quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

cigana

“Teu futuro está no teu passado. Relembre-o e, quando chegar no ponto certo, terá certeza de Ter encontrado o caminho.”
Era o meio da madrugada, acordei com a imagem nítida de uma cigana segurando minha mão e dizendo aquilo. Não percebi os detalhes do seu rosto, mas lembro claramente do seu cabelo muito negro, até a cintura; dos brincos de argola bem grandes, da blusa colorida que deixava seu colo a mostra e da saia pregueada com estampa muito colorida e que lhe cobria os pés.
Estranhei; afinal nem me lembrava da última vez que me lembrara do que sonhara. As poucas lembranças dos sonhos, não sobreviviam a alguns instantes depois do despertar. No entanto, agora, ele continuava inteiro na lembrança, com uma nitidez espantosa.
Considerei que aquilo seria mais uma obra do mistério, que acredito permear a vida, provocando-nos através de pensamentos e emoções. Agora, ele se manifestava em sonho. Procurei voltar a dormir, mas as palavras e a imagem da cigana não me saiam do pensamento.
Embora tivesse conhecido muita gente que tinha premonições, tivesse ouvido muitas histórias a esse respeito; isso nunca aconteceu comigo, pelo menos que eu me lembre. Tentei esquecer aquilo e dormir, no entanto, a imagem da cigana e o que disse, não me saia do pensamento. Era uma imagem nítida e as palavras reluziam como num letreiro de neon. Tentei pensar em outras coisas, mas a imagem e as palavras dominavam minha mente, impedindo que qualquer outra coisa ocupasse seu lugar.
Não sei quanto tempo passei tentando conciliar o sono, esquecer a cigana e o que dissera. Pareceu-me uma eternidade, mas acabei adormecendo. Pela manhã, ao acordar, o sonho com a cigana estava intacto na minha mente. Tentei lembrar o que sonhara depois disso, mas não consegui.
Eu passava pelo que considerava a pior fase de minha vida. Aos cinqüenta e oito anos estava só há quase um ano e meio. O último relacionamento durara sete anos e fora maravilhoso, de tal maneira que, todo o resto se tornara insignificante, por maior que fosse. Ela era trinta e dois anos mais nova que eu. Tinha dezessete anos quando a conheci e foi como encontrar um diamante bruto em meio a tantas pedras comuns. No início, considerei aquilo uma verdadeira aberração. Era razoável que eu tivesse sido atraído por sua beleza, pelo potencial que percebi nela, no entanto, me parecia absurdo que ela tivesse se apaixonado por mim, muito mais velho, sem atrativos físicos, pobre e sem grandes perspectivas de futuro. No entanto, a paixão mútua atingiu tal ponto que não pudemos evitar o envolvimento.
Ela foi o que eu só imaginara como obra de ficção: verdadeiro diamante com todas as condições para que a lapidação pudesse mostrar uma jóia de altíssimo quilate. Foi uma vida de muito trabalho, de limitações econômicas, de enfrentamento de preconceitos, de uma luta constante pela sobrevivência, pela defesa do relacionamento, em busca de um futuro melhor. Ela foi corajosa, inteligente, sensível, humilde, solidária, apaixonada por mim e pela luta. Foi o eu feminino. Como eu, acreditava que o capital é necessário à sobrevivência, para executar projetos materiais e para possibilitar uma vida menos sacrificada; no entanto, ele não deve se sobrepor aos valores morais positivos, à razão e, principalmente, ao amor. Nosso amor nos propiciou enfrentar todo tipo de dificuldade, oferecendo um abrigo seguro, nos protegendo e dando forças para enfrentar as maiores adversidades. A lapidação daquele diamante era constante e progredia a olhos vistos.
Nossas conversas eram infindáveis, buscando conhecer e, principalmente, compreender a vida, buscando dados, analisando-os, refletindo, concluindo e, sabendo que nenhuma conclusão é definitiva, podendo mudar com novos dados, ângulos diferentes de análise, etc. Aprendemos muito um com o outro. A necessidade de sobrevivência, a busca por melhores condições de vida e, principalmente, a ânsia por compreensão, nos empurravam para as mais diversas aventuras com a coragem propiciada pela motivação e pela força fornecida pelo amor.
Tudo isso acabou de repente. Sem aviso prévio, sem qualquer tipo de ocorrência que indicasse que o fim estava próximo. Ela decidiu ir embora e foi.
Quando ela foi embora, minha motivação para a vida se resumiu na esperança de que pudesse recuperá-la, se não como mulher amada, pelo menos como amiga, com toda a importância que sua amizade representara para mim. No entanto, nem isso foi possível. Grande parte daquela pessoa maravilhosa havia deixado de existir e uma personalidade comum tomara seu lugar. A admiração que eu lhe causara durante todos esses anos, se transformara em repulsa. Eu que fôra um deus pra ela, agora era o próprio demônio. Depois de haver tentado tudo que me pareceu possível, tive que me convencer de que o fim era irremediável. O sofrimento causado pela perda foi proporcional ao prazer desfrutado, inimaginável!
“Teu futuro está no teu passado”. Por que esse sonho não me sai da cabeça? Por que sua lembrança é tão nítida? Provavelmente é uma recaída. A mudança na personalidade dela foi tão radical, tão irracional, que considerei a hipótese de que o mistério a provocara para me castigar, me fazer sofrer. Talvez, uma cobrança pelo que me propiciara ao colocá-la em meu caminho. Talvez a intenção de reforçar, em mim, o valor do que tinha nas mãos. Meu primeiro impulso foi assumir a culpa pelo acontecido, procurar motivos que eu tivesse dado para aquela decisão. Passaram muitos meses em que rebusquei na memória algum dado que me indicasse o que eu poderia Ter feito para provocar aquilo. Supervalorizei pequenos detalhes que me pareceram motivos para a decisão dela, assumindo a culpa, buscando maneiras de corrigir o que fizera, me penitenciando por Ter feito o que, em análises mais ponderadas, não seriam motivos nem para um pequeno desentendimento. Isso me fez acreditar que, sendo o culpado, poderia agir para corrigir o acontecido e que dependia de mim conseguir recuperar aquele relacionamento. Isso me dava esperança e me fazia viver cada momento a espera do seu retorno. Durante todo esse tempo acreditei que estávamos passando por uma espécie de provação, que nos propiciaria retomar o relacionamento com mais intensidade, com mais compreensão, em um nível muito mais elevado. Isso me fazia acreditar que qualquer indício, por menor que fosse, indicava a possibilidade da reconciliação.
É provável que aquele sonho fosse o resultado de mais uma armação da minha esperança em recuperar o grande valor perdido. Aquele sonho poderia representar que meu futuro estava ligado a ela, que, naquela época, fazia parte do meu passado. No entanto, o sonho dizia que, quando encontrasse, no passado, o que representaria o meu futuro, eu sentiria isso fortemente. Portanto, não poderia ser isso, uma vez que não sentia nada diferente, muito menos, especial.
Considero que, nos meses que se seguiram à separação, aprendi mais que em toda minha vida. Os dias e noites eram intermináveis, o sofrimento intenso, a infelicidade, total. A emoção me provocava a culpá-la por meu sofrimento, a buscar vingança. Quando eu me negava a fazer isso, ela me provocava a procurar culpados, a odiá-los, a responsabiliza-los pelo que eu estava passando. Minha racionalidade consciente me mostrava que, mesmo que eu conseguisse castigar todos os culpados que a emoção me indicava, não aplacaria meu sofrimento, não a traria de volta pra mim, nem me devolveria a felicidade. A emoção pretendia tomar conta de mim, colocando-me pensamentos que eu não queria, que a razão consciente condenava e que se esforçava para expulsá-los. Era uma luta desproporcional, onde a ditadura da emoção se impunha com força esmagadora, tentando aniquilar os argumentos da razão que, por sua vez, lutavam bravamente, resistindo, evitando o domínio total da opressora.
Meu estado era deplorável. A auto-estima e o amor próprio lutavam bravamente para mostrar que não eram fracos, mas que a força que tentava aniquilá-los era demasiado grande e imbatível; no entanto, eles continuavam a lutar para sobreviver, agarrando-se à razão como a um salva-vidas, evitando afundar de uma vez, desaparecendo. A angústia apertava o peito, sufocando, provocando crises de choro convulsivo para evitar a explosão. A lembrança realçava o valor da perda, reforçando o sofrimento. A maneira que encontrei para não sucumbir de vez, foi tentar entender, compreender o que estava acontecendo, buscando dados na memória, lendo, refletindo, considerando exemplos conhecidos do comportamento humano, tentando entender o que acontece na mente, as possíveis interferências externas a ela, misteriosas, inexplicáveis. Procurei registrar, por escrito, diariamente, todas as emoções, sentimentos, pensamentos involuntários, racionalizações, o mais fielmente possível, para que servissem de dados para estudos futuros. Fiz isso para tentar encontrar possíveis soluções, mas, também, para resistir ao aniquilamento que me rondava. Essa luta desigual, desproporcional, num campo totalmente minado pelo sofrimento, me possibilitou resistir, manter a dignidade e aprender muito.
Depois de tanto sofrimento, de tanta luta para não sucumbir, de Ter compreendido muita coisa a respeito de mim mesmo e, principalmente, do quanto estamos sujeitos a interferências que não podemos evitar; o sofrimento diminuiu bastante, os pensamentos involuntários são mais esparsos, a esperança de recuperar o perdido é mínima, a ansiedade deixou de perturbar, a razão mostra que a vida continua e que a possibilidade de perdas e ganhos é inexorável. Continuava sem motivação, com dificuldade para fazer o mínimo que fosse, principalmente para empreender algo novo. Trabalhava o mínimo para conseguir a sobrevivência e usava a maioria do tempo pesquisando, pensando e escrevendo.
Tentei publicar alguns trabalhos mas não consegui. Da mesma maneira não consegui retorno das pessoas a quem pedi que os lesse e criticasse. Considerei que tudo o que escrevera e que eram resultado de tantas experiências e reflexões, não passariam de loucuras inservíveis. A auto-estima voltou a correr sérios riscos, no entanto, a razão argumentou que, mesmo que fosse loucura, não era tão emprestável seu conteúdo. Que, quem sabe, um dia, alguém possa aproveitar esse trabalho.
Continuei pesquisando, lendo, aprendendo e escrevendo, conformado com a situação e esperando que algo acontecesse. Uma cigana me aparece em sonho e me diz que meu futuro está no meu passado. Onde? Meu passado é um campo muito grande, com muitas aventuras, muitos acontecimentos, muitos desvios. Muita coisa está perdida na memória, talvez, irrecuperável. Como identificar o ponto determinante do futuro?

“O futuro está no teu passado.” Os dias foram passando e a lembrança do sonho, ao invés de perder força, se desvanecer; continuava nítida, com a imagem da cigana com os mesmos detalhes, com a mesma clareza das palavras que disse.
Considerei que aquela frase poderia Ter inúmeros significados, como por exemplo: Como defendem algumas religiões, do pó viemos e a ele voltaremos. Que, na velhice, voltaremos a Ter dificuldade para andar, como tivemos na época em que demos os primeiros passos, na infância. Que poderemos Ter necessidade de auxílio para necessidades básicas, como comer, tomar banho, etc., como tivemos na tenra infância. A velhice tem muitas características que nos remetem à infância, ao passado. No entanto, isso é óbvio, não precisando ser lembrado por sonhos ou qualquer outro meio. Tentei esquecer aquele sonho, considerando a dificuldade para interpretação de sonhos. No entanto, a lembrança dele continuava ocupando minha mente, dificultando o uso da racionalidade para pesquisar, ler, refletir e escrever sobre o assunto a que me dedicava nos últimos tempos: o funcionamento da mente humana.
Depois de vários dias tentando esquecer aquele sonho, desconsiderá-lo e, não conseguindo; me rendi a ele e me dispus a tentar desvendá-lo, interpretá-lo, em fim, considerar que ele poderia significar algo e tentar descobrir o quê. A tentativa de desconsiderá-lo não se deveu a incredulidade, a desconsideração de que sonhos possam Ter significado importante. A tentativa aconteceu por considerar a dificuldade de interpretar o possível significado.
Comecei considerando o conceito que Jung tinha a respeito dos sonhos:
Eles são pontes importantes entre processos conscientes e inconscientes. Comparado à nossa vida onírica, o pensamento consciente contém menos emoções intensas e imagens simbólicas. Os símbolos oníricos freqüentemente envolvem tanta energia psíquica, que somos compelidos a prestar atenção neles.
Para Jung, os sonhos desempenham um importante papel complementar ou compensatório. Os sonhos ajudam a equilibrar as influências variadas a que estamos expostos em nossa vida consciente, sendo que tais influências tendem a moldar nosso pensamento de maneiras inadequadas à nossa personalidade e individualidade. A função geral dos sonhos, para Jung, é tentar estabelecer a nossa balança psicológica pela produção de um material onírico que reconstitui equilíbrio psíquico total.
Jung abordou os sonhos como realidades vivas que precisam ser experimentadas e observadas com cuidado para serem compreendidas. Ele tentou descobrir o significado dos símbolos oníricos prestando atenção à forma e ao conteúdo do sonho e, com relação à análise dos sonhos, Jung distanciou-se gradualmente da maneira psicanalítica na livre associação.
Pelo fato do sonho lidar com símbolos, Jung achava que eles teriam mais de um significado, não podendo haver um sistema simples ou mecânico para sua interpretação. Qualquer tentativa de análise de um sonho precisa levar em conta as atitudes, a experiência e a formação do sonhador. É uma aventura comum vivida entre o analista e o analisando. O caráter das interpretações do analista é apenas experimental, até que elas sejam aceitas e sentidas como válidas pelo analisando.
Mais importante do que a compreensão cognitiva dos sonhos é o ato de experenciar o material onírico e levá-lo a sério. Para o analista Junguiano devemos tratar nossos sonhos não como eventos isolados, mas como comunicações dos contínuos processos inconscientes. Para a corrente Junguiana é necessário que o inconsciente torne conhecida sua própria direção, e nós devemos dar-lhe os mesmos direitos do Ego, se é que cada lado deva adaptar-se ao outro. À medida que o Ego ouve e o inconsciente é encorajado a participar desse diálogo, a posição do inconsciente é transformada daquela de um adversário para a de um amigo, com pontos de vista de algum modo diferentes mas complementares.

“Teu futuro está no teu passado. Relembre-o e, quando chegar no ponto certo, terá certeza de Ter encontrado o caminho.”
Disposto a tentar interpretar o sonho, mergulhei na memória em busca do passado.

