quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Natal

NATAL
Cinco horas da manhã do dia vinte e quatro de dezembro. Belmiro esfrega os olhos, levanta o corpo e sai da cama. Depois de mijar, recolhe os papelões, junta-os e os enrola na coberta gasta e rasgada, enfiando tudo num saco plástico. Pronto, sua cama está protegida da chuva. Com o saco às costas, caminha dois quarteirôes e chega num estacionamento, onde o vigia lhe permite guardar a cama, no quartinho do compressor.
Antenor, o vigia, lhe oferece uma marmita com os restos da janta, que ele devolve totalmente limpa, sorve um gole de café, da garrafa térmica do vigia e volta para a rua.
Caminha com passos lentos, desanimados, cansados. Na rua de cima, ajuda um camelô a empurrar o carrinho que carrega as tranqueiras que vende. Quando chegam no ponto do camelô, ajuda a desamarrar a carga e tirar a lona que a cobre. O camelô lhe dá uma moeda de cinqüenta centavos e ele volta a caminhar.
Alguns quarteirôes depois, o seu Antonio está abrindo a porta do bar. Belmiro o ajuda a erguer a porta e a colocar as tabuletas na calçada. Ganha um café e volta a arrastar as pernas naquele caminhar inercial.
Chega em frente a uma transportadora, que ainda está fechada. Senta-se na calçada e espera que chegue alguém para abri-la. Quando o seu Nico chegou, Belmiro ajudou-o a abrir as portas, pegou a vassoura e começou a varrer o chão. Varria lentamente, no rítmio que andava. Varria entre fardos, caixas e volumes disformes, depositados no chão. Juntava o produto da varredura em montes, pegava com uma pazinha e colocava num latão. Quando o latão enchia, despejava num saco. Os funcionários da transportadora foram chegando e, enquanto trocavam de roupa, conversavam animadamente. Belmiro continuava varrendo e recolhendo o lixo, como se estivesse sozinho. Por volta das nove horas, Belmiro terminou a varrição e o ensacamento do lixo, carregou os sacos para a calçada, encostou-os na parede e foi procurar o seu Nico, que lhe deu cinco reais como pagamento pelo serviço. Voltou pra rua, naquele caminhar sem pressa.
Entrou na padaria, comeu um pão com manteiga e tomou um copo de café com leite. O gerente da padaria ofereceu-lhe um trabalho: carregar a lenha, que estava na calçada, para dentro. Belmiro aceitou. Dirigiu-se ao monte de lenha e começou o trabalho. Carregava tres ou quatro pedaços de lenha de cada vez. Andava como sempre, lentamente. Arrumava os paus na pilha, ao lado do forno, como se montasse um quebra-cabeça: com cuidado, emparelhando as pontas. Ninguém lhe pedira isso, fazia porque queria, mesmo sem querer, sei lá porque fazia! Na hora do almoço, um dos balconistas lhe trouxe uns pedaços de pizza, daqueles que já não podem ser vendidos por estarem ressecados. Comeu, tomou um café e voltou ao trabalho, arrumando os paus, aparelhando suas pontas na pilha, carregando-os naquele passo lento.
O dia já ia chegando ao fim, quando Belmiro terminou de varrer a calçada onde estava o monte de lenha. O gerente da padaria pediu-lhe para ajudar os padeiros, pois tinham muitas encomendas de bolos e doces e estavam muito apurados de trabalho. Ele comeu um lanche e foi ajudar os padeiros. Como lhe faltasse habilidade, carregava formas, varria, limpava, em fim, ajudava no que podia, naquele passo lento, contrastando com a correria do pessoal que trabalhava ali. Muitas vezes ele mais atrapalhava do que ajudava, dificultando a movimentação de todo aquele pessoal. Por volta das dez horas da noite, o encarregado do forno disse-lhe que podia ir embora, que já não era mais necessário. Passou na padaria, recebeu os dez reais, comeu um sanduiche de mortadela, tomou um guaraná e saiu pra rua, naquele passo lento, arrastado.
Chegou no estacionamento, pegou o saco e saiu em direção à marquise de uma repartição pública que lhe servia de casa. Quando atravessava a última rua, lentamente, sentiu uma pancada no corpo e percebeu que voava.
Olhou-se no chão, uma poça de sangue crescia junto a sua cabeça. Varias pessoas se aglomeravam em torno dele, meio alvoroçadas, confusas. Um homem se agachou junto a ele e afirmou que estava morto. Morto? Como? –“Eu estou vivo, olha eu aqui!“ Ninguém deu atenção, não o ouviam. Um homem foi ao telefone da esquina e ligou para a polícia.
