiam submeter-se a trabalhos que não estivesse à altura de suas competências. Quando eram obrigados a fazê-lo, demonstravam toda sua contrariedade e revolta, fazendo o possível para vingar-se do que achavam ser uma tremenda injustiça. – Disse eu.
- O problema desse Moacir foi a dupla traição: da mulher e do rapaz que ele tanto ajudou. Foi um golpe terrível que o levou a procurar na bebida lenitivo para o sofrimento. O comportamento demonstrado no período de abstinência deve Ter sido resultado desse trauma. – Disse a Lena.
- Não acredito. Ele já devia ser prepotente antes da traição. A traição foi um golpe muito maior do que o causado em um homem humilde. Provavelmente ele deveria se considerar um marido excepcional, não acreditando que a mulher pudesse trocá-lo por qualquer outro homem que, com certeza, seria inferior a ele. A única similaridade entre o caso dele e o seu, é a prepotência que vos fazia sentirem-se muito superiores aos demais. Você percebe o quanto isso é fonte de frustrações e sofrimento para o prepotente? – Disse eu.
- Acho que estou começando a perceber. Preciso considerar isso com maior profundidade, mas estou começando a achar que esse possa Ter sido meu maior problema. – Disse a Lena.
- É incrível como podemos viver tantos anos iludidos. Estamos considerando o problema da prepotência da Lena, gerando um complexo de superioridade, facilitando-lhe o criticar impiedosamente, ao mesmo tempo que gera uma tremenda dificuldade de assimilar críticas. Isso pode tê-la levado a considerar que a maioria das pessoas seja incapaz e ruim. Há os que exageram na humildade, considerando-se inferiores aos outros e acreditando que a esmagadora maioria das pessoas é boa, incapaz de cometer maldades. Existe o bem e o mal, o bom e o ruim. No entanto, a caracterização depende da emoção no momento do julgamento. Uma mulher apaixonada, tende a só ver coisas boas no seu amado, evitando ver o que ele possa Ter de ruim. Não é raro que veja qualidades que ele não tem e, deixe de ver defeitos que se escancaram nele. Se ele a abandonar, ou lhe causar qualquer mal, ela deixará de considerar as qualidades, negando-as, inclusive; e se fixará nos defeitos, acentuando-os ao máximo. O homem é o mesmo, o que mudou foi a emoção que dirigiu os julgamentos. São julgamentos irracionais, sem considerar devidamente os dados, sob total domínio da emoção. – Disse a Rina
- Eu vejo assim também. Isso explicaria a diferença entre inteligência racional e inteligência emocional. A racional, se preocuparia em obter o máximo de dados, analisando-os sob todos os aspectos possíveis, inclusive a emoção. Ao não conseguir uma definição satisfatória, a racionalidade admite sua incapacidade e considera que está diante de um mistério. Na inteligência emocional, é esta quem comanda a racionalidade. Ao contrário da razão, ela manipula dados, usando os que lhe interessam, descartando os que contrariem o que lhe interesse, acentuando ou minimizando, também, de acordo com seu interesse. A inteligência emocional, não teria escrúpulos de passar a defender o que atacara, invertendo totalmente os argumentos anteriores. Em fim, Na inteligência racional, o indivíduo usa a razão. Na inteligência emocional, é a emoção quem usa a razão, transformando o indivíduo em simples paciente. – Disse eu.
- Você acha que isso é inato, ou depende do indivíduo ou do meio em que ele vive? – A Lena perguntou a mim.
- Não sei. Analisando o que acontece comigo; a tendência é que a emoção assuma o comando. Me custa muito esforço dominar a emoção e permitir à razão, a liberdade de ação. Portanto, pelo menos no meu caso, possibilitar a ação da razão, sem a interferência da emoção, é muito trabalhoso, exige muito esforço. Quem não se disponha a esse esforço, ficará a mercê da emoção. O comodismo da maioria das pessoas, tenderá a que sejam dominadas pela inteligência emocional. Portanto, é difícil saber se isso é uma característica inata ou fruto da preguiça mental ou qualquer outra influência do indivíduo ou do meio em que vive. O que me parece, é que não há domínio absoluto de uma ou de outra. Existe predominância, quando uma age muito mais que a outra, no entanto, acho impossível que o indivíduo seja dominado por toda a vida só por uma delas. – Disse eu.
- Acho que o meio tem grande influência na determinação da preponderância de um tipo de inteligência ou de outra. Em um meio onde não se exercita o questionamento, provocando a racionalidade; a inteligência emocional tenderá a dominar. Por outro lado, se um indivíduo com predominância da inteligência emocional, for questionado e não se furtar a esse questionamento; deverá permitir que sua inteligência racional aflore e domine a emocional. – Disse a Rina.