Nasci na Espanha, no final de 1948, no dia dois de dezembro e fui registrado como tendo nascido no dia quatro desse mesmo mês. Era uma época difícil para o povo humilde daquele pais, como para muitos outros de outros países da Europa. As dificuldades, associadas ao desejo de progresso, levaram meu pai a decidir pela emigração. Escolheu o Brasil porque aqui já viviam vários parentes de minha mãe.
Embarcamos em Vigo, porto do Noroeste da Espanha, num navio que havia sido cargueiro e que fôra adaptado para o transporte de passageiros. Foram treze dias de viagem. Minha mãe, que estava grávida, passou mal a viagem toda, segundo ela, pelo forte cheiro de tinta, conseqüência da recente reforma do navio. Eu tinha um ano de vida e ainda não andava.
Meus pais contam que um menino, galego, que também viajava no navio, me adotou como seu protegido e, quando alguma outra criança se aproximava de mim, ele ameaçava em galhego: -“Bai-te embora, xá que te becha chegar, xá te mordo!”- querendo dizer: Vá embora, se perceber que te aproximas de novo, eu Te mordo.
Chegamos ao Rio de Janeiro no dia primeiro de janeiro de 1950 e, no dia seguinte, a Santos, onde desembarcamos e fomos recebidos por parentes que moravam em São Paulo.
Fomos morar no porão de uma casa, na vila Mariana, perto das casas de vários parentes de minha mãe e bem perto da favela do Vergueiro, a maior de São Paulo, naquela época. Logo fiquei muito doente, dizem que tive sete doenças juntas, entre as quais, bronquite. Não sei quais foram as outras, nunca perguntei. Um médico, que atendia a família de minha mãe, a pedido deles, foi me visitar e foi pessimista, considerando que eu tinha poucas chances de sobrevivência. Tanto é que, passava todos os dias para verificar se eu já havia morrido. Ele se enganara, ou eu o enganei, ou o mistério se encarregou de pregar uma peça na ciência. O fato é que sobrevivi e consegui chegar até aqui.
Meu irmão, David, nasceu em maio, na casa de uma tia de minha mãe, na Estrada do Vergueiro, no Ipiranga. Tudo isso fiquei sabendo através de ouvir conversas entre meus pais, parentes e amigos. Não tenho a menor lembrança dessa época.
A primeira lembrança é de um portão, que dava acesso a um quintal de terra, onde havia uma casa na frente do terreno e outra nos fundos, onde nós morávamos, no bairro da Água Funda. Eu deveria Ter três ou quatro anos de idade.
Certo dia, num grande terreno que ficava do outro lado da rua em que morávamos, começaram a montar um circo. Esse terreno ficava a mais ou menos um metro e meio acima do nível da rua. Curioso, eu fui espiar os trabalhos de montagem. Uma menina passeava com um macaquinho preso a uma corrente. Não sei como, o macaquinho sentiu apetite por meu calcanhar e meteu-lhe os dentes. Fui socorrido por minha mãe que, com a ajuda de um delegado de polícia, me levou até o centro da cidade, para que eu fosse medicado no pronto-socorro.
Algum tempo depois, eu brincava nesse mesmo terreno, onde havia funcionado o circo, cai do barranco sobre uma carroça, estacionada, e tive o braço direito quebrado em dois lugares. Novamente o passeio até o pronto socorro e, depois, ao hospital das clínicas, onde o braço foi engessado. Acho que não moramos mais que um ano nessa casa, porém, foi suficiente para que eu sofresse dois acidentes. Ainda bem que mudamos dali, caso contrário, sei lá o que mais poderia Ter acontecido! Não me lembro de ninguém, nem da aparência que tinham meus pais meus pais.
Mudamos para outra casa na vila Morais, não muito longe da Água Funda. Lembro-me de uma casa quadrada, entre árvores grandes e com muitas folhas no chão, no meio de um terreno grande. Lembro-me que havia uma senhora grande, imagem típica de portuguesa, com lenço colorido na cabeça, saia comprida e rodada. Ela mijava em pé, provavelmente não usava calcinha, pois só abria as pernas e mijava.
Contam que um dia, meu tio Ismael, que morava há uns cinco quilômetros dali, me levou para dormir na casa dele. Durante a noite eu aprontei um tremendo berreiro e meu primo teve que sair de madrugada comigo nos braços, levando-me pra casa. Imagino o desejo que ele deve Ter tido de me jogar no mato, que aliás, havia bastante no caminho entre nossas casas. Não tenho a menor lembrança disso, só me lembro de Ter ouvido e história. Anos mais tarde, por volta dos oito anos de idade, quando pensava na possibilidade da morte de meus pais, eu chorava. Quando me perguntavam sobre a causa, eu alegava alguma dor, nunca tendo confessado a verdade.
Minha irmã Mirian nasceu na época em que morávamos nessa casa. Ela nasceu na maternidade Leonor Mendes de Barros, no bairro do Belém. Também não me lembro de nada disso, sei por Ter ouvido. É estranho como algumas expressões são duvidosas. Ter ouvido pode significar: possuir o ouvido, ou haver escutado. Soube dessas coisas por haver escutado.
A próxima lembrança, lembrada, não ouvida, é do jardim Maringá, um bairro em formação, onde meu pai havia comprado um terreno, para onde nos mudamos. Meu pai fôra trabalhar na obra de uma escola que construíram num bairro vizinho, vila Talarico, e conheceu o loteamento que começava a ser vendido. Ele acreditou que poderia pagar as prestações e comprou o terreno. Pelo que contam, a prestação era bem pequena, o problema é que o que meu pai ganhava, era menor ainda, o que ocasionou que atrasasse muitas vezes os pagamentos devidos. A casa foi erguida com a ajuda de amigos de meu pai, que trabalhavam nela aos domingos, numa espécie de mutirão. Concluídas as paredes, colocado o telhado, portas e janelas, nos mudamos pra ela. O piso era de terra batida, não havia revestimento nas paredes nem vidros nas janelas. Não tinha forro também. O terreno ficava no ponto mais alto do loteamento. Desde a casa, podíamos ver muitas ruas e lotes e só duas casas. O solo era de terra vermelha e a chuva formava valetas nas laterais das ruas, onde eu, com uma enxada, rapava areia, fazendo montes que, depois, um carroceiro a carregava e transportava para ser usada no revestimento da casa. Foram muitos anos de obras até que a casa ficasse terminada.
A água era retirada de um poço com vinte e três metros de profundidade, com balde, preso a uma corda, enrolada através de um sarrilho de ferro. Alguns anos depois, meu pai comprou uma bomba usada, do tio Ismael. A bomba foi instalada mas, como não havia energia elétrica, tinha que ser acionada a mão, girando-se um volante de uns cinqüenta centímetros de diâmetro, através de uma manivela. Era cansativo, causando dores no braço. Eu detestava fazer aquilo!
O que me possibilitou lembrar dessa bomba, foi uma fotografia tirada por um amigo do meu pai, onde apareço junto a ela, fingindo-me de mecânico, como se a estivesse consertando. Naquela época, o ofício de mecânico propiciava status ao profissional.
Cursei o primeiro ano da escola no Grupo Escolar Dom Bernardo Rodrigues Nogueira, aquela em que meu pai trabalhou na sua construção e que o levou a comprar o terreno. A professora se chamava Dona Uda. Era muito magra, pálida. Só me lembro disso e de que tinha um bar na esquina que vendia sorvetes, aqueles que tem mais gelo que outros componentes. Tinha um vendedor de quebra-queixo e outro de machadinha, um doce duro, que vinha numa travessa dessas de fazer bolo e que precisava ser cortado a golpes de uma machadinha. O quebra-queixo era uma espécie de melado quase sólido misturado com pedaços de coco pelo meio e por cima. Tinha também um vendedor de raspadinha. Era um carrinho com rodas de bicicleta, com um tampo de madeira, onde havia uma barra de gelo, que era raspada com um raspador, o gelo raspado colocado num copo e, sobre ele, o cara colocava xarope de frutas. Acho que era mais suco que xarope. De qualquer maneira, essas coisas eram pra ser olhadas por mim, pois nunca tinha dinheiro pra comprar qualquer uma delas.
Por essa época, talvez um pouco antes, vieram da Espanha uma irmã de minha mãe, tia Albertina, viúva, e um casal de filhos. A Délia deveria Ter uns dezesseis anos e o Pepe, quinze. Alguns anos antes, tinham vindo minha avó, mãe de minha mãe e a tia Lilian, solteira, penúltima filha de meus avós, uma vez que minha mãe era a caçula. Minha avó veio morar conosco e a tia Lilian foi trabalhar de pagem na casa de um casal de sírios, que tinham tido o primeiro filho.
Tia Lilian e tia Albertina compraram um terreno que fazia fundo com o nosso e construiram uma casa, onde tia Albertina passou a morar com os filhos.
Me lembro que a Délia tinha muitas espinhas no rosto e detestava aquilo. Fez um tratamento na farmácia do Hélio, um cara muito competente e que fazia as vezes de médico naquelas comunidades sem maiores recursos. O tratamento consistia em transfusão de sangue, retirado das nádegas e aplicado no braço, ou o contrário, não me lembro mais. Eu a acompanhava nas idas à farmácia que ficava a uns dois quilômetros de casa. Não me lembro se o tratamento deu certo. Naquela época, o atendimento médico era precário e a maioria da população da periferia recorria aos famaceuticos, que na maioria eram profissionais formados na prática, sem formação acadêmica. Atendiam na farmácia e a domicílio aplicando injeções, fazendo curativos, prescrevendo e fornecendo remédios. Me lembro do Hélio montado em uma bicicleta, de chaleco branco, carregando um estojo metálico onde levava as seringas e agulhas de injeção, para aplicações em domicílio.