-É Belmiro, fim da missão.
-Quem é você?
-Eu sou você.
-Não, eu sou eu, você não pode ser eu!
-Sou.
-Como é que você pode ser eu, se eu, sou eu, não você!
-Eu também sou você.
-Como é que você pode ser eu, se só eu sou eu?
-Sou o teu outro lado.
-Que lado?
-A tua inconsciência. –Belmiro reparou que o homem que falava era ele mesmo.
-Você é igual a mim mesmo! Como pode ser isso? Como é que eu nunca te vi?
-Nós vivemos sempre juntos, você era o lado consciente e eu o inconsciente.
-Não tô entendendo nada!
-Bom, isso não é novidade, você sempre teve dificuldade pra entender até as coisas mais simples, não admira que esteja confuso agora. Você já percebeu que nós morremos?
-Morremos? Como?
-Você não está vendo nosso corpo lá no chão, parado, cheio de sangue e aquela gente em volta?
-Mas eu tô vivo, tô aqui falando com você. Como é que posso estar morto?
-Nós somos o que chamam de alma. A vida do nosso corpo já era. Acabou. Morreu!
-E agora? O que vai acontecer? Pra onde eu vou?
-Não sei. Só sei que temos que esperar, que alguém venha nos buscar. Enquanto isso, esperamos.
-Quem vem nos buscar? Pra ir aonde?
-Não sei. Só sei que temos que esperar, que alguém virá e nos levará.
-E o que a gente faz enquanto esse alguém não chega?
-Espera. A gente pode conversar pra passar o tempo. Você não tem curiosidade de saber quem eu sou? O que fazia? Como interfiria na nossa vida?
-Ainda não tô acreditando que você é eu, que viveu junto comigo a vida toda. Um de nós é louco! Nunca ouvi dizer que tinha mais de um numa pessoa só.
-Bom, já que teremos que esperar até que venham nos buscar, vou tentar te explicar como a gente funcionava. Você era o que chamam de consciente. Era você que pensava (muito pouco, que esse não era o teu forte), que comandava o corpo.
-Como assim?
-Era você que fazia as pernas andarem, as mãos pegarem alguma coisa; era você que comia, que ia no banheiro, que tomava banho, que falava, em fim, era você que mandava em tudo o que o corpo fazia.
-E você fazia o que?
-Eu interferia em você. Te provocava a fazer coisas, ou a não fazer. Colocava coisas no teu pensamento.
-Mas...eu nunca percebi isso, nunca senti que alguém estivesse me dizendo alguma coisa, de dentro de mim mesmo!
-É. Você não poderia saber mesmo, a consciência não tem conhecimento da inconsciência. O indivíduo pensa que só ele é que pode interferir na sua vida, que tudo o que pensa e sente são causa ou efeito dele mesmo. No entanto, não é assim; a consciência faz algumas coisas, principalmente sob o comando da inconsciência.
- Não tô entendendo nada. Você está dizendo que o que eu fazia, não era eu que estava fazendo?
- É mais ou menos isso. Sei que é difícil pra você entender, esse nunca foi o teu forte, o que, aliás, facilitou muito o meu trabalho. Vou relembrar algumas passagens da nossa vida pra ver se você entende alguma coisa.
- Lembra quando você resolveu sair da casa da mãe? Nós morávamos numa casa de madeira, no sítio do vô. A mãe era separada do primeiro marido e já tinha se separado do teu pai também. A situação estava bastante ruim, como aliás sempre fôra. O vô deu aquela casa velha pra gente morar. A mãe trabalhava de vez em quando na roça, pros vizinhos, fazia um serviço aqui, outro ali e a gente ia vivendo.
- Um dia a gente ficou sabendo que a mãe estava namorando o Tonhão. Depois de um tempo ele veio morar em casa. Não demorou muito tempo pra ele começar a reclamar de que você e os irmãos davam muita despesa e não ajudavam em nada, que era um bando de vagabundos e preguiçosos. Ele bebia muito e as brigas com a mãe por causa dos filhos, foram ficando cada vez mais constantes. Um dia, eles brigaram de tapa, murros e ponta-pés. Você entrou no meio pra defender a mãe e acabou tomando um chute do Tonhão, que te jogou em cima do fogão de lenha. Você pegou um pedaço de lenha do fogão e bateu na cabeça dele. Ele caiu desacordado e a mãe foi pra cima de você, gritando que havia matado o Tonhão, te dando tapas e ponta-pés. Lembra o que você fez?