- Parece que é isso que está acontecendo, aqui, com a gente. Estamos aceitando os questionamentos, analisando e debatendo, forçando a inteligência racional a dominar a emocional. – Disse a Lena.
- Por outro lado, a vida cotidiana da maioria das pessoas, dificulta a racionalidade. Eu me lembro de que até os vinte e cinco anos, mais ou menos, eu racionalizava muito pouco. Durante a adolescência e juventude, a turma se reunia numa esquina, todas as noites. Os assuntos eram o futebol, os bailes de final de semana e as brigas que aconteciam tanto num como noutro. Comentava-se os acontecimentos do dia a dia de cada um e acontecimentos na comunidade. As discussões eram todas emocionais e os julgamentos baseados em preconceitos. Nosso universo era muito restrito e não ultrapassava a comunidade, o que acontecia nela e nos ambientes de trabalho de cada um. Boa parte da conversa evocava o passado, relembrando acontecimentos ou histórias ouvidas. A conversa era constante, mas repetitiva, sempre em volta dos mesmos assuntos, sem novidade, sem alteração de qualquer conceito. – Disse eu.
- Nas comunidades do interior, principalmente nas comunidades pequenas, os pequenos povoados na roça; o universo dos habitantes é muito pequeno. Os acontecimentos são sempre os mesmos, raramente acontece alguma novidade. No entanto, eles conversam muito, sobre as mesmas coisas, numa repetitividade constante. Falam muito sem dizer quase nada. Os preconceitos são os parâmetros para os julgamentos e as discórdias se devem a puros interesses pessoais. A falsidade esconde ressentimentos e, até, ódios que se arrastam através dos tempos, muitas vezes atravessando gerações. A maioria dos indivíduos dessas comunidades passa a vida toda assim e não sentem falta de outras coisas, principalmente por não conhecê-las. O ganhar dinheiro e melhorar de vida é assunto constante nas conversas, no entanto, praticamente nada se realiza nesse sentido, por absoluta falta de criatividade e iniciativa. Aquela tia que fui procurar quando precisei fugir do meio em que estava vivendo, na época das orgias; falava o dia inteiro e os assuntos giravam em torno da religião, da crítica ao comportamento das pessoas, embasada nos mais radicais preconceitos e na lembrança do passado. Ela não precisava mais do que isso para falar a vida inteira, sem descanso. Eu gosto muito de ouvir histórias, no entanto, não consigo passar muito tempo num ambiente desses, onde a racionalidade vai se atrofiando, por falta de oportunidade de uso.
- É o que tem acontecido comigo aqui. Sou obrigado a pensar isoladamente, discutindo comigo mesmo através de personagens que eu crio. Ao conversar com as pessoas, percebo que não assimilam o que digo, embora concordem com tudo. O interessante, é que você pode repetir uma abordagem já feita e eles a considerarão como absoluta novidade, por mais vezes que seja repetida. Isso é a maior evidência de que não assimilam nada. Por outro lado, não te oferecem a oportunidade de mudar de opinião, pela falta de questionamento. Portanto, o meio é inóspito à racionalidade. – Disse eu.
- É, mas isso não é exclusividade das comunidades mais isoladas e ignorantes. Acho que a ignorância está dessiminada na sociedade como um todo, inclusive em meios considerados cultos. Estou começando a perceber a extensão disso. Reconheço, agora, o quanto participei de conversas vazias, inócuas, com pessoas que considerava cultas, mas que interpretavam um papel que consideravam conveniente para a ocasião. – Disse a Lena.
- Ao que parece, a ignorância não é exclusividade dos analfabetos; ela graça entre muitos intelectuais. – Disse a Rina.
- Bem, eu vou tomar banho pois o sono já está dando sinais. – Disse a Lena.
A Rina e eu tomamos um gole de café e fomos para fora observar as estrelas. A noite sem nuvens e sem lua propiciava uma visão maravilhosa de um firmamento pontilhado de infinitos pontos luminosos. A sensação de grandiosidade, de infinito e de mistério era envolvente, dando-nos a noção de nossa pequenez diante de tamanha grandiosidade. A Rina pediu-me que me juntasse à Lena no banho.
Entrei no banheiro, fiquei um instante observando a Lena sob o chuveiro, notando as mudanças que seu corpo sofrera desde a última vez que o vira. Ela pediu que eu tirasse a roupa e me juntasse a ela sob o chuveiro. Me ensaboou e passou um bom tempo me massageando o corpo, delicadamente, com muito carinho. Fiz o mesmo com ela...

No domingo pela manhã, depois do café; arriei três cavalos e fomos verificar o gado, voltando quase na hora do almoço. Pescamos três peixes, assamo-los na brasa e os almoçamos com arroz e saldada. Passamos a tarde conversando e, ao anoitecer, elas foram embora, prometendo voltar brevemente.

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