quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A porca

A PORCA
17/12/05
Por volta das cinco e meia da tarde, fui no sítio do Nelson para, junto com o Chico Bento, ajudá-lo a matar uma porca. Ele viera no meio da tarde até a fazenda me fazer o convite, que mais era uma convocação, um pedido de ajuda.
Quando cheguei lá, ele estava acendendo uma churrasqueira portátil para fazer churrasco para o pessoal que concluíra a concretagem de uma laje, num depósito que ele está fazendo para guardar os móveis e tranqueiras do irmão, que está na Inglaterra. De cara, ele já demonstrou indisposição para fazer o que me convocara para ajudá-lo, alegando estar cansado, só de olhar o trabalho que o pessoal executara para o enchimento da laje. A seu pedido, assumi a tarefa de assar a carne, enquanto ele fritava uns torresmos.
Já estávamos comendo quando o Chico chegou, com cara de quem acabara de acordar depois da Sesta. O Nelson já foi lhe dizendo que estava cansado e que preferia deixar para tirar a vida da porca, amanhã. Com um cálice de pinga na mão, ele estava pedindo ao Chico autorização para transferir o assassinato da porca para o dia seguinte, como se a aquiescência do Chico fosse fundamental para a transferência. Mostrando o cálice, pediu o veredicto do Chico, para que decidisse se tomava a pinga ou não. Caso o Chico não concordasse com a transferência, ele não beberia para estar sóbrio durante a execução da porca e serviços complementares. Como o Chico concordasse, ele tomou a pinga, continuamos bebendo, comendo e jogando conversa fora, até que os operários resolveram ir embora.
Continuamos beliscando os restos de carne e bebericando a cerveja, além de continuar a desperdiçar palavras desimportantes. Já escurecera quando, pela estradinha, chegaram dois vultos. Era a Mirna e seu filho Vina.
Integrados ao grupo, a conversa mudou de rumo. O Vina que é técnico em eletrônica e trabalha numa fábrica de balanças computadorizadas, contou sobre o último trabalho que fizera, na montagem de um hipermercado. Comentou que achava uma aberração as pessoas irem a esses lugares para passear. Referiu-se, também, ao fato de que a esmagadora maioria dos operários que trabalharam nessa obra, como em todas as outras, eram de origem nordestina, demonstrando certo preconceito contra esses emigrantes que, aliás, é a visão de muitos membros dessa família.
Essa deixa, levou a conversa para os emigrantes brasileiros que vão buscar em outros países, a possibilidade de sucesso financeiro. O Vina contou que ficou indignado ao ler uma publicação de índices de renda-percapita de vários países, onde o Brasil só ganhava de países da África. Argumentei que esse índice tem importância relativa, uma vez que, normalmente, nos países em que esse índice é mais alto, o custo de vida também o é. Portanto, esse fato, por si só, não implica em possibilidade de maior poupança aos trabalhadores, do que o possível nos países onde esse índice é menor. Todos concordaram com isso e, os exemplos conhecidos, demonstram que esses emigrantes que buscam melhorias financeiras em outros países, normalmente tem que se sujeitar a grandes restrições no modo de vida, para não gastar tudo o que ganham, para sua manutenção.
Nesse tipo de reunião, a conversa vai mudando de um assunto a outro e, depois, é difícil lembrar que fato de um assunto provocou outro. Num determinado momento, não sei como, pude introduzir o assunto que me ocupara nos últimos dias: A inconsciência e falta de responsabilidade como possibilitadoras do que os filósofos estóicos, que defendiam que a felicidade, consiste numa apatia ou indiferença, conseguida pelo domínio dos afetos e paixões. Eles acreditavam que para conseguir esse tipo de felicidade, era fundamental o cultivo da ataxia (imperturbabilidade), apatia (ausência de paixões) e aponia (ausência de dor).