O Pepe, filho da tia Albertina, era um porra-louca, desde criança na Espanha. Vivia aprontando. Certo dia foi procurar emprego. Disseram-lhe para pegar o ônibus Cinco Estações, no largo da Concórdia. Ele não conhecia o (Ç) e voltou pra casa, alegando que esperara muito tempo pelo ônibus, mas só passava o cinco Estacões. Lembro que ele foi operado de apêndice no hospital São José do Braz, no Belém. Ele levou uma caixinha de madeira, um bauzinho para guardar as coisas. Não me lembro de muita coisa, enquanto me recordo de coisas bestas assim!
A memória não fornece um filme do passado, se limita a mostrar algumas imagens, sem muita nitidez, além de dados que permitem reconstruir pedaços de acontecimentos. No caso acima, percebo uma imagem, como uma fotografia velha, desgastada, sem nitidez, onde aparece parte de um quarto de hospital, uma cama, uma mesinha de cabeceira e o bauzinho de madeira sob ela. O bauzinho é o detalhe mais destacado, embora não seja possível observar detalhes como: cor, fecho, alça, etc. O Pepe não está na cama, mas sinto que está no quarto e que há mais alguém conosco, mas não os vejo, não sei onde estão exatamente. Não me lembro da sua fisionomia nessa época. A lembrança da sua fisionomia é a de uma fotografia dele, sobre um trator, em Brasília, na época de sua construção, onde ele foi trabalhar dois ou três anos depois. Os dados informam que ele estava naquele hospital por causa de uma cirurgia de apêndice. Outra imagem, também sem nitidez, mostra um prédio de dois pavimentos, velho, com um telhado de telhas cerâmicas enegrecidas por fungos. Os dados informam que o nome do hospital era São José do Braz e que ficava no bairro do Belém. Esse exemplo me mostra claramente que essa lembrança foi reconstruída por mim, a partir das informações que a memória me forneceu. Com todas as outras acontece a mesma coisa. Portanto, por ser uma reconstrução, a lembrança poderá ser algo diferente, quando evocada em períodos distintos.
O segundo ano escolar, cursei em um grupo escolar na cidade Líder, um bairro próximo de Itaquera.. Havia um parque infantil da prefeitura, ao lado da escola, onde passávamos o dia inteiro. Ficava a uns cinco quilômetros de casa e, no começo, havia um ônibus da prefeitura que nos levava até lá. Depois de algum tempo, o ônibus deixou de vir e tínhamos que ir e voltar de carona. Quando uma empresa nova começou a fazer a linha Itaquera, Parque Dom Pedro II, os ônibus nos davam carona.
O uniforme do parque infantil era: camiseta branca de alças, shorte vermelho e, para o frio, um agasalho de flanela marrom. O meu número era setecentos e sessenta e oito. Chegávamos pela manhã e tomávamos café: leite gelado servido em copos de alumínio, pão e queijo branco com goiabada. Almoçávamos e tomamos café da tarde. Quem cuidava da gente no parque infantil, eram educadoras. Me lembro o nome de uma delas: Vani. Tinha um homem preto, muito grande e totalmente careca, que era o servente que, entre outras coisas, servia o lanche e o almoço. Ele era muito legal e se chamava Alfredo.
O parque infantil se compunha de um galpão, o terreno todo gramado, com várias árvores e circundado por uma cerca viva. O terreno ficava na encosta de um morro e, para chegar do portão de entrada até o galpão, era necessário subir uma rampa. Era bastante agradável. Tinha umas gangorras, alguns balanços e um conjunto de barras de tubo galvanizado, daquelas usadas para fazer exercícios pendurado. O que eu mais gostava era pular desde um barranquinho para as barras de ferro, agarrando-me com as mãos, o que resultava no corpo ficar balançando, pelo impulso do salto. Quando as mãos escapavam da barra, o tombo era feio, de costas no chão.
Só me lembro da professora do segundo ano. Era baixa e gordinha, usava saia justa até os joelhos e se chamava Marina. Os alunos formavam fila no páteo da escola e iam pra sala de aulas com a professora à frente. À porta da sala, a fila parava e fazíamos exercícios respiratórios, comandados pela professora.
Fiz a primeira comunhão no parque infantil. No Sábado, o padre do bairro veio até a escola onde nos confessamos. Fiquei preocupado quando soube que não poderia cometer nenhum pecado até a hora da comunhão, que só aconteceria no dia seguinte, no Domingo. Depois da confissão, o padre pediu que a diretora da escola providenciasse que algum menino fosse até a igreja buscar uma lata com hóstias para a comunhão do dia seguinte. Fui escalado, com outro menino para o serviço. Fomos até a igrejinha, que ficava num morro e o sacristão nos entregou uma lata, dessas de biscoitos, com as hóstias. No caminho de volta, a curiosidade nos levou a abrir a lata. Experimentamos uma hóstia e verificamos que tinha gosto de biju. Como eram gostosas, comemos um punhado. O padre deu por falta das hóstias que comêramos e nos contemplou com um belo sermão, daqueles de encher o saco, até do mais arrependido dos cristãos. Teve penitência e tudo. Não me lembro qual foi, mas que teve, teve.
Para a comunhão, montaram um altar na carroceria de um caminhão, onde recebemos a eucaristia. Era uma festa, com direito a vela com um laço branco desenhado com não sei o quê. Não me lembro de Ter comungado outra vez, além daquela. Me lembro que fui crismado na igreja da Penha, que estava super-lotada. Meu primo Pepe foi meu padrinho e de meu irmão, enquanto meu pai foi o padrinho dele, que também foi crismado naquele dia.
As educadoras do parque infantil criaram um jornalzinho, onde publicaram um desenho que eu fizera. Nessa época tive uma briga com uma menina, chamada Rita. Não sei o que ela fez com o tinteiro (naquela época se escrevia com uma pena espetada num cabo de madeira e que exigia que fosse mergulhada no tinteiro a cada pouco). Só me lembro que minha mão estava tomada de tinta. Dei-lhe um tapa no rosto e transferi parte da tinta da minha mão para a face dela, onde minha mão ficou estampada. Levei uma puta bronca e fui castigado. Ainda bem que naquele tempo não tinha delegacia da mulher!
Mandaram instrumentos para que fosse montada uma fanfarra na escola. Um instrutor nos treinou e, a partir daquele ano, passamos a desfilar no dia sete de setembro, comemorando a independência do Brasil. Eu tocava corneta. Desfilávamos com imponência, com todo garbo, considerando que estávamos fazendo a coisa mais importante do mundo. Ficávamos orgulhosos vendo tanta gente nos assistindo. Embora eu adore música e gostaria muito de tocar violão e, principalmente, viola; o único instrumento que consegui tocar foi aquela corneta da fanfarra.
Me lembro de uma festa junina, no parque infantil, todo enfeitado de bandeirinhas que passamos dias cortando papel de seda e colando-as em barbante. Meu primo Pepe foi com um taxi com o qual ele trabalhava. Também foi o motorista dos patrões de minha tia Lilian, que fôra levá-la com as crianças de que cuidava. O Pepe e o motorista compraram um monte de bombinhas e me deram algumas. Foi uma festa a parte, porque era a coisa mais rara, Ter bombinhas para soltar. Era um luxo que nossa condição financeira não permitia.
Aos sábados não havia aulas nem atividades no parque infantil. Num deles, não sei porque, fui até lá, pela manhã. Encontrei uns colegas e fomos pescar num córrego, nas proximidades da escola. Voltei pra casa ao anoitecer, a pé. Quando estava chegando, encontrei minha mãe e não sei mais quem, mas eram várias pessoas, que preocupados, me procuravam. Tomei uma surra daquelas. Não me lembro de Ter apanhado de meu pai, mas de minha mãe, embora não me lembre de nenhuma especificamente, o dado registrado na minha memória informa que não foram poucas. Lembro que apanhei dessa vez que fui pescar, mas não me lembro de como foi a surra, se foi com as mãos, com um cinto ou vara.
Eu não costumava dar motivos para broncas e surras, porque tinha por princípio a honestidade e responsabilidade. Achava que isso era fundamental e fazia tudo para parecer assim. No entanto, fazia tudo para aparentar isso, mas não conseguia deixar de praticar algumas artes, tomando todo o cuidado para não ser descoberto. Na frente de casa, havia uma linha de alta tensão. Sob ela, havia uma faixa de terra tomada pelo mato. Certo dia, não sei porque cargas d’água, botei fogo no mato. Foi um Deus nos acuda, todo mundo correndo pra apagar o fogo, com medo de que ele atingisse os cabos e eles caíssem, provocando uma desgraça. Ninguém ficou sabendo quem fôra o incendiário.
Na esquina da rua de casa com a Av. Itaquera, havia uma colchoaria. Naquela época, o colchão mais comum era feito de capim. Um dia, essa colchoaria pegou fogo. Toda a vizinhança correu lá pra apagar o incêndio. Todos carregavam baldes com água que jogavam sobre as chamas. Foi um incêndio daqueles! Eram tempos de muita solidariedade. Não havia recursos, todos eram muito pobres. No entanto, ninguém se negava a ajudar quem precisasse, da maneira que pudesse. Tenho a impressão de que a solidariedade entre os menos favorecidos, decorre da familiaridade que eles têm com a necessidade. Sabem, por experiência própria, o quanto é importante ser socorrido na hora da precisão. Além disso, há o fato de que, ajudando, consegue-se crédito para quando necessitemos de socorro.
Nessa época se mudou na vizinhança o Sr. José Pereira e sua família. Eles eram portugueses, a mulher, dona Elisa e os filhos: Fernando, Adelino e Toninho, o mais novo. O Toninho se tornou meu melhor amigo, na época. Estudávamos e fazíamos tudo juntos. Os irmãos dele, trabalhavam na padaria de um tio, como balconistas. um pela manhã e o outro à tarde. Depois de algum tempo, os irmãos compraram uma bicicleta. Ela passou a ser nosso divertimento preferido. Andávamos na rua, de uma ponta a outra, um de cada vez; o Toninho, eu, meu irmão e outros moleques da vizinhança. Os donos da bicicleta não queriam que a usássemos, por isso o fazíamos quando um já tinha saído para o trabalho e o outro ainda não havia chegado.
O seu Zé, trabalhava numa fundição. Certo dia, caiu-lhe um lingote de ferro em brasa, dentro da bota. Foi uma tragédia, ele quase perdeu o pé. Nós, no entanto, ríamos muito, a gargalhadas, imaginando o quanto ele teria pulado até que lhe tirassem as botas e o livrassem daquele sufoco. Ele foi aposentado e comprou uma carroça com cavalo, na qual, com o Adelino, vendia verduras e frutas nas ruas.
Naquela época, um meio de transporte muito usado era a carroça puxada a cavalo. Era comum que nos empórios, fosse vendida alfafa, em fardos, para alimentar cavalos. O padeiro entregava pão e leite de casa em casa, usando esse meio de transporte. O verdureiro também; como o carvoeiro que vendia carvão para os fogões, que ainda não usavam gaz. Peixeiros também usavam carroças para vender sardinhas e outros peixes menos comuns e mais caros. Veículos auto-motores, naquela época, eram raros. A maioria eram caminhões de aluguel, ônibus e taxis. Carro particular era artigo de luxo, que só os mais abastados tinham.
Certo dia, minha tia Albertina me entregou dez cruzeiros para comprar alguma coisa. Como fosse Domingo e estivesse recebendo visitas, não se lembrou de cobrar o troco, nem eu me lembrei de entregá-lo. No dia seguinte, ao perceber que o dinheiro estivesse no meu bolso, contrariei meu princípio de honestidade e fiquei com ele, gastando-o em doces e balas. Não me lembro no que deu, mas que foi uma sacanagem, foi. Ela, como todos ali, vivia com dificuldades e aquele troco fazia falta para outras despesas. Passei muito tempo com grande remorso por Ter feito aquilo.
Um tempo antes de entrar para a escola, brincando no quintal de casa, correndo, como sempre; cortei a perna, na altura do joelho, ao passar por uma lata de dezoito litros, daquelas em que vinha óleo comestível e que servia de vaso para uma planta. A Lata era velha e um pedaço dela se soltou virando pra fora. Fez o papel de faca e provocou um corte bem profundo. De outra vez, brincando na cozinha, onde, no fogão, uma frigideira grande de ferro, com óleo quente, esperava as sardinhas que minha mãe iria fritar. Bati no cabo da frigideira e o óleo banhou minha mão e braço direito. Levado ao hospital das clínicas, a mão e o ante-braço foram enfaixados. Lembro que eu apertava a mão enfaixada, na altura dos dedos e sentia as bolhas de água estourando. O corte na lata deixou uma cicatriz que é visível até hoje. A queimadura não deixou marca nenhuma. É interessante observar que a maioria dos ferimentos que sofri durante a vida, foram no lado direito do corpo e, não foram poucos.
Chegou a época do descobrimento da libido. Era masturbação a toda hora, sozinho ou em grupo. Conseguir ver as pernas ou calcinha de uma menina virou obsessão. Do lado de nossa casa, mudou uma família vinda do interior, como aliás, a maioria dos que moravam alí; ou eram estrangeiros ou procedentes do interior do Brasil. Nessa família tinha uma menina, mais velha que nós. Não tínhamos coragem de abordá-la, mas vivíamos atrás dela, tentando ver-lhe as calcinhas.
Os brinquedos se limitavam a pedaços de madeira, sobras dos madeiramentos dos telhados, das casas que aos poucos iam sendo construídas. Eles viravam caminhões que percorriam estradas traçadas na terra da rua. A imaginação se encarregava dos itinerários, das cargas e de todo o resto. A grande vantagem, era que o caminhão podia mudar de modelo, de cor, de tamanho; o que só dependia da imaginação, sem custo, sem trabalho. Pedaços de pau, latas ou garrafas enroladas em panos, eram as bonecas das meninas. Esses brinquedos provocavam a imaginação, quebrando os carros, consertando-os, provocando doenças nas bonecas e providenciando tratamentos. Não sei se aquilo era melhor do que brincar com os brinquedos cada vez mais sofisticados de hoje. O que é evidente, é o fato de que aqueles eram tratados com carinho e preservados por muito tempo; enquanto hoje, a criança se cansa rapidamente do brinquedo que ganhou.
Minha avó materna morava com a gente. Quase todos os domingos meus tios e tias vinham visitá-la e traziam balas para nós. De vez em quando, traziam chocolate. Minha mãe não nos deixava comê-los. Guardava-os e, durante a semana, ia misturando um pedacinho em leite e nos dava pra beber. As balas eram cortadas ao meio, pra durar mais tempo e só nos dava uma metade de cada vez. Acho que se lhe tivesse ocorrido que, chupando a bala sem tirar o papel, ela duraria mais; minha mãe nos obrigaria a isso.
Me lembro da eleição para presidente da república, quando o Juscelino foi eleito. Lembro de um cartaz com a foto dele na casa do Seu Antonio Macedo, pai do Carlinhos, um amigo nosso. Isso foi no ano de mil novecentos e cinqüenta e cinco ou cinqüenta e seis. A imagem desse cartaz na porta da casa, é mais nítida do que as anteriores.
Só alguns previlegiados tinham luz elétrica. Não sei porque. Qual o critério usado para esse fornecimento. Um deles era o dinheiro. Quase ninguém tinha condições de pagar pela instalação da luz. Um dos vizinhos que tivesse luz, emprestava aos outros, que esticavam fios, seguros por postes improvisados. Vira e mexe, a concessionária aparecia e acabava com a festa, deixando todo mundo no escuro, outra vez.
Meu pai era raspador de assoalhos. Na época da construção de Brasília, ele se associara a outro raspador e foram para lá trabalhar. Depois de alguns meses, ele voltou para visitar a família. Chegou num Sábado, no final da tarde. Trouxe um bloco de doce, uma espécie de rapadura com sabor diferente do tradicional e geleia de mocotó, sólida, aquele doce que tem consistência parecida com a sola de sandália de borracha. Foi uma festa! Claro que os doces foram consumidos ao longo de muitos dias, em doses farmacêuticas, controlados por minha mãe, com o mesmo critério que adotava para as balas e chocolates que nossos tios traziam. No Domingo pela manhã, fui com meu pai visitar o Seu Zé Pereira, o português. Estávamos na casa dele quando vieram avisar que minha avó estava morrendo. Chegamos em casa e deparamos com minha mãe gritando e chorando estericamente. Minha avó estava sentada numa cadeira na cozinha, morta. Ela arrumara as camas e chegara na cozinha, onde estava minha mãe, dizendo que estava sentindo algo estranho. Sentou-se e morreu. É como eu gostaria de morrer quando chegar minha hora. Sem sofrimento prolongado, sem dar trabalho, de repente, pá puf!
Veio a parentada toda. Muitos vieram no caminhão de um primo de minha mãe. Resolveram que, como o enterro aconteceria no cimitério da vila Mariana, perto de onde morava a maioria dos parentes, o corpo seria transportado para a casa da tia Célia, onde se realizaria o velório. O corpo foi num carro da funerária e nós fomos de caminhão. Durante a viagem, uma menina pouco mais velha que eu, que era meio parente, se pôs a meu lado e juntando o polegar e o indicador da mão esquerda, formando um círculo, introduziu o indicador da outra mão no círculo, movimentando-o para a frente e para trás, no inteior do círculo e me perguntou se eu sabia o que era aquilo. Disse-lhe que sim (era a simbologia usada para identificar o ato sexual). Eu sabia o que representava, sonhava com aquilo, mas nunca tivera a menor experiência. Nós estávamos ajoelhados na carroceria do caminhão, agarrados na tampa trazeira. Ela se posicionou na minha frente e, com era noite, fiquei me esfregando na sua bunda. Ela me pediu para passar a mão e introduziu minha mão sob sua saia, introduzindo-a na calcinha. Fiquei com a mão parada, apoiada nos pelos e ela se encarregou de movimenta-la. Não me lembro direito de como foi, só sei que foi uma sensação estranha, de Ter desejado tanto aquilo e não saber o que fazer quando a oportunidade apareceu.
Durante o velório, pela madrugada, vários homens numa sala ao lado de onde estava o caixão, conversavam e contavam piadas. Eram todos parentes e o mais animado era o Suso, o dono do caminhão e primo de minha mãe. Ele era um cara divertido e grande contador de “causos”. Dias mais tarde, ouvi uma conversa de minha mãe com alguém, que não me lembro quem era, onde ela demonstrava toda sua revolta, considerando que era uma tremenda falta de respeito que, num velório, as pessoas se divertissem, rindo abertamente. Foi a primeira vez que percebi o quanto, muitas pessoas, valorizam o sofrimento e procuram curti-lo profundamente, fazendo-o render muito além do que seria normal. Cultivam o sofrimento como uma coisa preciosa, criticando acidamente quem se empenhe em evitá-lo ou encurtar-lhe a duração. Achei estranho que minha mãe demonstrasse tanto sofrimento pela morte da mãe, uma vez que vivia reclamando e brigando com ela. Na minha cabeça de criança, aquilo demonstrava uma grande contradição. Na verdade não eram brigas, mesmo porque minha avó era uma senhora calma e dócil. O problema era que minha mãe, julgando saber o que era melhor pra todo mundo, insistia em que a velha se comportasse e fizesse o que, a ela, lhe parecia melhor, sem respeitar o que seria melhor para cada um.
Quando conclui o quarto ano primário, “tirei diploma do grupo”, ganhei um relógio, dado pelo patrão de minha tia Lilian, além de um livro, da diretora da escola, por Ter tido a melhor nota no exame final. Para o livro não dei muita bola, o relógio, no entanto, causou um deslumbre! Era coisa rara na época e minha mãe só me permitia usá-lo em ocasiões especiais. Me levaram para tirar uma fotografia, segurando o diploma, tomando cuidado para que o relógio aparecesse com destaque no pulso. O maior destaque da foto não foi o relógio, nem o canudo que continha o diploma; foi o cabelo espetado e um redemoinho que eu tinha na frente da cabeça, que dava a impressão de um porco espinho.
Os patrões de minha tia Lilian, pediam a ela que me levasse para brincar com os filhos deles, de quem ela cuidava como babá. Em alguns finais de semana e nas férias eu ia para a casa deles, que ficava no Jardim Paulista, um bairro nobre de São Paulo. O filho mais velho tinha quase a minha idade, um pouco mais novo. Além dele, havia outro menino e uma menina. Brincávamos muito e todos gostávamos. Só não gostávamos da chatice de minha tia, que nos policiava o tempo todo exigindo comportamento exemplar, segundo os conceitos dela, de uma regidez extremada. A maior vítima era eu, que ela pretendia transformar num modelo de qualidades.
Nas férias íamos para Campos do Jordão, Águas de Lindóia e Guarujá. Os patrões me tratavam como um verdadeiro filho, sem fazer distinção entre os filhos e eu. Eu ficava puto da vida quando eles nos levavam a uma loja de brinquedos para comprar algo para nós e minha tia insistia para que comprassem brinquedos mais simples pra mim, dizendo que eu me contentava com qualquer coisa.
Certa vez, no Guarujá, ela me comprou um calção branco, muito largo nas pernas o que dava a impressão de ser uma saia. Eu detestava aquele calção, mas ela me obrigava a usá-lo, o que me dava vontade de matá-la, mas como acreditava que era obrigação obedecer os mais velhos e, principalmente, as tias; vestia aquela encrenca, muito a contragosto, mas vestia. Ela, ao contrário, achava que era muito bonito e me obrigou a tirar uma foto com ele, num jardim da praia, onde trabalha um “lambe-lambe”. Na foto é que ficou constatado o quanto eu ficava ridículo usando aquele calção.
Foi uma época muito boa, ganhava presentes, viajava, comia do bom e do melhor, principalmente pratos sírios: quibe, esfiha, tabule, coalhada, charutos de folhas de uva, abobrinha recheada e outras coisas de que gosto muito até hoje. Mesmo com o controle rigoroso de minha tia, que determinava o quanto eu deveria comer, impedindo que me satisfizesse totalmente,; era muito mais, em qualidade e quantidade do que consumia em casa. Essa convivência me permitiu conhecer um pouco do que era a riqueza, o que ela proporcionava e como era aquela gente, diferente das que conhecera até então. Os patrões da minha tia eram muito bons, me tratavam como um filho, no entanto, a maioria das pessoas daquele círculo, eram arrogantes e mostravam desprezo por gente que não estivesse a sua altura, inclusive eu, uma criança, sentia a rejeição que me dedicavam. Minha tia era muito influenciada por essas pessoas, achava que tinham razão, que pobre não tinha direito a se misturar com eles, que deviam “ficar no seu lugar”. Considerava os ricos como seres superiores, a quem os pobres deviam obediência, assumindo sua incapacidade. Ela era naquela casa como um feitor de fazenda dedicado ao patrão, obedecendo sem questionar, transmitindo ordens com extremado rigor, castigando sem piedade quem se atrevesse a contestar. Não me lembro que o convívio com a riqueza, me causasse problemas ao retornar ao convívio com a pobreza. Acho que nem mesmo sonhava com a possibilidade de um dia ser rico.
Naquela época, depois do primário, vinha o curso ginasial e não havia vagas para todos os que pretendiam cursá-lo. Só uma minoria se propunha a cursa-lo, mesmo assim, as vagas eram insuficientes, obrigando os pretendentes a prestar um exame de seleção. A concorrência levava os pretendentes a fazer um curso preparatório para esse exame, chamado de curso de admissão ao ginásio. Minha mãe, em virtude da falta de dinheiro (esses cursos eram pagos), arrumou uma professora num bairro vizinho que dava aulas em sua casa. Eu ia com vários meninos da vizinhança. Deveríamos ser uns sete ou oito. No caminho para a casa da professora havia uma adega. Meus companheiros resolveram que todo dia, tomaríamos uma tubaina, refrigerante de maça que vinha numa garrafa que dava quatro copos, o que cabia meio copo para cada um. O combinado era que, cada dia, um dos componentes pagaria a tubaina. Foi uma luta convencer minha mãe a dar o dinheiro para que eu pudesse cumprir o combinado. O preço do refrigerante era pequeno, no entanto, a dificuldade de conseguir dinheiro era enorme. Depois de muito reivindicar e chorar, consegui que ela me desse o suficiente para não passar vergonha perante os colegas.
Eu não gostava de estudar, embora tivesse boas notas. Estudava por obrigação, porque meus pais faziam questão que estudássemos, para que tivéssemos um futuro melhor. Passei no exame de seleção e comecei a freqüentar o ginásio. No primeiro ano fui razoavelmente bem. Comecei a trabalhar num depósito de materiais de construção, como ajudante na loja. Antes disso, já vendia xuxu na feira do bairro que acontecia as sextas-feiras. O xuxu era de um pé que havia no quintal da minha tia Albertina. Tentava engraxar sapatos, também, mas os melhores pontos, onde havia fregueses, já estavam tomados por moleques maiores, que impediam que outros lhes fizessem concorrência. Já existia a máfia da reserva de mercado.
No depósito de materiais de construção eu ajudava na loja, como balconista; ensacava cal virgem, que vinha a granél, ensacava cimento derramado de sacos que se rasgavam, arrumava madeira nas pilhas e, de vez em quando, lavava o carro do patrão, um Vanguard, que parecia um bisorro. O páteo do depósito tinha um declive dos fundos para a rua, onde ficava o portão e, ao lado, uma pilha de manilhas de barro, usadas para canalização de esgoto. Certo dia, lavava o carro, que estava estacionado na parte mais alta do terreno. Mexendo nos pedais, descobri que ao pisar na embreagem o carro andava e, quando esta era solta, ele parava. Gostei da brincadeira e passei a pressionar a embreagem, deixando o carro descer alguns centímetros e soltando a embreagem para que parasse. Numa dessas, devo Ter desengatado a marcha, sem querer, ou ela escapou sozinha; a questão é que o carro andou e, quando soltei a embreagem, ele continuou andando. Eu tentava segurá-lo mas não conseguia. Na direção em que se dirigia, havia uma carroça com burro, onde o carroceiro carregava manilhas. O carro aumentava a velocidade e se aproximava do burro. Não me lembro como, só sei que consegui freiar o carro, que parou quase junto ao focinho do animal. Também não me lembro das conseqüências, da bronca que devo Ter levado. Acho que o carroceiro ficou tão assustado quanto eu ao perceber que seu burro pudesse ser atropelado.
Instalaram um telefone público na loja do depósito. Foi uma festa, pois o mais próximo, até ali, ficava a uns três quilômetros de distância. No entanto, conseguir fazer uma ligação, era uma aventura. A espera poderia chegar a horas para se conseguir linha para a ligação. Lembro-me que um dia, um homem do bairro sofreu um derrame. Sua esposa passou o dia no depósito tentando ligar para avisar um parente do ocorrido, só conseguindo no final do dia. Me lembro Ter imaginado que a notícia chegaria mais rápido se, ao invés do telefone, ela tivesse ido até a casa do parente. Com as facilidades oferecidas pelos meios de comunicação, hoje, é difícil imaginar que uma simples ligação telefônica, antigamente, fosse algo tão difícil de se conseguir.
No segundo ano do ginásio eu já começava a detestar os estudos. Era um grande sacrifício Ter que assistir as aulas e estudar. No entanto, meus pais não queriam nem ouvir falar em abandono dos estudos. Comecei a “cabular” as aulas. Como a presença fosse registrada numa caderneta de freqüência, eu entrava na escola, entregava a caderneta, entrava na sala, pulava a janela e saia para a rua. No final das aulas, as cadernetas eram entregues a um aluno da sala que as distribuia aos colegas. Eu pulava o muro e esperava pelos colegas que assistiam as aulas, que pegavam minha caderneta e me entregavam. Com isso meus pais nunca souberam que eu deixava de assistir muitas das aulas.
Para passar o tempo, enquanto não chegava a hora de ir embora, ficava no bar do seu João, que tinha televisão. Naquele tempo, televisão só tinha nos bares ou na casa de alguém, que por isso, já era considerado rico. Na minha classe tinha um japonês, um tal de Kasuo, cujo pai era feirante. Ele também era dado a cabular as aulas. Estava sempre com dinheiro no bolso, o que era raro na maioria dos moleques. No bar havia um jogo, uma espécie de tabuleta com furos, cobertos por um papel dourado. Tinha um pino de madeira, pontudo que, ao ser introduzido num dos furos, liberava uma bolinha colorida que caia numa caixinha na base da tabuleta. De acordo com a cor da bolinha, o jogador recebia o prêmio correspondente. A maioria das bolas era de uma cor que dava direito a um cubinho de doce de amendoim, chamado dadinho. Outras cores de bolinhas davam direito a outros prêmios que não me lembro quais eram. O japonês era viciado naquele jogo e não gostava dos dadinhos. Eu, que era seu companheiro, ficava com os doces e com o prazer que eles me propiciavam.
Quando ganhava alguma gorjeta no depósito, guardava para pagar a entrada do cinema, nas terças feiras à noite, na chamada “sessão dos duros”, onde o preço tinha um bom desconto. Só podia usar as gorjetas pra isso, uma vez que o salário entregava todo para minha mãe.
Eu tinha uma espécie de obsessão de parecer um bom menino aos olhos dos mais velhos. No entanto, tinha algo que me provocava a fazer coisas esquisitas, aprontar alguma coisa. Certa feita, levei um despertador para a sala de aula, coloquei-o sob uma carteira desocupada, longe da minha e programei-o para despertar no meio da aula de latim. Quando soou o alarme do despertador, foi um rebuliço na classe. O professor queria saber quem fizera aquilo e eu fiquei quietinho. Ele pegou o despertador e colocou sobre sua mesa, para, ao final da aula, entregá-lo na diretoria. Fiquei apavorado! Como explicaria o sumiço do despertador de casa? Já estava ficando desesperado quando tive uma idéia. Pedi a uma colega que, quando batesse o sinal da saida, ela chamasse o professor para tirar uma dúvida. Ela fez isso e, quando o professor foi atendê-la, passei pela mesa e sai com o despertador, sem que ninguém visse. No dia seguinte, a diretora foi na classe querendo saber quem roubara o despertador, pressionou de tudo que foi jeito mas ficou sem resposta.
No final do terceiro ano fui reprovado. Consegui convencer meu pai que seria melhor eu ir trabalhar e abandonar os estudos. Não foi fácil mas consegui meu intento. Eu tinha treze anos e, com autorização dos pais, tirei a carteira profissional e fui trabalhar no escritório da empresas do patrão da tia Lilian. Era office-boy. Antes disso, freqüentei um curso intensivo de dactilografia, numa escola do centro da cidade. Levava um lanche de pão com ovo que era meu almoço. Depois de dez dias, conclui o curso, fazendo umas mutretas para passar nas provas, e comecei a trabalhar, como recepcionista da diretoria. Recebia os visitantes, servia café, limpava as mesas e coisas assim.
Era 1962, ano da copa do mundo no Chile. Os jogos ainda não eram transmitidos pela televisão, uma emissora de rádio instalou alto falantes nos postes do centro da cidade e era uma festa ouvir a transmissão na rua, cheia de gente, como se estivéssemos em um estádio. A cada gol e, principalmente, nas vitórias, as explosões de alegria provocavam gritos, pulos e dança. Era um verdadeiro carnaval.
Desde muito cedo eu era apaixonado por caminhões, provavelmente por causa de meu primo Pepe, que depois de Ter trabalhado como motorista de taxi, passou a trabalhar como motorista de caminhão, viajando pelas estradas do Brasil. Quando eu andava de ônibus, ficava na frente, o mais próximo possível do motorista e observava tudo o que fazia. Quando sozinho, me imaginava dirigindo um caminhão, mudando marchas em subidas longas, acelerando, freiando, fazendo curvas, manobrando para estacionar e coisas assim.
Trabalhei menos de um ano no escritório. Durante esse tempo, fiz um curso de mecânica de motores diesel, por correspondência.
O tio de um amigo de meu pai, era sócio de um desmanche de carros na rua Piratininga, no Braz, que naquela época era quase totalmente ocupada por esse tipo de negócio. Ele conseguiu que o tio me empregasse e passei a trabalhar ali. Ganhava menos que no escritório, mas não importava, estava fazendo o que gostava. Nas horas de folga, sentava-me ao volante dos carros que ainda estavam inteiros e me imaginava viajando, como se aqueles carros velhos fossem um potente caminhão.
A loja onde eram vendidas as peças usadas, era na rua Piratininga, mas os carros eram desmontados num terreno de uma travessa, na rua Coronel Mursa. Os proprietários permitiam que um japonês, chamado Orlando, mecânico e funileiro, trabalhasse naquele terreno, como autônomo. Eu não perdia oportunidade de aprender. Não que quisesse ser mecânico, meu interesse em mecânica objetivava poder consertar os caminhões que eu dirigisse pelas estradas, quando apresentassem problemas. Ali eu fazia tudo: varria a loja, tratava dos passarinhos, atendia fregueses, desmontava câmbios, motores e diferenciais, ajudava o dono a recondicionar motores, ajudava o japonês na oficina e ajudava a desmanchar os carros.
Certa vez chegou um ônibus velho para ser desmanchado. O encarregado dos desmanches era um tal de Dudu, de uns quarenta anos e que sofria ataques de loucura. Por causa disso, vira e mexe era internado e recebia tratamento a base de choques elétricos. Ele pitava um cachimbo velho que chamava de pito. Quando ele foi desmontar a estrutura da carroceria do ônibus, que era toda arrebitada, me chamou para ajudá-lo. Para cortar os arrebites, usávamos um corta-frio (espécie de talhadeira grande, com cabo de madeira, por onde ele era seguro). O corta-frio era posicionado de lado no arrebite, por um, enquanto o outro golpeava com uma marreta. O Dudu segurava o corta-frio, enquanto eu golpeava com a marreta. Ele não se concentrava no trabalho, deixando o corta-frio bambear, o que me desequilibrava quando dos golpes. Eu lhe pedia que segurasse firme, mas ele nem ligava. Quando chegou a hora de trocarmos de tarefa, esperei que ele se empolgasse nas marretadas e, quando estava batendo com toda a força, num dos golpes, retirei o corta-frio e a marreta, não encontrando obstáculo, passou como uma bala de canhão, levando junto o Dudu, que caiu no chão, sobre as latas do revestimento do ônibus, ali espalhadas. Foi uma queda forte e de mal jeito. Ele caiu de um lado e eu pulei do outro, sabendo que tentaria me pegar pra se vingar. Ele estava todo arranhado, mas, ao invés de se preocupar com as dores ou em me perseguir; limitava-se a gritar como um louco – “Cadê meu pito?”. Passei quase uma semana de prontidão, evitando encontrar-me com ele.
Chegou o ano de 1964 e o golpe militar que estabeleceu a ditadura. Pra mim não passou de uma movimentação de viaturas militares e os comentários de que havia um golpe. Não tinha a menor noção do que aquilo representava. A repressão e a falta de liberdade já faziam parte do cotidiano. As regras morais eram muito rígidas e a autoridade inquestionável. Portanto, para a maioria da população, não fazia grande diferença se o governo era ditatorial ou democrático. A maioria dos que se interessavam por política, era manipulada pela propaganda do poder e se tornavam adéptos do que a propaganda defendesse. Outros eram do contra, pura e simplesmente. Como o dito popular atribuido aos espanhois: “se ay govierno, soi contra!” (se existe governo, sou contra). A verdadeira discussão política acontecia entre intelectuais, artistas, militantes estudantis e sindicais, quer dizer: a minoria. As ideologias são produzidas pelas minorias, que tentam “contaminar” as massas que, por falta de interesse, de conhecimento e escrava de preconceitos, opta em função deles ou objetivando interesses particulares.
“Teu futuro está no teu passado. Relembre-o e, quando chegar no ponto certo, terá certeza de Ter encontrado o caminho.”
Até este ponto das lembranças, não senti nada que pudesse indicar algo que pudesse fazer parte da construção do futuro. Espero que o ponto do passado, a que o sonho se refere, esteja na parte acessível da memória. O que relatei até aqui, é o máximo que pude lembrar. É notória a quantidade de “pontos negros”, grandes espaços de tempo sem nenhuma informação para a lembrança. Mesmo esses fatos lembrados, são imprecisos no tempo, não tenho certeza sobre o que vem antes ou depois.