- Juntei um tanto de roupa e fui embora. Eu tinha quinze anos nessa época.
- Lembra pra onde foi?
- Fui pra fazendo do seu Dito. Cheguei de madrugada, dormi no paiol e, no dia seguinte, pedi serviço pra ele. Eles tavam quebrando milho e trabalhei um mês lá. Quando acabou o serviço, fui embora com o Zé Grota, que era um peão do trecho, e fomos colher laranja numa fazenda lá pros lados de Caimbora. Fiquei nessa vida de peão do trecho, trabalhando pros “gatos”, uns três anos.
- Pois é. Lembra que quando você saiu de casa, revoltando e chorando, a primeira coisa que te passou pela cabeça foi ir na casa do vô, contar o que tinha acontecido e pedir pra ficar lá. Lembra?
- Lembro.
- Eu te aconselhei a não fazer isso. Eles iam ajeitar as coisas e você acabaria tendo que voltar pra casa. Te fiz pensar que o melhor seria procurar uma nova vida. Que o mundo está cheio de oportunidades e que qualquer coisa era melhor que ficar sendo maltratado numa situação como aquela. No meio do caminho, a fome e o frio te forçavam a desistir e voltar pra trás. Eu te incentivei a continuar em frente e chegar na fazenda do seu Dito. Quando terminou a colheita do milho, ele te ofereceu a oportunidade de você continuar trabalhando lá, te dava casa e comida e um salário que não era de jogar fora. Você já ia aceitando, quando eu te aconselhei a seguir o Zé Grota. O seu Dito te deu um prazo de dois dias pra pensar. Você achava que a proposta dele era muito boa e eu ficava colocando na tua cabeça que aventurar com o Zé Grota era muito melhor. Conhecer o mundo, sem paradeiro certo, buscando a oportunidade de ganhar muito dinheiro, se divertir e, quem sabe, acabar virando fazendeiro. Você insistia em ficar e eu te provocava a ir embora. Quando o Zé veio te dizer que estava indo embora, forcei mais um pouco e você pegou a trouxa e foi com ele. Nem se despediu do seu Dito. No caminho ainda se arrependeu várias vezes, me forçando a insistir que aquela era a melhor solução. No primeiro laranjal, você aprendeu o serviço e estava se dando bem, todo feliz com o dinheiro que estava ganhando. Eu comecei a botar na tua cabeça lembranças da mãe e dos irmãos. Que eles deveriam estar sofrendo nas mãos do Tonhão, que poderiam, até, estar passando necessidade. Você não queria lembrar deles, achava que não poderia fazer nada para ajudá-los. Eu insistia e fazia você pensar que a mãe poderia estar apanhando, que era capaz do Tonhão acabar matando-a. Que os irmãos iam ficar jogados no mundo e coisas assim. Você fazia força pra esquecer tudo isso, mas eu não deixava e fazia você pensar nisso a maior parte do tempo.
- Então era você que ficava me atazanando com essas idéias? Aquilo não me dava sossego, cheguei a pensar muitas vezes em voltar.
- Quando você pensava em voltar, eu te dizia que ainda não dava. Que precisava ganhar dinheiro, juntar um pouco pra poder fazer alguma coisa. Se voltasse agora, não ia poder ajudar em nada e ainda ia se encher o saco e sofrer junto com eles. Você foi juntando dinheiro e, quanto mais juntava, eu fazia você pensar que ainda era pouco, que não era suficiente, que era preciso juntar mais. Quando você já tinha juntado um valor que daria até pra comprar um pedaço de terra e estava disposto a voltar; te levei a se apaixonar pela Izilda. O pai dela era contra, pretendia que a filha casasse com algum fazendeiro e não com um peão do trecho. Ele fez o impossível pra impedir o casamento. Você titubeava, achava que não ia dar, que sem o consentimento do pai não teria como se casar com ela. Eu te aconselhei a roubá-la. Fiz com que a paixão chegasse a tal ponto que você não pudesse resistir. Você tinha medo, pois a fama do pai dela era terrível, diziam, até, que já havia matado algumas pessoas. Era valentão e dizia que, se precisasse, iria até o inferno pra caçar quem o desacatasse. Você tremia só de pensar nisso. Eu aumentava a paixão e, mesmo cagando de medo, numa noite você roubou a moça e foram embora. Quando