O que me ocorrera nestes últimos dias, é que a inconsciência, irracionalidade e irresponsabilidade, possibilitam às pessoas a diminuição dos efeitos causados por problemas que os atinjam. Deduzi isso a partir da análise do comportamento de algumas pessoas, dos problemas que criam e de como não são, ou são minimamente afetadas por eles, pelas suas conseqüências. Considerei que a origem desses problemas é o desejo. As pessoas desejam algo e buscam satisfazer esse desejo. Essas pessoas que considerei, tem desejos, querem satisfazê-los, mas não se dispôe a sacrifícios para conseguir seus objetivos. Para eles, pensar com racionalidade é um grande sacrifício, principalmente porque nunca se dispuseram a conseguir informações que lhes possibilitassem Ter alguma base para racionalizar. Portanto, suas atitudes são causadas por impulsos e não por racionalidade. Uma ocorrência comum entre esse tipo de pessoas, é a compra do que desejam, sem a menor preocupação sobre se conseguirão saldar o compromisso assumido. Ao não conseguir efetuar os pagamentos combinados, a única preocupação é conseguir maneiras de se desvencilhar dos cobradores, conseguir desculpas para o não cumprimento do assumido e, normalmente, buscando bodes expiatórios que arquem com a maior parte ou a totalidade da culpa. Uma das pessoas que analisei, por exemplo, é useira e viseira em Ter os problemas criados, resolvidos por parentes, principalmente as filhas.
Outro tipo de desejo satisfeito por impulso, é a geração de filhos. As pessoas querem Ter filhos, porque querem, sem a menor consciência das dificuldades de criar uma criança. Muitas dessas crianças se tornarão encargo para outras pessoas, principalmente parentes e, outras, serão totalmente abandonadas. Esses pais não terão maiores sofrimentos pelo destino dos filhos que geraram e que sofrem as conseqüências de sua irresponsabilidade.
Considerei também, que muitos objetos de desejo, após a realização, revelam não propiciar o esperado, gerando frustração. Para os conscientes, a frustração pode causar sofrimento, considerando que foram incapazes no analisar o que o desejado poderia propiciar, além de verificar a relação custo benefício, em que o custo foi alto e o benefício muito aquém do esperado. Os inconscientes, simplesmente partem para a tentativa de realização de outro desejo, dando a mínima, ou nenhuma, importância ao fato presente. Se não conseguem satisfazer um desejo, também não sofrem, simplesmente partem para tentar satisfazer outro, cuja realização seja mais fácil. Uma característica muito forte nesse tipo de pessoas, é o egoismo. Normalmente, são extremamente egoistas.
Conclui, colocando que a inconsciência, irresponsabilidade e irracionalidade, são causas de diminuição de sofrimento ou, até, sua inexistência. Por outro lado, isso impede maiores prazeres e felicidade. Atende razoavelmente o que pregavam os filósofos estóicos.
Nelson, Mirna e Vina, concordaram, de imediato, com minha tese. O Chico nem se manifestou. Eles concordaram, não porque tivessem acompanhado com atenção o que eu expus; tivessem compreendido o raciocínio e, por isso, concordavam com minha tese. Concordaram porque já tinham como verdade absoluta que a inconsciência, irresponsabilidade e irracionalidade são causa de todos os problemas. Acreditam nisso, mas sem ter dedicado um único segundo a analisar os porquês. Pior ainda! Não consideram, de jeito nenhum, que eles próprios podem se enquadrar nesse tipo de pessoa, pelo simples fato de que, para eles, irracionalidade, inconsciência e irracionalidade; são características exclusivas de pessoas analfabetas, sem cultura, sem educação. Pessoas como eles, estudados e com grande número de informações, são conscientes, responsáveis e racionais. (??????????)
Não lembro o que levou a isso, no entanto, a conversa desembocou no tema religião. O Nelson é católico fanático, embora não seja um praticante tão assíduo, como se espera de um fanático. Já demonstrou conhecer muito pouco a bíblia e história da religião. O Vina já pertenceu a um grupo de jovens numa igreja católica. Ele é é um leitor assíduo de revistas especializadas, inclusive religião. O Chico é católico sem nenhum fanatismo e a Mirna segue o mesmo caminho.