O trabalho naquele desmanche de carros, foi a primeira oportunidade de contato com carros e caminhões. Foi nessa época que dirigi pela primeira vez. Um vizinho de nossa casa, era feirante e tinha dois caminhões velhos para transportar as barracas. Um caminhão era suficiente para transportar as barracas, o outro ficava de reserva. Como os dois eram muito velhos e viviam quebrando, se alternavam na reserva e no trabalho.
Disseram a ele que eu trabalhava em uma oficina e, um dia, ele me procurou para saber se eu poderia regular o freio de um dos caminhões. Disse-lhe que só poderia fazer isso no final de semana. Ele concordou e combinamos que deixaria o caminhão no Sábado para que eu fizesse o serviço. No dia seguinte, pedi ao japonês que trabalhava no terreno onde os carros eram desmanchados, que me ensinasse a regular os freios do caminhão chevrolet 1939, modelo do caminhão do vizinho. Uma fábrica de macarrão, vizinha da oficina, cujos caminhões eram consertados pelo japonês; tinha um daquele modelo. Fomos até lá e o japonês me mostrou o que eu deveria fazer para regular os freios.
No Sábado à tarde, depois do trabalho, fui correndo para casa, ansioso para regular o freio do caminhão. Na verdade, a ansiedade não era para regular o freio e, sim, para fazer o que havia planejado: dirigir o caminhão. Depois de fazer o serviço, que era bastante simples, subi para a cabine e, com o coração aos pulos, dei partida ao motor. Isso eu já havia feito várias vezes no trabalho, no entanto, nunca havia movimentado um carro. Tudo o que eu sabia era resultado das observações dos motoristas de ônibus e de quando saia com o japonês para experimentar um carro ou caminhão que ele havia consertado. Vivia praticando os movimentos dos pedais e alavancas, em carros parados, mas nunca havia dirigido nenhum.
O acelerador não tinha pedal, era só uma haste de ferro que entrava por um buraco irregular no assoalho. Pisei na embreagem com a perna tremendo exageradamente, engatei a marcha, fui acelerando devagar, soltando a embreagem até que o caminhão se pôs em movimento. Eu estava dirigindo! Foi uma alegria imensa. Virei a direita em uma rua, a esquerda em outra e já me sentia um motorista experiente. Acabou a tremedeira e dirigi o caminhão até uma rua onde sabia se reuniam alguns de meus amigos. Não chamara ninguém para me acompanhar na aventura, com medo de não conseguir e Ter que desmentir o que vinha afirmando há algum tempo: que dirigia carros na oficina.
O ponto de reunião, aos sábados à tarde, era em frente a casa de uma das meninas do grupo. Quando cheguei lá, havia uma porção de moleques e meninas conversando junto ao muro da casa. Parei o caminhão e vários moleques subiram nele, instigando-me a dar uma volta. Fui até o final da rua, que era uma subida, manobrei e voltei. Na volta, a haste do acelerador enroscou numa das irregularidades do buraco por onde ela passava. Eu olhei para o assoalho tentando desenrosca-la, porém, quando voltei a olhar para a frente, percebi que o caminhão se dirigia para o muro onde o resto do pessoal havia ficado, nos observando. Eles saíram correndo enquanto eu girava o volante conseguindo desviar, acertar o caminhão na rua e parar. Aleguei que havia sido uma brincadeira, mas tive que ficar ali durante um bom tempo até que as pernas parassem de tremer. Levei o caminhão até a casa do feirante, estacionei e entreguei as chaves para a mãe dele. Fui pra casa sorrindo de orelha a orelha, feliz por Ter dirigido, por Ter demonstrado aos amigos que não mentira ao dizer que sabia dirigir e pela admiração que notara no olhar das meninas ao me ver dirigir um caminhão.
A ansiedade para satisfazer uma vontade é de uma força tremenda! Quando isso se associa à falta de noção de perigo, dos riscos envolvidos; estamos frente à condição ideal para a ocorrência de tragédias. Elas só não acontecem em maior número porque a sorte as impede. Sorte e azar independem de nossa consciência, de nossa vontade. Acontecem aleatoriamente e o que as ocasiona é um tremendo mistério.

A rua Piratininga, onde ficava a loja do desmanche, vivia com o trânsito congestionado, com muitos caminhões, pois era a rota de quem se dirigia a Santos, principalmente, ao porto. Numa tarde, ouvimos uma gritaria e saímos par ver o que estava acontecendo. Havia um caminhão que carregava barras de ferro. Como elas fossem mais compridas que a carroceria. Passavam pelo lado da cabine e as pontas se apoiavam num suporte preso ao parachoque dianteiro do caminhão. A cabine não tinha portas, pois com as barras passando por suas lateria, não seria possível abri-las. Naquele tempo, todos os caminhões que transportavam esse tipo de material eram assim: sem portas. Para entrar ou sair da cabine, era necessário passar por baixo dos ferros. Atraz do caminhão havia um carro pequeno cujo motorista gritava para os ocupantes do caminhão, reclamando de algo que eles tivessem feito. O motorista do caminhão e os dois ajudantes, também gritavam para o motorista do carro de traz. Logo depois, com os ânimos exaltados, o motorista e os dois ajudantes do caminhão, desceram e se dirigiram para o carrinho, dispostos a agredir o motorista. Tanto o motorista como os ajudantes eram homens altos e fortes, acostumados ao trabalho pesado. O motorista do carro, pelo que se podia ver, era um homem franzino. Os homens do caminhão se dirigiam em direção ao outro como tigres dispostos a atacar um coelho. Quando se aproximavam do carrinho, o homem franzino sacou um revolver e apontou-o para os que pretendiam agredi-lo. Estes, ao ver-se sob a mira da arma, transformaram-se em coelhos, deram meia volta e correram desesperadamente para o caminhão, passando por baixo dos ferros e entrando na cabine com uma agilidade incrível. A essa altura, toda a vizinhança estava na rua para ver o que acontecia e, ao presenciar o desfecho, soou uma verdadeira gargalhada, de todos, que durou vários minutos. Aquilo foi assunto para o resto do dia e para os seguintes. O comentário mais comum se referia a quanto a força humana é impotente diante de uma arma. De como a valentia daqueles homens se transformara em medo. O filho do dono de uma loja de ferragens, que estudava psicologia, alegou que aquela mudança instantânea se devera ao instinto de conservação da vida. Que ao perceber o risco de vida que corriam, os valentões se transformaram em coelhos assustados e correram sem considerar a vergonha a que ficariam expostos.