a Izilda perguntou pra onde vocês iriam, tua resposta foi imediata: - Vamos pra casa da minha mãe. Eu te aconselhei a não fazer isso, como você ia levar a moça pra morar num lugar onde só havia problemas? Como poderia viver sossegado com ela, no meio daquela confusão que deveria estar acontecendo por lá? Você insistia em ir pra lá, eu insistia pra não ir. Acabei te convencendo, alegando que, lá, seria o primeiro lugar que o pai dela iria procurar e, que se te achasse, você não teria salvação. Foi o suficiente, você desistiu na hora. Vocês pegaram carona num caminhão e o motorista disse que estava indo buscar uma carga de carvão. O lugar era longe, ficava a dois dias de viagem dalí. Conversa vai, conversa vem, você resolveu ir com ele e tentar a vida lá. O motorista pretendia parar logo pra dormir, mas você o convenceu a tocar mais um pouco, ir pra mais longe. Ele concordou e foram dormir com o dia quase amanhecendo. O motorista deitou-se numa rede que prendera sob a carroceria do caminhão e você e a Izilda dormiram sentados na cabina. Quando acordaram, o motorista convidou pra tomar café, mas você, com medo de ser visto, recusou e pediu que ele trouxesse pão e café para que eles comessem ali mesmo. A viagem seguiu e como você sempre foi de falar pouco, quem mais conversava com o motorista era a Izilda. Eu comecei a te por na cabeça que aquele negócio não estava certo. Que negócio era aquele de a tua mulher ficar de prosa com outro homem? Você achava que não tinha nada de mais, que estavam na tua frente e que a conversa era normal. Que mal poderia haver naquilo? Eu te dizia pra ficar de olho, que eles estavam se olhando muito, que eles poderiam acabar se interessando um pelo outro e que você poderia perder a mulher. Você teimava de um lado e eu do outro. Como você resistisse, fui aumentando a dose. Lembra o que aconteceu?
- Quando paramos pra jantar, num posto que era parada de ônibus, comprei passagens, enfiei a Izilda num ônibus e fomos embora sem se despedir do motorista. Quer dizer que você é que aprontava tudo isso? Por que?
- Não sei. Eu sou uma espécie de moleque de recados, um “pau mandado”. Alguém ou alguma coisa manda e eu obedeço. Lembra que a Izilda não queria ir no ônibus e, diante da tua insistência, ela alegou que, pelo menos vocês deveriam se despedir do motorista e agradecer a carona?
- Lembro.
- Então, você achava que ela tinha razão. O homem tinha demonstrado ser bom, estava disposto a ajudar, inclusive a arrumar trabalho pra você. Você não havia visto nada que pudesse justificar qualquer suspeita de que ele estivesse interessado na Izilda, nem ela nele. Não havia motivo pra abandonar a carona, a oportunidade de trabalho. Aquilo era uma bobagem, sem sentido. Ela argumentava e você concordava. Tive muito trabalho pra te convencer que seguir naquele caminhão era uma roubada, um grande risco. Acabei te convencendo que o motorista morava numa cidade próxima de onde teu sogro morava. Que ele poderia acabar descobrindo que vocês pegaram carona, iria atrás do motorista e este acabaria contando onde vocês estavam. Esse argumento convenceu até a Izilda e ela acabou concordando em embarcar no ônibus.
- É, mas acabou sendo melhor mesmo. Como não tinha banco vazio no ônibus, a Zilda sentou com uma mulher e eu com um menino. Conversando com a mulher, a Zilda ficou sabendo que o marido dela pretendia vender o sítio, porque estava doente e pretendia mudar para a cidade. Acabei comprando o sítio, num preço muito bom e, ali, construi minha vida e criei os filhos.
- Foi bom mesmo. Nesse tempo fiquei folgado, sem Ter o que fazer. Só daquela vez que você foi na cidade com um vizinho pra pegar um empréstimo no banco, lembra?
- Lembro. Ele acabou me levando na zona e eu fiquei encantado por uma puta. Ela quase me levou à falência. Arrumei muita confusão em casa, por tantas idas para a cidade, até que acabaram contando pra Izilda que o motivo era a puta da zona. A gente quase se separou!