Declarei minha estupefata admiração e respeito pela grandiosidade da criação do universo. Minha crença de que a capacidade de entendimento e compreensão do ser humano é infinitamente pequena para compreender e explicar como isso pode ter acontecido. Afirmei que, se a criação é um mistério, a vida não é menos misteriosa. Temos conhecimento de acontecimentos, de fatos que estão muito além de nossa compreensão. Que o ser humano tem uma enorme capacidade de descobrir e criar, mas, no entanto, é um enorme mistério para si mesmo. Conhecemos muitas coisas, até com grande profundidade, no entanto, não temos a menor idéia do porquê de muitas coisas que acontecem conosco, dentro de nós, principalmente na nossa mente. Disse-lhes que isso me impede de me integrar a qualquer religião. Elas afirmam conhecer o que, pelo menos até agora, é totalmente mistério. As religiões se baseiam em dógmas, que não aceitam questionamento, para tentar explicar o inexplicável. Por isso me mantenho agnóstico, reconhecendo minha insignificância na capacidade de compreender o que pode Ter acontecido na criação e o que determina o sobrenatural até hoje.
O Nelson exemplificou com uma experiência feita por seu pai, que segundo ele, era um estudioso de exoterismo; ele construiu uma pirâmide, com arames e a colocou sobre uma mesa, orientando suas faces em relação ao norte magnético. Cortou dois pedaços iguais de uma mesma peça de carne, colocou um dos pedaços dentro da pirâmide e o outro do lado de fora. Cortou um tomate ao meio, colocando uma das partes no interior da pirâmide e a outra foi deixada de fora. Tanto a carne quanto o tomate que foram colocados dentro da pirâmide, permaneceram sem se estragar, enquanto os que ficaram de fora, se deterioraram.
Aleguei que existem inúmeros exemplos de fenômenos e acontecimentos totalmente inexplicáveis pelo ser humano, pela ciência ou pelas religiões. No entanto, não precisamos recorrer a isso, basta observar o que acontece dentro de nós mesmos. Coloquei o que chamo de pensamentos involuntários, que ocupam o pensamento, independente da vontade do indivíduo e, mesmo contra sua vontade. Todos podem verificar isso em si próprios. Isso acontece com o empresário em dificuldades, quando as conseqüências negativas ocupam seu pensamento, com insistência, mesmo enquanto não passam de possibilidades. No tempo em que o pensamento involuntário ocupa o pensamento, não é possível que a racionalidade possa ser exercida, tenha possibilidade de agir. Isso dificulta grandemente a solução de problemas pois a racionalidade, responsável pela coleta de dados, análise dos mesmos, equacionamento e provável solução, estará com sua capacidade limitada, impedida de agir enquanto seu espaço de atuação estiver ocupado pelos pensamentos involuntários.
Esses pensamentos acontecem em inúmeros casos. Quem perdeu um ente querido, tem o pensamento ocupado por lembranças sobre o falecido, que isso não deveria ter acontecido, tentando acusar culpados pelo sucedido, entre outras coisas. Por mais força que o indivíduo, nessa situação, faça para se livrar desses pensamentos, eles permanecem, repetindo as mesmas coisas, como se uma gravação estivesse sendo reprisada constantemente. Isso acontece com mais freqüência quando de grandes perdas, principalmente emocionais. No entanto, acontecem também, motivadas pelo ciumes. O ciumento, mesmo se esforçando para confiar na pessoa amada, não tendo motivos que justifiquem qualquer desconfiança, reconhecendo isso racionalmente; pode ser acometido de pensamentos que o provoquem a duvidar, lhe ofereçam possibilidades de traição, pessoas que poderiam estar envolvidas, etc.. Esses pensamentos ficam martelando a mente do indivíduo, repetindo insistentemente as mesmas coisas, provocando ações, principalmente vingança.
O Nelson disse que isso não acontece com ele, que não tem pensamentos que não queira, que quando eles aparecem, simplesmente os elimina, sem maiores dificuldades. Levantei-me, estendi-lhe a mão e cumprimentei-o pela excepcionalidade. Fenomenal!