Um dia, um irmão de um dos donos do desmanche, me pediu para ir ao banco descontar um cheque de cinqüenta mil cruzeiros. O caixa do banco contou o dinheiro na minha frente, enfiou-o em um envelope de papel pardo e me entregou. O banco ficava na mesma rua e a uns quinhentos metros da loja do desmanche.
Sai e fui andando pela calçada. Notei dois homens que conversavam parados junto a um poste. Um deles tinha todo o jeito do caipira, daqueles bem matutos que nasceram e viveram só na roça. O outro, era um homem comum da cidade, bem trajado. Quando me aproximei, este último me abordou perguntando se eu conhecia alguma casa lotérica. Disse-lhe que havia uma na próxima travessa, a menos de cem metros dali. Ele olhou para os dois lados, aproximou sua cabeça da minha e, em tão de confidência, me disse que o caipira dissera Ter um bilhete de loteria premiado com o primeiro lugar. Que era muito perigoso uma pessoa ingênua como aquela andar pela cidade com algo tão valioso em seu poder. Disse que quando o caipira o abordara para perguntar-lhe o que deveria fazer, declarando não conhecer a cidade, nem ninguém ali; que ele pensara em levá-lo até uma casa lotérica para conferir se o bilhete fôra, realmente, premiado. No entanto, pensou melhor e considerou que a conferência em público poderia chamar a atenção de algum malandro, daqueles que costumam ficar nesses lugares a espera de algum contemplado para tentar enganá-lo ou roubá-lo. Que o melhor seria conseguir a lista dos premiados e fazer a conferência reservadamente. Me perguntou se eu não poderia ficar com o caipira, ali, enquanto ele se dirigiria à casa lotérica, pediria a lista emprestada e voltaria para fazer a conferência a salvo de malandros.
Olhei para o caipira, que aparentava já Ter passado dos cinqüenta anos e aparentando a mais pura ingenuidade, demonstrando na expressão uma espécie de súplica. Senti-me feliz por saber que pessoa tão simples tivesse sido bafejada pela sorte e que poderia desfrutar de uma vida bem melhor dali para a frente. Prontifiquei-me a ficar com ele e o outro se dirigiu para a casa lotérica.
Enquanto esperávamos, perguntei ao caipira de onde ele era e ele disse que morava num sítio, numa cidadezinha, na região de São José do Rio Preto. Que havia comprado esse bilhete há duas semanas atrás e que, ontem, pedira a um vizinho que ia para a cidade, levar o bilhete e conferi-lo. Na volta, o vizinho, homem muito sério e desconfiado, lhe dissera que o bilhete ganhara o primeiro prêmio, mas que era preciso muito cuidado porque, na cidade, o que não faltam são pessoas desonestas e prontas a tentar dar o golpe em quem tenha dinheiro e não saiba se defender. Depois de confabularem por muito tempo, acharam melhor que ele viesse direto para São Paulo, onde ninguém o conhecia e onde poderia receber o prêmio, guardá-lo no banco, sem que ninguém da sua região ficasse sabendo. Como não tivesse dinheiro suficiente para a viagem, o vizinho lhe emprestara mais um pouco, saíra de madrugada, pegara o primeiro ônibus e chegara a São Paulo há pouco. O vizinho, que já viajara para São Paulo várias vezes, o alertara que na região da estação rodoviária havia muitos malandros prontos a enganar o pessoal que chegava do interior; por isso, procurara se afastar de lá e, caminhando, chegara ali onde estávamos e, percebendo que havia bastante gente e todos com cara de trabalhadores, resolveu abordar aquele homem, que lhe pareceu distinto e honesto.
Em menos de cinco minutos o homem voltou trazendo uma lista de loteria dobrada nas mãos. Pediu que nos aproximássemos da parede de uma loja, abriu a lista e pediu ao caipira que lhe mostrasse o bilhete. Conferiu a data do bilhete com a da lista, colocou o bilhete logo abaixo do número do primeiro prêmio e, lá estava: os números coincidiam, o bilhete realmente ganhara o primeiro prêmio!
Meu coração batia tão acelerado ao constatar que o bilhete, realmente, era premiado; que parecia que eu é que tinha tirado a sorte grande. Fiquei felicíssimo por saber que uma pessoa tão simples como aquela poderia mudar de vida, despedir-se dos sacrifícios e passar a desfrutar de comodidade e conforto.
O homem dobrou rapidamente a lista e disse que era muito perigoso que o caipira ficasse andando com aquele bilhete no bolso. Que se pudesse, o acompanharia até a Caixa Econômica Federal, mas que tinha um compromisso e não poderia fazer isso agora. Perguntou se eu não poderia acompanhar o caipira. Disse-lhe que não, porque estava trabalhando. Ele perguntou se eu trabalhava ali perto. Disse-lhe que a loja ficava a menos de duzentos metros. Ele sugeriu que eu levasse o bilhete, pedisse para meu patrão guardá-lo até que, mais tarde, ele pudesse voltar e acompanhar o caipira até a Caixa. Não vi problema em fazer isso e concordei que seria mais seguro. Ele sugeriu que o mais seguro seria colocar o bilhete dentro do envelope que eu carregava, para não chamar a atenção. Abri o envelope, ele colocou o bilhete dentro e voltei a fechá-lo. Pediu-me o número da loja e disse que deixaria o caipira em um restaurante, para que almoçasse, enquanto ele iria para seu compromisso, que pegaria o caipira na volta, iriam até a loja, pegariam o bilhete e se dirigiriam para a Caixa. Dispedimo-nos e eu segui saltitante em direção à loja.
Ao chegar, o dono da loja e seu irmão estavam na porta. Contei-lhes, todo contente, o que havia acontecido. Eles se entreolharam com expressões desconfiadas e o irmão pegou o envelope, abriu-o e sacou o conteúdo: um maço de papéis recortados de jornal.
Fiquei pasmado! Como quem assiste ao desfecho de um número de mágica sensacional. Não era possível, o envelope não saíra de minhas mãos, o homem não enfiara a mão dentro dele, só colocara o bilhete; como poderia Ter tirado o dinheiro e colocado aquele maço de papéis?
- É o conto do vigário. – disse o dono da loja.
Não esperei mais nada. Sai correndo em direção aonde os havia deixado. A cabeça latejava, a felicidade se transformara em ódio e eu corria desesperadamente. Claro que eles não estavam mais ali. Continuei correndo, olhando para todos e para tudo, percorrendo várias ruas, mas, nada. Eles haviam desaparecido!
Cansado, humilhado, sentindo-me a pior das pessoas, a mais idiota; voltei para a loja. Disse ao dono do dinheiro que eu lhe pagaria, que ele não teria prejuízo. Que ele poderia receber o meu salário, que era de quinze mil reais por mês, até que a dívida fosse quitada.
Eles disseram que os vigaristas se aproveitam da ganância de suas vítimas, na intenção de ganhar dinheiro fácil, para aplicar os golpes. Que na ânsia de levar grandes vantagens, as vítimas se expõe e facilitam a aplicação do golpe.
Não era verdade! Em nenhum momento me passara pela cabeça a possibilidade de tirar alguma vantagem daquela situação. Nem mesmo, me ocorrera que poderia ganhar uma gorgeta por Ter ajudado. Ficara emocionado, feliz, por verificar que a sorte bafejara uma pessoa simples, humilde, necessitada. Não negociei absolutamente nada! Nem sequer imaginei qualquer tipo de vantagem. Além de Ter sido enganado, iludido em minha boa fé; tinha que arcar com a desconfiança de que agira interessadamente, tentando abusar de um coitado.
Em casa, contei a meus pais o que havia acontecido e tive que ouvir uma “ladainha” de admoestações e conselhos que parecia não Ter fim. Acho que nunca me senti tão pequeno, frágil, humilhado.

Devo Ter trabalhado mais de dois anos naquele desmanche. Aprendi muito sobre mecânica de automóveis, mas o meu sonho eram os caminhões, grandes, de transporte rodoviário.
Um amigo me comunicou que uma oficina ao lado da que ele trabalhava, que só mexia com caminhões Alfa Romeu, os famosos FNM, estava precisando de ajudante de mecânico. Fiquei empolgado, era a oportunidade de chegar mais perto do meu sonho.
Pedi demissão no desmanche e fui trabalhar naquela oficina. Alguns meses depois, a oficina em que aquele amigo trabalhava, abriu uma vaga e me mudei pra lá. Eram tradicionais nas oficinas as brincadeiras, na maioria de mau gosto.
Eu sempre fui muito relaxado no trato com minha aparência. Se era descuidado com a roupa de sair, imagine como era com a roupa de trabalho. Chegava a passar duas semanas com o mesmo macacão, que chegava a ficar duro de óleo e graxa. Como disse, as brincadeiras eram comuns na oficina. Certa época, a principal, era colocar fogo na estopa que todos carregavam no bolso de trás do macacão para limpar as mãos. Para tirar a graxa das mãos, elas eram lavadas em óleo diesel e enxugadas na estopa. Portanto, quando ateavam fogo na estopa que estava no bolso, ela se incendiava instantaneamente. Quando conseguiram colocar fogo na minha estopa, como o macacão estivesse saturado de graxa e óleo, incendiou-se inteiro, na hora. Só não tive queimaduras sérias porque o instinto me provocou a tirar o macacão, cujas chamas não pude apagar e que queimou até o último fio.
Naquele tempo, não havia legislação que limitasse a quantidade de carga que um caminhão pudesse transportar, portanto, esse limite era ditado pela resistência do caminhão. Como isso causava sérios problemas ao pavimento das rodovias, o estado resolveu estabelecer limites de carga por eixo do caminhão. Para os caminhões de carroceria, os chamados de carga seca, bastava colocar menos carga. No entanto, para os caminhões tanque, isso não era possível, pois, volumes menores propiciavam balanço maior do líquido dentro dos tanques, causando instabilidade ao caminhão. Por isso, os tanques tinham que ser diminuídos.
A oficina em que eu trabalhava era de uma empresa de transportes de líquidos, principalmente combustíveis; por isso, todos os caminhões tiveram que Ter os tanques diminuídos. Para tanto, o tanque era cortado com maçarico, tinha uma parte do seu comprimento retirado e soldado novamente.
Como era muito trabalho para o soldador e como os mecânicos e ajudantes da oficina já tinham dificuldade de dar conta do serviço; a empresa deslocou um rapazinho que trabalhava na lavagem dos caminhões para ajudar o soldador. Esse rapaz, o Manézinho, era nordestino, recém chegado de lá, baixo e atarracado de corpo. Quem chegasse como novato na oficina, era a vítima preferida das brincadeiras. Um dia, o soldador mandou o Manézinho pegar a máscara de solda que ficara dentro do último tanque soldado. Quando ele entrou no tanque para pegar a máscara, um mecânico fechou a entrada, pegou uma marreta e passou a dar marretadas no tanque. As pancadas no metal do tanque provocam um som muito alto para quem está próximo, imagine o que isso representa para quem está dentro dele. É como estar dentro de um sino. O Tonho, aquele amigo que me indicara o trabalho, se tornara protetor do Manézinho desde sua chegada. Ao ouvir o barulho foi em seu socorro, fez o mecânico parar de bater, abriu a entrada do tanque e retirou o Manézinho, que passou mais de dez minutos sem poder se equilibrar sobre as pernas.
Esse tipo de brincadeira demonstra a irresponsabilidade das pessoas que, para se divertir, não hesitam em colocar em risco a integridade física ou moral de terceiros.
Era um trabalho pesado e sujo, mas eu não me importava. Passava o dia em meio a carretas e reboques, engatados nos caminhões dos meus sonhos.
Na hora do almoço, me sentava ao volante de um deles e viajava por lugares e estradas imaginadas. Imaginava que, na volta de uma viagem, passava com o caminhão no ponto de ônibus onde todas as tardes eu embarcava em um para voltar para casa e dava carona a amigos e conhecidos que esperavam pelo ônibus. Sentia a admiração deles por eu estar dirigindo um caminhão daquele tamanho e contava histórias acontecidas durante as viagens. Nessa época eu já tinha dezoito anos e continuava fantasiando o que se iniciara na infância. Esse, provavelmente, foi o sonho mais acalentado e perseguido de toda minha vida.
Quando completei dezoito anos, depois de esperar pelo que me pareceram séculos, alcançara a idade legal para poder tirar a carta de motorista. Porém, faltava outro componente, o dinheiro para pagar as despesas inerentes.
Um motorista da empresa me disse que uma oficina, no bairro do Tatuapé, estava precisando de mecânico e que pagava mais do que eu ganhava ali. Impulsionado pela necessidade de dinheiro para tirar a carta, mudei de emprego.
Essa oficina era o que, na época, se chamava de “boca de porco”. Muita sujeira, poucas ferramentas e mínimas condições de trabalho. Quando venceu o primeiro pagamento, os donos me disseram que tivesse paciência pois alguns fregueses tinham dado calote e ainda não tinham o dinheiro suficiente para me pagar.
Alguns dias depois, chegou um homem na oficina, dizendo que seu caminhão tinha fundido o motor na estrada. Que o rebocara até um posto de gasolina e que precisava que o motor fosse retirado para ser levado a uma retífica e, depois de retificado, colocá-lo de volta no lugar. Fui encarregado de executar o serviço. Como não poderia levar ninguém da oficina para me ajudar, convidei dois amigos que estavam desempregados e fomos para onde estava o caminhão.
Chegamos lá no meio da tarde e começamos a desmontagem para a retirada do motor. O local não era, ainda, um posto de gasolina. Era um terreno preparado para isso com uma cobertura onde ficariam as bombas. Além disso, só existia, nos fundos do terreno, um pequeno armazém onde funcionava uma vendinha.
Depois de adiantar bem o serviço, fomos até a vendinha beber alguma coisa. Lá, verificamos que não havia quase nada, além de prateleiras cheias de garrafas sem rótulos, com líquido transparente, recheadas com algo que, de início, não identificamos. Olhando mais de perto, verifiquei que eram cobras. O vendeiro era um japonês e lhe perguntei o que era aquilo. Ele disse que eram cobras imersas em pinga. Que era uma espécie de remédio caseiro e que cada tipo de cobra servia para um tipo de doença.
Perguntei-lhe se as cobras precisariam ser comidas e ele disse que não. Que bastava tomar a pinga em que ela estivesse imersa. Ele começou a indicar as garrafas dizendo que doenças curavam. Havia para o aparelho digestivo, para o circulatório, para o respiratório, para dor de cabeça, para pressão alta, em fim, era uma verdadeira farmacopéia serpentária. A maioria estava em garrafas comuns, mas havia algumas maiores, que não entrariam pelo gargalo das garrafas e que estavam em potes de vidros, cuja boca era bem maior.
Além das pingas com cobras, havia alguns doces e queijo fresco embrulhado em folhas de bananeira. Era um lugar exótico, assim como o próprio dono. Ficamos cismados de beber aquilo, mas diante da garantia do japonês de que não havia perigo, decidimos experimentar algumas.
Voltamos ao trabalho e ao final da tarde, fomos visitar o japonês novamente. Lá estavam três homens, moradores de sítios nas vizinhanças, bebendo e conversando. Eles endossaram o que o japonês nos dissera e passaram a contar casos de curas que teriam testemunhado ou tomado conhecimento, enquanto bebericávamos um pouco de cada uma e beliscávamos pedaços de queijo fresco.
Os casos e a maneira como eram contados eram interessantes. Ficamos alí bebericando até que o japonês anunciou que era hora de ir para casa. Bastante atordoados, fomos para o caminhão para dormir. Só ai percebemos o quanto havia esfriado.
Eu havia levado uma jaqueta de nylon que, acredito, foi das poucas roupas a que me apeguei, gostei e tive ciúmes. Mesmo sentindo muito frio, me recusei a vestí-la porque eu estava sujo de graxa e não tinha como me lavar adequadamente. Enrolei-me em um pedaço de lona velha e recomendei aos outros que fizessem o mesmo, com outros pedaços que estavam disponíveis. Acomodamo-nos como pudemos na cabina do caminhão e dormimos.
Acordei ao amanhecer, com o corpo dolorido pela posição desajeitada em que dormira e, ao olhar para os companheiros, que ainda dormiam; verifiquei que um deles havia vestido minha jaqueta de estimação. Acordei-o a pancadas e se o outro não tivesse acordado e interferido, acho que o teria matado.
Fomos até a vendinha sentindo os efeitos da ressaca causada pela bebida da noite anterior, desconfiados de que as cobras pudessem Ter-nos feito mal. O japonês nos garantiu que aquilo era efeito da pinga e não das cobras. Que aquelas pingas tinham poder terapêutico, em doses razoáveis, mas que, bebida exageradamente, como fizéramos, provocavam os mesmos efeitos da pinga comum. Como ele não tinha café, tomamos um pouco de chá que ele nos ofereceu, comemos queijo e, seguindo a orientação dele, nos dirigimos até um riozinho nas proximidades para tomar banho. Como não tínhamos sabonete, ele nos emprestou um pedaço de sabão, daqueles feitos em casa, com cinzas e gordura de porco.
Era um riozinho com pouco mais de um metro de largura eoutro tanto de profundidade. Um pouco mais abaixo, ele se abria formando um poço de uns cinco metros de diâmetro. Fomos até lá, entrei no poço e verifiquei que a profundidade ali era bem maior, passando de dois metros. Um dos meus amigos não sabia nadar, por isso ficou na parte mais rasa, se banhando, enquanto o outro e eu nadávamos no poço. Depois de vários mergulhos e algumas braçadas, saímos, enquanto o outro continuava se banhando no raso, na lateral do poço. Sentamos no barranco e ficamos observando-o . Ele se ensaboava, esfregava e se agachava na água. Embora já tivesse feito isso várias vezes, continuava com o rosto cheio de óleo e graxa, parecendo aqueles militares que passam barro no rosto para se camuflarem. De repente, Ele escorregou e caiu na parte funda do poço. Afundou e logo voltou à superfície. Os olhos arregalados, a expressão de terror e aquelas manchas no rosto, nos pareceram tão engraçado que caímos na gargalhada, enquanto ele afundava e emergia. No desespero ele foi se debatendo e como a distância fosse pequena, chegou à margem, agarrando-se ao capim do barranco. Se dependesse que eu e o outro o socorrêssemos, provavelmente ele teria morrido. Até hoje me pergunto como é possível gargalhar tanto enquanto alguém corre risco de morrer.