- Nesse tempo eu trabalhei bastante. Você não queria acompanhar o vizinho. Tive muito trabalho pra te convencer de que não tinha nada de mais, afinal você trabalhava tanto, merecia um divertimento. A puta era esperta e percebeu que você seria uma boa vítima. Eu fiz você se apaixonar por ela. Acabou passando a noite com ela e gastando uma parte do dinheiro que pegara no banco. Nos dias seguintes você fazia força pra esquecer a mulher, mas eu não dava trégua. Fazia você lembrar do corpo dela, do seu rosto, das palavras carinhosas que ela te dizia, de que estava apaixonada por você. Você não resistia e esquentava a cabeça procurando motivos para ir na cidade. No fim, nem motivo você arrumava mais. Ia e pronto. Chegou um ponto em que você pensou seriamente em abandonar a família e ir morar com a puta. Ai eu te fiz considerar que aquilo seria uma roubada, que acabaria perdendo tudo que conseguira em tantos anos de trabalho. Você aceitou a idéia e resolveu largar a puta. Durante muito tempo eu te tirava o sono e o sossego, te colocando na cabeça a lembrança dos momentos desfrutados, do quanto fôra bom, dos detalhes do corpo dela, das carícias que te fazia, da paixão que dizia Ter por você.
- Nesse tempo, comi o pão que o diabo amassou! Foi muito difícil, faltou pouco pra eu mandar tudo pro inferno e ir morar com ela. Faltou muito pouco! O que aproveitei em três meses, sofri mais de ano! Mas, por que você fez isso?
- Já te falei, não sei. Só cumpri ordens. Mandavam eu fazer e eu fazia.
- Foi você que fez a Izilda ir embora?
- Não. Isso foi serviço do inconsciente dela. Ele deve tê-la provocado a sentir vontade de morar numa cidade grande. Ela te convenceu a vender o sítio e satisfazer esse desejo.
- Ela me apurrinhou mais de dois anos e acabei vendendo o sítio contra a vontade. Não me acostumei com a vida da cidade, mas ai, já não dava pra voltar, não tinha mais dinheiro, nem coragem pra enfrentar a vida na roça como empregado.
- Ela, ao contrário, se adaptou com facilidade. Se enturmou com a vizinhança, aprendeu o ofício de manicure, conseguiu uma freguesia razoável e não perdia oportunidade de se divertir. Começou a freqüentar salões de baile e se divertir. No começo ela te convidava para acompanhá-la, mas você se recusava. Tentou impedi-la mas foi em vão. Ela alegava que gostaria que você a acompanhasse mas, não aceitando, ela se dava o direito de ir com as amigas. Argumentava que havia saído da roça pra curtir a vida e não pra ficar mofando dentro de casa.
- Aquilo foi arte do capeta! Como é que pode, uma mulher que sempre foi tão trabalhadeira, boa esposa, boa mãe; de repente, começa a usar uma roupas esquisitas, se rebocar de pintura, andar com uma mulheres que não valiam nada. Só o capeta pra provocar uma mudança assim!
- Você apurrinhou tanto, encheu tanto o saco, que ela resolveu te abandonar. Dividiu o aluguel de uma casinha com uma amiga, que também se separara do marido e continuou curtindo a vida. Você, ao contrário, foi se afundando em você mesmo até chegar onde chegou: virar morador de rua, abandonado, sozinho. Os filhos quiseram te ajudar mas você recusou.
- Mas, se você estava ali dentro de mim, não sofria com essas coisas?
- Não. Eu não tinha emoção, só desempenhava minha função. Não sofria nem tinha felicidade. Isso ficava por sua conta.
- Esse negócio tá muito confuso. Como é que você pode ter vivido comigo o tempo todo sem que eu te conhecesse? Sem saber que você tava ali? Fazendo o que você queria, sem saber disso? E, ainda por cima, essa estória de que você mandava em mim, obedecendo a não sei quem. Isso é maluquice! Pura xaropada!
- Você pode achar o que quiser; mas que é assim, é.
- Como é que pode você não saber, não conhecer quem te dava as ordens? Como é que ele falava com você?
- Não falava. Eu sentia, sabia que tinha que fazer aquilo e fazia.
- Como?
- Sentindo. Era a mesma coisa que eu fazia com você; agindo na tua cabeça, sem precisar dizer nada, entendeu? Você acreditava que os pensamentos e idéias eram tuas, quando na verdade você estava sendo comandado por mim. Comigo acontecia mais ou menos a mesma coisa: sentia que tinha que te provocar, te induzir a fazer alguma coisa. Cumpria meu papel e pronto.
- É muito complicado! Não to entendendo nada. É melhor a gente largar mão dessa conversa. Quanto mais você fala, menos eu entendo.
- Olha lá! Estão colocando nosso corpo numa caixa.
O carro levou o corpo para o instituto médico legal. Belmiro entrou numa espécie de túnel e desapareceu.

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