A Mirna disse que é acometida por isso, mas que por curtos períodos, após o quê os domina, explulsa-os e segue a vida sem a interferência deles. Logo depois ela disse que estava vivendo um grande problema: Tendo que viver sozinha numa casa daquele tamanho, uma vez que os filhos tiveram que sair de lá por motivos de trabalho. Coloquei-lhe que ela estava com grande problema ao Ter que viver numa casa confortável, com tudo o que ela precisa. Que eu, morava sozinho na fazenda, com o mínimo necessário, sem vizinhos, sem telefone e sem maiores problemas por isso. Emendei dizendo que: “o maior problema é sempre o nosso”.
O Nelson afirmou que eu é que sou dominado por esses pensamentos involuntários, querendo dizer que só eu sofro esses ataques, tendo a pretensão de extrapolar, afirmando que todos sofrem desse mal. Ele se referia ao problema que estou sofrendo, o final do relacionamento, que tanto sofrimento tem me causado.
Eu afirmei que se o sofrimento tem sido muito grande, que ele é proporcional ao que tive, a grandiosidade do que desfrutei; portanto, o sofrimento é o maior que já tive, simplesmente porque perdi a maior coisa que já tive.
O Nelson afirmou que eu queria ser o dono da verdade e que não deixava os outros falar, dizendo que eu ocupava todo o tempo, impedindo os outros de se manifestar. Disse que era um absurdo eu achar que o que eu estava sofrendo, era o maior sofrimento que já existiu.
Defendi-me alegando que havia declarado inúmeras vezes, naquela conversa, meu reconhecimento do mistério, tanto na criação do universo, quanto no decorrer da vida. Que declarara minha incapacidade de entender, por isso o mistério; Portanto, alguém com tantas dúvidas, reconhecendo sua incapacidade, não pode ser acusado de querer ser dono da verdade. Principalmente porque a verdade é um mistério. Esclareci que eu afirmara que o sofrimento atual, é o maior que EU já tivera e não que fosse o maior do mundo. Quanto ao impedir os interlocutores de falar, a própria conversa, o que cada um disse provava por si só que a afirmação dele não tinha sentido.
O Vina, por exemplo, falou muito. Desde criança ele foi induzido a ler muito, principalmente revistas culturais e científicas. Por outro lado, foi criado num ambiente preconceituoso, cheio de idéias prontas, preconcebidas. Dá valor exagerado à ciência, à pesquisa, descartando quase totalmente a humanidade que o cerca, seus problemas, suas causas; os porquês de tudo isso. Baseia-se na ciência e na religião para entender o mundo e não considera o mistério que envolve a vida. Como grande parte das pessoas como ele, interpreta a seu modo, sem se dar ao trabalho de tentar entender o que o autor quis dizer, a tese defendida. A interpretação dele para o mito da caverna, é que o ser humano só vê sombras, que o real não está ao alcance das pessoas. Quer dizer: Ele considera que todo ser humano vive na caverna, que nenhum deles consegue ver a realidade. No meu entendimento, o mito da caverna, defende que a ignorância age em muitas pessoas como se eles vivessem numa caverna, de costas para sua entrada, e que tudo o que vêem só são sombras. Que, se tiverem a oportunidade de voltar-se o olhar a realidade, iluminada, Ficarão ofuscados no princípio e, ao se deparar com a realidade, acharão que aquilo é irreal pois o real, para eles, é o que conheceram durante a vida até ali: as sombras. O ignorante acredita que seus conceitos, crenças e opiniões, são a verdade, por mais exdrúxulas que possam ser. É o que ele conhece. Tudo que for diferente daquilo, é errado ou não passa de ilusão, Perceba-se a diferença de interpretação entre ele e eu. São totalmente excludentes, o que implica que somente uma pode ser verdadeira. Qual das duas será?
Ele falou sobre um cientista que teria projetado uma espécie de elevador para levar pessoas ao espaço, até outro planeta. Considera isso um fenômeno da capacidade humana. Disse-lhe que a capacidade humana realmente é enorme. No entanto, essa capacidade conseguiu avanços extraordinários em muitos setores, com descobertas e invenções espetaculares, porém, continuamos verdadeiros desconhecidos para nós mesmos. Não sabemos quase nada sobre nós mesmos, principalmente sobre nossa emoção, razão e tudo que acontece na nossa mente.

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