Em um final de tarde, Tonho e Guido, chefe da oficina da empresa de transportes em que eu trabalhara, depois do trabalho, se dirigiram ao ponto de ônibus, onde embarcariam para suas casas.
Embarcaram no ônibus durante uma forte chuva. Quando este atingiu uma avenida ao lado de um rio, a enxurrada muito forte fez com que o motorista perdesse o controle e o ônibus foi arrastado para o leito do rio.
A correnteza muito forte arrastou o ônibus, enquanto ele afundava na água barrenta. Guido e outros passageiros conseguiram sair do ônibus e foram resgatados, Tonho, no entanto, não teve a mesma sorte.
Quando o Tonho não chegou em casa naquela noite, a família procurou os amigos em busca de notícias. As buscas começaram em hospitais, pronto socorros e delegacias de polícia. Dois dias depois chegou a informação de que ele estava no ônibus que caíra no rio.
Eu fui ao instituto médico legal, pela primeira vez na vida, cumprir a desagradável tarefa de tentar identificar, entre os cadáveres sem identificação, o meu amigo Tonho. Foi uma experiência muito desagradável e sofrida. O Tonho não estava entre os cadáveres que verifiquei.
Depois de quatro dias, um cadáver foi encontrado boiando no rio, oito quilômetros abaixo do ponto onde o ônibus caíra. Embora o Tonho fosse magro, o cadáver encontrado estava tão inchado e negro, parecendo um balão inflado. O reconhecimento só foi possível pela análise da arcada dentária, por uma restauração num dos dentes, feita com ouro. A deformação era tão grande que, os parentes e amigos que o olhavam através do visor de vidro no caixão lacrado, não acreditavam que pudesse ser ele.
Além dos pais, irmãos, cunhadas, cunhado e sobrinhos; Tonho deixou a mulher com quem pretendia se casar em breve e um filho recém nascido. A morte desse amigo me marcou profundamente, me causando grande revolta, achando injusto que um rapaz tão jovem, prestes a se casar, com um filho que não tivera oportunidade de conhecê-lo, pleno de saúde e bom; morresse daquela maneira, ou de qualquer outra. Não achava justo que além de ser impedido de prosseguir vivendo, sua morte tivesse causado tanta tristeza, principalmente à mulher que lhe dera um filho e que não chegara a se casar. Comecei a perceber o quanto estamos sujeitos ao sofrimento e quanto ele pode ser intenso.

A situação da oficina ia de mal a pior. Decidi abandonar aquele emprego e buscar coisa melhor. Um freguês da oficina me pediu que fizesse um serviço no caminhão dele, na sua casa, onde tinha as ferramentas necessárias e pelo qual me pagaria o equivalente ao salário de um mês de trabalho na oficina. Aceitei e, depois de três dias o serviço estava concluído.
Uma família de portugueses que morava no mesmo bairro que eu, vivia de vender coisas de porta em porta. Numa temporada vendiam tapetes, em outra, limões, em outra, vassouras e rodos e, assim, iam vivendo e progredindo. Todos os membros da família faziam isso. Nessa época, eles vendiam frigideiras, aquelas mais fundas, de chapa. Perguntei a um dos filhos onde compravam as frigideiras, quanto custavam e por quanto vendiam. De posse das informações, conclui que com o dinheiro que ganhara com aquele trabalho, poderia comprar um pouco de frigideiras, vendê-las e começar um negócio.
Como as frigideiras eram baratas, pude comprar uma quantidade que encheu um saco, daqueles em que a farinha vem embalada. Convidei meu irmão e um amigo para me acompanharem nas vendas. Fomos até um bairro próximo, pois não queríamos nos expor no nosso e começamos a vender. Quer dizer, tentar vender. Foi o primeiro indício que me mostrou que eu não tinha o menor talento para vendas. Andamos um dia inteiro e só vendemos seis peças. Nossa aparência deveria estar tão ruim que, meu irmão e o amigo bateram palmas em uma casa que ficava nos fundos do terreno. Uma mulher abriu a porta e, ao vê-los, fez sinal que esperassem. Logo depois saiu, acompanhada de uma menininha, chegou no portão e entregou duas bananas e dois pedaços de pão a eles. Eles ficaram tão espantados com o fato de terem sido confundidos com pedintes que nem ofereceram a mercadoria para a mulher. Rimos muito, comemos o pão e as bananas e fomos embora.
A imaturidade não me permitiu perceber minha total incompetência para vendas. Preferi culpar o bairro que escolhêramos. Isso, somado ao me desejo de viajar, me impeliram a decidir vender no interior. Não sei como, fiquei sabendo que haveria uma exposição de gado em Londrina, no Paraná. Alguém deve Ter completado a informação dizendo que esses eram bons lugares para vender.
Peguei o saco de frigideiras, fui até a rodoviária, verifiquei que o dinheiro que tinha era suficiente para pagar a passagem e que sobraria algum, embarquei e fui para Londrina. Cheguei lá numa Quinta-feira pela manhã. Perguntei onde ficava a exposição e me informaram que era em um parque, especial para esse tipo de evento e que ficava nos arredores da cidade. Peguei um ônibus e fui até lá.
Era um parque grande, bonito e todo cercado. Só era possível entrar por portões vigiados. Me informaram que era possível vender alí, desde que se pagasse uma tacha. A taxa consumiria o resto do dinheiro que eu tinha. No entanto, não tinha alternativa. Paguei a taxa e me instalei na calçada de uma das alamedas internas, ao lado de um homem que vendia animais de cerâmica, principalmente bois e cavalos. Espalhei as frigideiras na calçada e fiquei esperando pelos fregueses.
O ponto em que me instalei ficava na alameda da entrada principal há uns cem metros do portão. Por ele entravam todos os visitantes. Do outro lado da alameda, havia um rapaz vendendo uma novidade para prender cabelo de mulher. Eram as maria chiquinha, compostas de um elásrico com duas bolinhas de plástico. Ele tinha um caixote de embalar maçãs, que punha em pé e, com a tampa apoiada sobre ele, formava uma pequena bancada. Sobre essa bancada ele colocava as maria chiquinhas amontoadas.
Logo começaram a chegar ônibus trazendo estudantes para visitar a exposição. A cada ônibus que chegava, um monte de estudantes enchia a alameda. A maioria das meninas parava na banquinha e comprava maria chiquinhas. A cada leva, o rapaz tinha que repor o estoque. Enquanto ele vendia sua mercadoria aos montes, eu só tinha vendido cinco frigideiras até as onze da noite.
O homem dos bichos de cerâmica me disse estar hospedado em uma pensão. O preço do pernoite era quase o total que eu tinha apurado com a venda das frigideiras. Quando o parque fechou, fui com ele e me instalei na pensão. Tive que pagar na hora e com o dinheiro que sobrou, comprei um pacote de bolachas, que foi o meu jantar.
No dia seguinte, passamos em uma padaria, onde meu companheiro me pagou um pão com manteiga e um café com leite e fomos para o parque. Na parte da manhã vendi três frigideiras, o suficiente para pagar o café da manhã e um sanduiche na hora almoço. Na parte da tarde e noite vendi sete que, além do pagamento da pensão, do pacote de bolachas para o jantar, sobrou para pagar o café da manhã do Sábado. Ao passar pela porta do quarto onde o vendedor de marias chiquinha estava, como estivesse aberta, vimos que ele arrumava notas de dinheiro que formavam um monte amarrotado em cima da cama. Naquela noite pude sentir o que é inveja.
No Sábado o movimento foi bem maior. Chegou um rapaz para vender carrinhos. Era um carrinho pequeno, com uma bixiga acoplada. Enchendo a bixiga e colocando o carrinho no chão, ele saia em disparada, até que a bixiga se esvaziasse. Ele se instalou ao meu lado e me orientou a arrumar as frigideiras de uma maneira diferente, colocando uma de boca para cima e outra, sobre ela, de boca para baixo. Fiz isso e o visual ficou interessante, pareciam discos voadores com cabo. Nesse dia o movimento foi bem maior e a venda de frigideiras aumentou. Não me lembro quantas vendi, mas, na pensão, verifiquei que o dinheiro dava para pagar a pensão, um jantar, café da manhã e faltava pouco para comprar a passagem de volta. No almoço comi o sanduiche de todos os dias, mas à noite, fui jantar com o vendedor de bichos de cerâmica. Comi arroz, feijão, picadinho de carne com batata e salada de alface com tomate. Um manjar dos deuses!
No Domingo, ao chegar no parque, fomos avisados para nos instalarmos numa alameda transversal a que ocupávamos. O motivo era que o presidente da república viria visitar a exposição e a comitiva passaria pela alameda principal. Nos instalamos no local indicado e ficamos esperando a chegado do ilustre visitante. Uma vez que a maioria das pessoas se apertava junto ao cordão de isolamento que margeava o trajeto por onde a comitiva passaria.
Por volta das onze horas da manhã, os alto falantes passaram a transmitir o som de uma rádio local que acompanhava a chegada do presidente ao aeroporto da cidade e o acompanharia até a exposição. Ficamos ouvindo a transmissão do itinerário que a comitiva percorria e, quando indicavam estar a pouco mais de um quilômetro da exposição, percebemos uma grande movimentação do público. Seguranças esticavam cordas de isolamento na alameda em que estávamos e o público corria pra lá. Parecia uma boiada estourada, pisavam sobre nossas coisas e várias peças foram parar no meio da alameda. Fiquei tão nervoso que passei a dar socos e pontapés em quem se aproximava. Quando a correria parou, parei com as agressões e fui recolher as frigideiras espalhadas pela alameda. Quatro ou cinco seguranças correram para me expulsar e percebendo que eu recolhia as frigideiras, me ajudaram e me empurraram para trás do cordão. Nessa época eu era avesso à política, mas não tinha nenhuma simpatia por aquele governo. A partir daquele dia, passei a odiá-lo.
Vendi mais um pouco de frigideiras, completei o dinheiro necessário para a passagem e mais um pouco para um lanche e embarquei de volta naquela mesma noite.

Fui naquela oficina onde trabalhara e não recebera, tentar receber o que me deviam. Não consegui, mas encontrei o mesmo motorista que me havia indicado aquele trabalho. Sentindo-se culpado por feito aquela indicação desastrada, se prontificou a me ajudar a conseguir trabalho, uma vez que a venda de frigideiras tinha resultado em fracasso total.
Ele me levou até uma oficina de automóveis de um amigo dele, que me deu emprego. Trabalhei dois ou três meses lá, mas a situação era ruim. O proprietário bebia muito e os fregueses estavam se afastando. O trabalho diminuía a cada dia.
Um rapaz que havia trabalhado lá, ao se casar, deixou o emprego para montar sua própria oficina, ali próximo, na frente da casa que morava e que era de seu sogro. Percebendo minha situação, convidou-me para trabalhar com ele. Disse que não tinha muito trabalho, mas que, se trabalhássemos direito, poderíamos aumentar a freguesia, principalmente, captando os que estavam descontentes com a outra. Aceitei o convite e fui trabalhar com ele.
Era uma oficina pequena onde só cabiam dois carros. Ganhávamos pouco, mas o suficiente para sobreviver. Ele morava nos fundos da oficina e eu almoçava na casa dele, onde era tratado como membro da família.
A freguesia não era grande e os preços que ele cobrava eram pequenos, o que nos levava a viver em constante dificuldade financeira.
Quando terminávamos o trabalho em um carro, saíamos para experimentá-lo. Aproveitávamos para paquerar e tentar conseguir alguma mulher. Nunca conseguimos nenhuma.
Numa Sexta-feira, terminamos de arrumar o câmbio de uma camionete. Ela era de um amigo e vizinho. O Mané, dono da oficina, propôs que, à noite, fôssemos pegar umas prostitutas que faziam ponto em uma praça, não muito longe da oficina.
Ele disse para a esposa que iria comigo a uma sauna. Saímos e fomos direto para a praça. Como era cedo, por volta das sete horas da noite. Só havia uma puta ali. Como ela concordou em fazer sexo com os dois, entrou na camionete e fomos para um lugar ermo, não muito longe dali. Era um loteamento novo, onde não havia casas.
Estacionei a camionete numa das ruas desertas e desci, deixando o Mané fazer sexo primeiro.
Quando ele terminou, saiu da camionete e eu entrei. Abaixei as calças até os pés e me posicionei sobre a puta, que estava deitada no banco. Nisso, apareceu uma luz de farois de um carro. Me abaixei, espremendo-me sobre a mulher. Era um carro particular, de passagem. Quando me preparava para reiniciar, apareceu outra luz de automóvel, vindo no sentido contrário ao que passara há pouco. Pensei que era o mesmo que voltava.
Não era. Era um carro da polícia, que parou ao lado da camionete. Os policiais desceram e um deles enfiou o cano de uma carabina pela janela da camionete, ordenando que descêssemos.
Um dos policiais foi atrás do Mané que, quando percebeu que era um carro de polícia, saiu andando como se estivesse ali de passagem. O policial trouxe-o até onde estávamos.
O policial me perguntou se o conhecia e eu neguei. Perguntou para a puta e ela também negou.
Os policiais dispensaram o Mané e me colocaram, junto com a puta, na parte de trás do carro deles. Um dos policiais foi dirigindo a camionete e nos levaram para a delegacia.
Chegando na delegacia, me colocaram em uma cela, onde havia várias outras pessoas. Ninguém falou comigo.
Algum tempo depois, abriram a porta da cela e mandaram que todos acompanhassem um policial, que nos conduziu até a porta da rua, mandando-nos entrar em uma viatura estacionada ali.
Fomos levados para a casa de detenção, um prédio muito antigo, no centro da cidade.
Durante a viagem, éramos dez, espremidos num espaço onde, cinco já se sentiriam apertados. Foi um sufoco.
Ao chegar na casa de detenção, nos colocaram em uma cela onde já havia quinze pessoas. Portanto, agora, éramos vinte e cinco a ocupá-la.
Entre os que já estavam na cela quando chegamos, um assumira a liderança; era o chefe. Entre os que chegaram comigo, havia havia um homem grande e forte que, logo que fomos encerrados, quis assumir a liderança da cela. Logo se iniciou uma discussão entre os dois.
Enquanto os dois discutiam, um bêbado que fora levado conosco para lá, vendo uma espécie de cordinha pendurada num prego na parede, com a ponta inferior em brasa, tirou-a do prego, jogou-a no chão e pisou em cima, apagando a brasa. Ouvi vários palavrões e um dos presos deu um forte tapa na orelha do bêbado, jogando contra a parede. A brasa daquela cordinha era o acendedor de cigarros, uma vez que não havia isqueiro nem fósforos na cela.
A discussão pela liderança da cela continuou, com os presos se posicionando a favor de um ou de outro. Era um clima de terror, indicando que uma violenta briga acabaria acontecendo ali. Depois de algumas horas de tensão, os dois se acertaram e dividiram a liderança.
Durante a discussão a tensão era enorme. Uma briga ali poderia Ter sérias conseqüências. Mesmo depois do acerto, a tensão não me permitia relaxar.
Por volta do meio dia do Sábado, me soltaram. Simplesmente me devolveram os documentos e me mandaram embora. Nem na delegacia, nem ali me perguntaram qualquer coisa, nem me disseram nada.
Quando me vi na rua, corri desesperadamente, explulsando a tensão por que havia passado durante o tempo em que ficara encarcerado.
Peguei um ônibus e fui direto para a oficina. Ao descer do ônibus, em frente ao bar que freqüentávamos, vários amigos vieram me perguntar o que havia acontecido. Disseram que havia várias pessoas tentando me encontrar desde a noite passada, quando o Mané dissera que eu fôra preso. Ele disse que, na saida da sauna, ouve uma briga, que fomos envolvidos sem querer e que a polícia havia prendido alguns dos briguentos, eu entre eles.
Várias pessoas passaram o resto da noite e a manhã de Sábado me procurando em várias delegacias mas não haviam encontrado nenhuma pista de onde eu estivesse. Vivíamos numa ditadura e a polícia não se dignava a dar satisfações. Tanto é que me prenderam por mais de quinze horas, sem me acusar de absolutamente nada.

Quase um ano depois de Ter completado dezoito anos, consegui a habilitação de motorista. Quando me entregaram o documento de habilitação, eu olhava para ele como se fosse um grande tesouro, Há tanto desejado, tão esperado e, agora, em minhas mãos. Durante vários dias, quando não tinha o que fazer, pegava o documento e ficava admirando-o, como para me certificar de que não estava sonhando, que ele era real e que, agora poderia conseguir um trabalho como motorista de caminhão e partir para as viagens tão sonhadas.
Lendo os classificados de emprego em um jornal, verifiquei um anúncio que oferecia vaga para motorista de caminhão. Interpretei aquele anúncio como se fosse a comunicação de que eu havia ganho um grande prêmio. Me lavei as pressas, troquei de roupa e fui para o endereço constante no anúncio.
Era uma fábrica de móveis que tinha frota própria para o transporte de seus produtos. Quando cheguei, já havia vários candidatos, esperando na portaria da fábrica. Preenchi uma ficha e fiquei aguardando, ouvindo a conversa dos outros candidatos. Eles falavam sobre suas experiências profissionais e, a cada relato, minhas esperanças diminuíam drasticamente. Eram todos bem mais velhos que eu e tinham anos de experiência naquela função. Só havia uma vaga e eram mais de dez candidatos. Pelos relatos, o menos experiente deles era enormemente mais capacitado que eu. Me senti como um coelho numa jaula entre leões.
A porta se abriu e saiu um rapaz, aparentando uns vinte e cinco anos e, pela roupa, parecia ser mecânico. Ele tinha uma ficha, como a que eu preenchera, na mão. Para minha surpresa, chamou meu nome. Acerquei-me dele, que me comunicou que eu era muito jovem e inexperiente para a vaga anunciada. Que os outros candidatos, pelo que ele vira nas fichas, eram muito mais capacitados que eu e que seria perda de tempo esperar pelo resultado da seleção.
Disse-lhe que compreendia, que ouvira a conversa deles e que já tinha percebido a impossibilidade de superá-los. Ele se despediu de mim e se dirigiu para a porta, enquanto eu me virei para ir embora, sentindo toda a frustração pelo fracasso da primeira tentativa. A imaturidade me propiciara crer que seria fácil, que a habilitação de motorista seria suficiente para conseguir realizar o sonho há tanto acalentado. Aquele fracasso me mostrava que não é suficiente querer; que é necessário poder, sem o quê, o querer, termina em frustração.
Já havia caminhado alguns passos, quando ouvi que me chamavam. Era o rapaz, que voltara ao local que conversáramos. Quando me aproximei, ele me perguntou sobre minha experiência como mecânico. Relatei-lhe o que fizera até ali e ele, demonstrando interesse, me fez várias perguntas, o que me levou a considerar que pretendia me contratar como mecânico. Falei-lhe do sonho acalentado desde criança e percebi, pelo seu semblante, que ele simpatizara comigo.
Ele reafirmou que, para a vaga de motorista de caminhão, eu não teria chance de consegui-la. No entanto, eles estavam precisando de um motorista para trabalhar com uma perua, que fazia o correio entre as três fábricas do grupo e que, puxava uma carreta onde era depositada a serragem de madeira, que era descarregada em uma área nas proximidades. Essa carreta ficava estacionada no pátio da fábrica e, quando cheia, era engatada na perua, que a levava para ser descarregada. Disse que pretendiam oferecer esse trabalho ao segundo colocado na seleção, mas que, como o salário para esse trabalho era menor que o de motorista de caminhão, os outros candidatos poderiam não aceitá-lo. Que, se eu quisesse, ele poderia interferir a meu favor e, seguramente, o emprego seria meu. Alegou, ainda, que estando na empresa e demonstrando qualidade no trabalho, eu me credenciaria para uma próxima vaga para os caminhões. Aceitei de imediato.
Comecei a trabalhar no dia seguinte. O grupo era composto por três fábricas e o percurso entre elas não chegava a dez quilômetros. Fazia uma viagem pela manhã e outra à tarde, transportando papéis e documentos. Durante o dia, fazia quatro ou cinco viagens com a carreta para descarregá-la.
A maioria dos operários da matriz, que era a mais nova do grupo, havia trabalhado na unidade mais antiga e que fôra a matriz até que esta última fosse construída. A distância entre elas não era grande, aproximadamente cinco quilômetros. No entanto, não havia condução regular para esse trajeto, por isso, a empresa disponibilizava um caminhão para transportá-los pela manhã e à tarde. Para isso era utilizado um dos caminhões que estivesse aguardando para ser carregado. Alguns dias depois de Ter começado a trabalhar, me pediram para fazer esse transporte. Isso serviu de teste para avaliar minha capacidade em conduzir um caminhão.
Antes que se passassem dois meses desde que começara a trabalhar ali, surgiu nova vaga para motorista de caminhão e, ajudado pelo rapaz que me contratara, consegui, finalmente, realizar meu sonho.
Num final de tarde, depois de o caminhão Ter sido carregado e enlonado, eu Ter recebido as instruções, recebido os documentos e o dinheiro para as despesas, Sentei-me ao volante e sentindo uma felicidade indiscritível, parti para a primeira viagem. Acompanharia dois outros caminhões da empresa que se dirigiriam ao mesmo destino que eu, a cidade do Rio de Janeiro. Combinei com os outros dois motoristas, que cada um passaria em suas casas e que nos encontraríamos em um posto de gasolina, na estrada, próximo da entrada da cidade de Jacarei.
Estacionei o caminhão em frente de casa e, minha mãe, ao ver aquele caminhão com aquela carga alta, perguntou-me com cara de espanto, o que significava aquilo. Disse-lhe que iria viajar, que passara ali para jantar e pegar algumas roupas. Ela quase teve um ataque, disse que eu estava louco, que era muito jovem para me atrever numa aventura daquelas, que não me deixaria ir e coisas do tipo.
Tomei banho, jantei, peguei algumas roupas, subi para o caminhão e só parei de ouvir as reclamações de minha mãe, quando foram abafadas pelo ruído do motor do caminhão. Parti para encontrar os companheiros e seguir viagem.
O caminhão do Alemão estava estacionado em frente à borracharia do posto, em Jacarei. O Nelson ainda não havia chegado. Estacionei ao lado do caminhão do alemão e, como o borracheiro me dissesse que ele estava no restaurante, dirigi-me para lá.
O Alemão estava sentado em um banco alto, junto ao balcão, conversando com um garçom. Aproximei-me e ele sorriu ao me ver. Quando lhe perguntei porque chegara tão cedo, ele disse que não passara em casa, que viera direto. Não gostava de passar em casa com o caminhão, porque nas ruas do seu bairro havia muitos fios baixos e a carga alta do caminhão não lhe permitiam passar. Para ir em casa, tinha que deixar o caminhão a uns cinco quarteirões de distância e ir a pé. Como naquela noite não estava disposto a andar, decidira vir direto da fábrica para a estrada.
O Alemão era albino, com o cabelo de um amarelo muito claro e a pele bastante avermelhada. Ele me convidou para tomar uma pinga mas eu recusei, alegando que havia terminado de jantar. Ele tomou a pinga e eu, um café. Ficamos ali conversando até que o Nelson chegou. O Alemão tomou mais uma pinga, o Nelson e eu tomamos café, pagamos a despesa e nos dirigimos para os caminhões. Eles me avisaram que a próxima parada seria em Guaratinguetá.
Seguimos viagem e eu não cabia em mim de tanta felicidade. Já começava a me sentir um veterano do volante.
Paramos em Guaratinguetá, num posto de gasolina, onde parecia que o produto mais consumido ali eram as prostitutas, tamanha era a quantidade delas perambulando pelo pátio do posto e pelo acostamento da estrada.
O Nelson e o Alemão conheciam uma porção de motoristas que estavam por ali. Durante a noite o movimento de caminhões na Dutra era muito grande, transportando todo tipo de carga entre as duas maiores cidades do país. O Alemão tomou mais uma pinga, enquanto o Nelson e eu tomamos café com bagaceira.
Perambulamos um pouco pelo pátio, entre motoristas e putas. Pegamos os caminhões e partimos com destino à próxima parada, em Lorena, ali perto, onde cochilaríamos um pouco.
O posto que paramos em Lorena, ficava do lado da pista contrária. Estacionamos em um pátio de terra, em frente ao posto, atravessamos a estrada e chegamos ao pátio, onde circulavam outra porção de putas. Depois de cigarros e pinga, o sexo era o produto mais comercializado naqueles postos de gasolina.
O Alemão tomou mais uma pinga, enquanto o Nelson e eu tomamos mais café com bagaceira. Notei que o Alemão bebia bastante, mas não comia nada. Fomos para os caminhões e nos esticamos para cochilar um pouco.
Minha primeira noite na estrada, na cabina de um caminhão. Estava tão excitado que demorei para dormir.
Saímos por volta das três e meia da manhã. Antes fomos ao posto, lavamos o rosto, o Alemão tomou mais uma pinga e o Nelson e eu mais café com bagaceira.
Na altura de Barra mansa, num longo trecho de estrada reta e plana, O Nelson puxava a fila, o Alemão ia no meio e eu atrás. Nessa reta, percebi que o caminhão do Alemão oscilava de um lado para o outro, levemente. Achei que ele poderia estar com algum problema, acelerei e emparelhei meu caminhão ao dele. Olhei para o Alemão e ele estava estático, não olhando para mim nem quando acionei a busina elétrica. Percebi que ele adormecera e fiquei com medo de assustá-lo e ele puxar seu caminhão para junto do meu, abalroando-me. Mesmo assim, acionei a buzina a ar, que era muito mais forte. Ele estremeceu, olhou pra mim e fixou o olhar no parabrisa, controlando a direção do caminhão. Voltou a olhar pra mim, levantou a mão com o polegar pra cima, deu um sorriso e voltei a ocupar o lugar atrás dele.
Chegamos ao Rio por volta das seis horas da manhã, estacionando no pátio do depósito de uma rede de lojas, onde iríamos descarregar, quando já passava das sete horas. Só fomos liberados no final da tarde.
Dois ajudantes que trabalhavam no depósito carregando e descarregando caminhões, me pediram carona até a baixada fluminense, onde moravam. Quando saímos do depósito, um deles me disse, em tom de gozação, pra eu tomar cuidado no trânsito porque carioca era meio louco no trânsito e, um paulista novato como eu, poderia Ter problemas no trânsito. Como o caminhão estivesse vazio e tinha um motor V-8 a gasolina, andei no trânsito congestionado, como um moleque irresponsável fazia em um racha de rua. Não demorou para que o mesmo rapaz que quisera me gozar, pedisse pelo amor de Deus para que eu dirigisse mais tranqüilo, demonstrando estar morrendo de medo.
Parei em um posto de gasolina no pé da serra das Araras e esperei pelo Alemão e o Nelson. Quando eles chegaram, me disseram que pararíamos em Barra Mansa par jantar.
Estacionamos os caminhões no acostamento, atravessamos a estrada e subimos por um trilho morro acima. O restaurante do Ceará ficava mo meio de um morro, há uns cem metros da estrada. Era um barracão de madeira onde havia duas mesas compridas com bancos. Depois de tomar algumas pingas, comemos arroz, feijão e costelas de porco fritas. A comida era muito boa e barata, por isso valia a pena subir o morro.
Depois das paradas nos mesmos postos que paramos na ida, chegamos a São Paulo no começo da manha. Eu concluíra minha primeira viagem. O sonho havia se tornado realidade.
Trabalhei menos de um ano nessa empresa, viajando por várias regiões do país, conhecendo vários estados e muitas cidades. Pude comprovar as diferenças que podem existir entre o sonho e a realidade, que podem ser muito grandes. O viajar, conhecer pessoas e lugares diferentes, a liberdade de não estar sendo vigiado a todo instante, o não Ter hora para começar e encerrar o trabalho diário desde que cumprida uma jornada mínima; era muito bom. No entanto, as péssimas condições de muitas estradas, a perseguição de guardas rodoviários corruptos, as intermináveis horas esperando para descarregar o caminhão, os baixos salários, entre outras coisas; causavam revolta e mal estar.
Sempre que possível, eu passava na oficina do Mané para visitá-lo. Numa delas, ele me disse que uma fábrica de vidros, próxima dali, estava precisando de mecânico. Que trabalhando ali, eu teria oportunidade de, de vez em quando, fazer algumas viagens com caminhão, que eram raras, mas aconteciam. Que os motoristas de lá estavam acostumados a trabalhar só na cidade e que não gostavam de viajar. Portanto, quando surgisse alguma viagem, eu teria oportunidade de faze-la. O trabalho era tranqüilo e o salário, comparado com o que eu ganhava, era muito melhor.
Pedi demissão na fábrica de móveis e voltei a trabalhar como mecânico, na fábrica de vidros. Já havia aplacado o desejo ansioso de realizar meu sonho. A melhor maneira de destruir um sonho, é realiza-lo.
O trabalho era tranqüilo. Eram dois caminhões, uma perua e os carros dos donos da fábrica. O contato direto com os patrões me granjeou a simpatia deles e uma situação bastante confortável na empresa.
Quando precisava sair, alegava a necessidade de procurar alguma peça ou ferramenta e dispunha do tempo que quisesse. O gerente da fábrica, vivia me pedindo para fazer-lhe serviços particulares e me recompensava levando-me para almoçar em sua casa ou em restaurantes.
Entre os funcionários, somente os chefes principais possuíam automóvel. Eu tinha autorização dos patrões para, desde que não interferisse no meu trabalho, arrumar os carros desses funcionários. Isso me propiciava boas gorjetas, uma vez que eles economizavam despesas com oficina.
Nessa época, só quem tivesse um padrão financeiro bastante alto, conseguia Ter um carro novo. Por isso, a maioria, tinha carros usados e, portanto, mais sujeitos a defeitos. O medo de que o carro pudesse apresentar defeitos na estrada, levava os proprietários a convidar mecânicos para acompanhá-los, principalmente em pescarias. Isso me propiciava lazer sem custo.
Na fábrica, havia uns poucos funcionários de idade bem avançada, que desempenhavam cargos de chefia e que trabalhavam ali desde sua fundação. Muitos finais de semana, eles requisitavam a perua da fábrica para fazer passeios, ora para visitar alambiques e comprar pinga, ora para ir até a praia onde um deles tinha um apartamento. Eu era sempre convidado a levá-los.
Uma vez, os levei para visitar alguns alambiques na região de Jacarei e Santa Branca. Em cada alambique eles experimentavam as pingas, conversavam com o proprietário e compravam, pelo menos um garrafão de pinga. Depois de passar por uns quatro ou cinco alambiques, chegamos a um que ficava num sítio. A porteira estava fechada com corrente e cadeado. Depois de chamar e acionar a buzina por algum tempo; eles resolveram entrar por uma passagem para pedestres que, na roça, chamam de quebra corpo. Ela permite a passagem de pessoas, mas impede a de animais de grande porte, como cavalos e gado. Eu fiquei esperando na perua. Quando eles já haviam andado uns cinqüenta metros para dentro do sítio, apareceram dois cachorros enormes, latindo e correndo na direção deles. Eles deram meia volta e nunca ví tamanha vitalidade em homens daquela idade, correndo como verdadeiros atletas. Mesmo assim, um deles foi alcançado e teve a calça rasgada pela mordida de um dos cachorros. As conseqüências só não foram maiores porque o dono do alambique apareceu, fritou com os cachorros e eles pararam, quando o segundo já ia abocanhar a perna que o primeiro rasgara a calça.
O dono do alambique se desculpou, alegando estar regando a horta, que ficava mais afastada, o que o impediu de atender mais rapidamente ao nosso chamado. Abriu a porteira e nos convidou a entrar. Quando chegamos na casa, ele perguntou se os senhores queriam tomar água com açucar, por causa do susto, mas eles preferiram se acalmar com pinga mesmo.
Nenhum deles era alcoólatra, mas gostavam de pinga. Nesses passeios, era comum que abusassem e eu tinha que ajudá-los a chegar até a porta de suas casas, onde algum parente os recolhia, sabendo que esses passeios costumavam terminar assim, não sem antes dar início ao velho sermão.
Como meu expediente terminava as cinco horas da tarde, passava todos os dias na oficina do Mané. Numa Sexta-feira, ele e um pessoal que freqüentava a oficina, resolveram ir a uma praia, em Peruibe, onde alguém dissera que era fácil pegar mariscos. Compramos cerveja, pinga, pão e sardinhas em lata, lotamos dois carros e, por volta das onze da noite, saímos rumo a essa praia. Ela ficava depois da cidade de Peruibe, atrás de uns morros, por onde se chegava por uma estradinha de terra, bastante ruim.
Quando chegamos na praia já passava das quatro horas da manhã. Todos tinham começado a beber no final da tarde e continuaram durante a viagem, por isso, estávamos bastante “altos”. Alguns pescadores preparavam seus barcos e material para a pesca. Nos informaram que os mariscos estavam numa parede rochosa na extremidade da praia, por onde se chegava caminhando sobre as pedras. As pedras estavam lisas e escorregadias e, alcoolizados como estávamos, caminhando no escuro, não sei como não houve um acidente. Dizem que os bêbados recebem uma proteção especial dos santos.
A caminhada terminou numa parede rochosa que ia até a água, com mais de cinco metros de altura. Por ser uma noite de lua cheia, a claridade nos permitiu ver que o paredão estava forrado de mariscos. A questão era: como tirar os mariscos?
Depois de várias idéias, uma mais absurda que a outra; decidimos por em prática uma que nos pareceu razoável. Todos se sentariam na pedra, em fila a partir da borda em direção ao centro, de mãos dadas. Um de nós se agarraria ao braço do que ficasse na borda, e pendurado, retiraria os mariscos e os atiraria para cima. Como fosse o mais leve, decidiram que eu seria o arrancador de mariscos. Segurei o braço de quem estava na borda e deslizei para a parede. Os mariscos ficam muito colados na pedra e, sem alguma ferramenta para retirá-los, é impossível a colheita. Só consegui tirar dois ou três que estavam mais soltos. Não sei quanto tempo fiquei pendurado, mas deve Ter sido muito pouco. Os mariscos cortam como navalhas afiadas e, o contato do peito e das pernas com eles, provocara um sem número de cortes na pele. Quando me içaram verifiquei que estava coberto de sangue, nos braços, peito, barriga e pernas. Ao invés de lamento, aquilo foi motivo para muitas gargalhadas e todos acharam mais interessante aquele espetáculo do que se tivéssemos colhido uma boa quantidade de mariscos. Alguns mergulhos no mar, a fricção de pinga nos cortes e estava novo de novo. Ao raiar do dia, já estávamos na estrada de volta. Chegamos sãos e salvos o que, no estado que estávamos, poderia ser considerado um milagre.
Muitas vezes a sorte compensa a irresponsabilidade, evitando que as conseqüências punam os irresponsáveis. Coisas assim não eram exceção e, sim, regra. Me considero um felizardo por nunca Ter sofrido acidentes mais sérios, com conseqüências desastrosas. E isso se deve à sorte, pois a irresponsabilidade foi minha companheira em inúmeras ocasiões.
Como acontecia de vez em quando, surgiu uma viagem para levar uma carga, desta vez, ao Rio de Janeiro. Fui e, na volta, como chegasse tarde da noite, fui direto para minha casa e deixei o caminhão estacionado na rua, em frente a ela. Na manhã seguinte, quando sai para pegar o caminhão, ao olhar pra ele tive a impressão que ainda não acordara e que estava tendo um pesadelo. Faltavam as rodas traseiras e o estepe do caminhão. Haviam sido roubadas. Fiquei com muita raiva e admirado da coragem e ousadia dos ladrões. A retirada das rodas é trabalhosa e exige tempo. É preciso sangue frio e determinação para enfrentar o risco de ser flagrado roubando e Ter que responder por aquilo.

Por volta dos quatorze anos de idade, uma menina do bairro, no seu aniversário, convidou os amigos para comer bolo e tomar refrigerante em sua casa, num Domingo à tarde. A música de discos tocados em uma vitrola animava a festinha. Algumas meninas sabiam dançar e resolveram ensinar os meninos. Depois de relutar um pouco, concordamos e logo um bailinho estava acontecendo. Todos gostaram e, a partir dali, todas as tardes de Domingo acontecia um bailinho, ora na casa de um, ora na casa de outro.
Uns amigos, cuja mãe era viuva, passaram a realizar bailinhos em sua casa aos sábados à noite. Os das tardes de domingo, começaram a avançar até as nove ou dez da noite. A moral da época reprimia o namoro de adolescentes. Nem por isso, eles deixavam de namorar, mas o faziam as escondidas e dificilmente alguma menina permitia mais que pegar na mão e beijos rápidos. A dança permitia um contato corporal, propiciando grande prezer. Os bailes, além de ser um laser, ampliava as relações sociais, facilitando conversas e propiciando namores.
A forte repressão sexual, reforçava a curiosidade e a fantasia. A moral condenava veementemente a sexualidade fora do casamento. A repressão à menina que perdia a virgindade e não se casasse antes de ser descoberta, era violenta. A maioria era expulsa de casa e, mesmo que não fosse; as chances de conseguir se casar eram mínimas, porque os homens não admitiam se casar com mulher que não fosse virgem. Era uma questão de honra.
Portanto, a dança era uma maneira de contornar esse problema, propiciando um contato físico que não poderia acontecer de outra maneira. Por isso esses bailes eram chamados de “mela cueca”, porque era comum que os rapazes ejaculassem enquanto dançavam. Sem dúvida, também “melavam as calcinhas”, mas isso era mais difícil de se perceber visualmente.
Os bailes favoreciam o acontecimento de namoricos. Eu sempre fui muito tímido. Não tinha coragem de tirar para dançar uma menina sobre a qual não estivesse seguro de que aceitaria. Para pedir uma menina em namoro, era pior ainda. Se dependesse de eu abordar uma menina e convencê-la a namorar comigo, estaria sozinho e virgem até hoje. Por isso tive poucas namoradas. Por volta dos dezesseis anos conheci a menina com quem me casaria sete anos depois.

Enquanto trabalhava na fábrica de vidros, conheci um rapaz que começou a namorar a irmã de um amigo meu. Ele acabou se tornando um dos maiores amigos que já tive. Éramos muito diferentes no que diz respeito à personalidade. Ele era quieto e acomodado, caseiro, totalmente dedicado ao trabalho. Eu era irriquieto, aventureiro, gostava de bailes, tinha muitos amigos e vivia metido em brigas. Ele não dançava, tinha muito poucos amigos, não brigava, nem jogava futebol. Vivia para o trabalho, para o namoro e para a família. Mesmo sendo do tipo calado, seu maior laser era conversar comigo e com os outros poucos amigos.
Aos sábados, depois de sair das casas das namoradas, nos encontrávamos em um baile que acontecia numa associação comercial do bairro. Como ele não dançava, conversávamos até alta madrugada. Ele tinha uma freguesia de bolos: vendia bolos em pedaços para padarias, bares e restaurantes. Havia começado há pouco com aquele negócio, mas já apresentava sinais de sucesso. Em nossas conversas ele sempre me incentivava a conseguir algum dinheiro para a entrada naquele negócio, que garantia ser promissor. Como eu não vislumbrasse nenhuma maneira de conseguir o mínimo dinheiro necessário par isso, não considerava, seriamente, que aquilo pudesse acontecer.
O Vitor apresentava uma personalidade moldada por uma moral muito rígida, embasada em valores em que o trabalho vinha em primeiro lugar, seguido pela honestidade e apego à família. A importância de acumular capital para garantir a independência financeira, poder arcar com despesas imprevistas e, principalmente, garantir uma velhice sem problemas, e poder arcar com despesas causadas por doenças, além de poder descansar sem se preocupar em conseguir o necessário para a sobrevivência; era uma verdadeira obsessão.
Ganhar dinheiro e acumular capital eram o objetivo de sua vida. Se numa conversa, a palavra dinheiro não fosse citada com destaque, pode-se garantir que o Vitor não participava dela.
Imigrante português, ele chegara ao Brasil, em companhia dos pais, quando contava mais ou menos sete anos de idade. Pouco tempo depois nasceu seu irmão Marcos. Os pais, como a maioria dos imigrantes daquela época, vieram em busca de oportunidade de sair da pobreza e acumular capital. Com o pouco capital que trouxeram e a ajuda de um parente que já estava aqui; se estabeleceram com um pequeno comércio, vendendo bebidas. O pai adoecera e a mãe assumiu a responsabilidade pela família e pelo negócio, contando com o total apoio do filho que não mediu esforços para ajudar no que pudesse.
O pai acabou morrendo e ele e a mãe assumiram definitivamente a responsabilidade com que tinham arcado emergencialmente. O trabalho era muito e a receita pequena, por isso, a estratégia para acumular capital era reduzir as despesas ao mínimo possível.

Um dia, o gerente da fábrica de vidros, me disse que fôra contemplado no sorteio de um consórcio, de que participava, para a aquisição de um carro novo. Como o carro que tinha estivesse em bom estado e ele gostasse muito dele, decidira vender o novo. Disse que pretendia aplicar o dinheiro conseguido com isso. Que se eu quisesse montar uma oficina, ele me emprestaria o dinheiro a juros.
No Sábado seguinte, o Vitor, esse amigo, voltou a tocar no assunto da freguesia de bolos. Disse-lhe da oferta que o gerente me fizera. Ele me incentivou a pegar o empréstimo, alegando que o negócio me possibilitaria pagar a dívida em pouco tempo.
Alguns dias depois ele me procurou comunicando que havia uma freguesia à venda, que era pequena, mas suficiente para começar no negócio. No Sábado seguinte fui com ele à casa do rapaz que estava vendendo a freguesia, acertamos o valor da entrada e das prestações e fiquei de procurá-lo quando estivesse com o dinheiro.
Conversei com o gerente da fábrica e ele confirmou que me emprestaria o suficiente para a entrada, combinamos a taxa de juros, pedi demissão e, naquele mesmo dia, depois do expediente, fui procurar o rapaz para confirmar o negócio.
Peguei um taxi par ir me encontrar com o rapaz e, no caminho, ao tentar ultrapassar um ônibus, próximo a uma curva, fomos abalroados por um ônibus que vinha em sentido contrário. O taxi ficou destroçado, mas, por sorte, nem eu nem o motorista ficamos feridos. Quem via o estado em que ficou o taxi, não acreditava que nós tivéssemos saído ilesos.
A maior parte da freguesia era composta por bares e restaurantes, próximos de indústrias, em São Caetano e Santo André. Eu fazia as entregas diariamente, antes que começasse o movimento de entrada nas fábricas, isto é, antes das seis horas da manhã. Para isso, saia de casa por volta das três. O restante dos fregueses, que consumiam menos, eram visitados duas vezes por semana. O resto do dia eu passava tentando conseguir novos fregueses, o que não era fácil, pois a maioria já tinha seus fornecedores. A isso se somava a minha falta de talento para vendas, o que tornava praticamente impossível aumentar a freguesia.
Eu comprara só a freguesia, sem a perua. Para não Ter que pedir mais dinheiro emprestado, comecei a trabalhar com uma perua que meu pai tinha. Pouco tempo depois, o dono da fábrica onde eu comprava os bolos, o Kocho, que era japonês; considerou que eu era esforçado e se prontificou a me emprestar dinheiro para comprar uma perua.
Alguns dias depois, um freguês me informou que um vizinho dele arrematara uma perua velha em um leilão da prefeitura. Ela havia sido uma ambulância. Era uma perua chevrolet 1950. Peguei o dinheiro com o Kocho e comprei-a. Estava bastante judiada e feia, mas andava. Eu tinha muito medo de dívidas, de não poder pagá-las, por isso optei por aquela perua, que era velha, mas barata. Quando cheguei com ela na fábrica de bolos e o Kocho a viu, me perguntou em que tipo de museu eu a havia comprado. Disse que eu não poderia circular com um carro feio daqueles. Me mandou procurar uma oficina e mandar pintar a perua, que ele pagaria pelo serviço.
Alguns dias depois, pude devolver a perua do meu pai e passei a trabalhar com a minha.


03/02/07
A acumulação de capital era lenta pois a adega era pequena e não oferecia condições de ganhos maiores. Montaram um depósito de bananas, que vendiam na feira e entregavam em quitandas da região, com carroça puxada por cavalo.
Quando o Vitor completou a maior idade, a mãe e o padrasto decidiram comprar-lhe um negócio para que ele pudesse iniciar sua independência. Comprou uma freguesia de bolos com um furgão velho e dedicou-se de corpo e alma à construção de um futuro de progresso.
Ele conheceu uma moça, irmã de um amigo meu, e começaram a namorar. Eu costumava ir à casa dela e foi lá que o conheci.
O pai da moça era do sul de Minas Gerais, de onde saíra muito jovem, em busca de melhores condições, pois em sua região elas eram diminutas. Começou trabalhando em um bar no centro da cidade onde demonstrou sua vontade de progredir e disposição para isso, não desperdiçando as oportunidades que surgiam. Depois de algum tempo, conseguiu um emprego em uma empresa de ar condicionado. Sua capacidade e dedicação lhe propiciaram tornar-se empreiteiro e passou a prestar serviço à essa empresa, fabricando e instalando dutos de ar condicionado. Casou-se e teve um casal de filhos.
Transformando chapas em dutos, emendando-os, fixando-os, montando redes de distribuição de ar que propiciariam conforto aos usuários de prédios, ele foi progredindo financeiramente. Conseguiu comprar uma casa própria, pequena e simples, mas era sua e, com o tempo, poderia melhorá-la.
Ele não se contentava em progredir, precisava que isso fosse notado, causar admiração. Nós morávamos em um bairro da periferia que distava dezessete quilômetros do centro da cidade. Todos, ali, eram pobres. A capacidade para o trabalho e, principalmente, para aproveitar as oportunidades que surgiam, lhe propiciaram melhores condições financeiras do que a de seus vizinhos. Todos sabiam disso, mas ele tinha necessidade de que isso ficasse claro, não deixasse dúvidas. Naquela época, a bebida mais consumida era a pinga, por ser a mais barata. Ele tomava wisk, que era caro e considerado bebida de ricos. Acho que sentia mais prazer em que soubessem disso do que o propiciado pela bebida. Não perdia oportunidade de demonstrar superioridade.
Quando o Vitor começou a namorar com sua filha, ele deixou claro seu descontentamento. Como se considerava uma pessoa superior, pretendia que a filha se casasse com um rapaz importante, rico. Não perdia oportunidade de declarar seu descontentamento e chegou a dizer ao Vitor que não permitiria que ele transformasse sua filha em vendedora de bananas.
Ele não era o único, no bairro, que se diferenciava da maioria pelo poder aquisitivo, havia outros. A diferença é que os demais procuravam capitalizar, melhorando suas casas, investindo na compra de terrenos, em fim, aplicando seus ganhos no que possibilitasse acúmulo e crescimento do capital. A maioria deles estava mais empenhada em ganhar, aplicar e acumular capital; do que ostentá-lo.
Ele era adepto da tradição que defendia que a mulher deveria se dedicar ao lar, por isso deveria se empenhar em aprender as tarefas domésticas, a cuidar de filhos e do marido. Por isso, ao invés de incentivar a filha a prosseguir nos estudos, depois dos quatro anos básicos; matriculou-a em um curso de corte e costura, para que se transformasse numa professora desse ofício. Considerava que isso propiciaria à filha o grau mais elevado que uma mulher precisava atingir.
Para que a ostentação tivesse a máxima visibilidade, fazia questão que a mulher e os filhos se trajassem de maneira a demonstrar a diferença entre eles e os demais. Deixava claro que era daqueles que acreditam que o indivíduo vale pelo que tem e, não, pelo que é. Acredito que ele poderia Ter alcançado maior reconhecimento e admiração se tivesse investido mais em divulgar sua capacidade, ao invés de empenhar-se em ostentar socialmente.
Foi dos primeiros, no bairro, a comprar um carro. Era uma perua, com a qual desfilava pelo bairro, como um comandante romano em sua biga. Se não se empenhou para que o filho prosseguisse nos estudos, fez questão que ele conseguisse a habilitação de motorista, logo que atingiu a idade mínima. Trocou a perua por um fusca, carro da moda. Como acreditava que lugar de mulher é em casa, empenhava-se em investir para que o filho representasse sua ostentação. Comprava-lhe as melhores roupas, não deixava que lhe faltasse dinheiro e lhe permitia usar o carro para o que quisesse.
Não incentivou o filho a estudar e não permitia que trabalhasse enquanto não conseguisse algo digno dele. Isso, se não foi a causa principal, contribuiu enormemente para que o rapaz se transformasse numa espécie de plai boy, dedicado á diversão, sem nenhuma responsabilidade.
A maneira de ser do sogro afrontava totalmente os valores morais defendidos pelo Vitor, que acreditava que os ganhos devem ser capitalizados para solidificar um futuro seguro; que poupar é tão importante quanto ganhar. Ele acreditava que era um absurdo gastar tanto com coisas que considerava supérfluas, enquanto não investia um centavo na melhoria da casa em que morava, obrigando os filhos a dormir na sala, pois, além dela, só havia um quarto, cozinha e um banheiro, todos pequenos. Como considerava que o trabalho dignifica a pessoa, repudiava o comportamento do sogro ao permitir e, até, incentivar a ociosidade do filho. Ele e o sogro tinham personalidades diametralmente opostas.
Em casa, principalmente em relação à mulher e à filha, o sogro agia como um ditador implacável. Quanto ao namoro, não era diferente, determinando o que poderia e o que não poderia ser feito. Não permitia que o casal saísse sozinho e, se desobedecido, era implacável. Num Domingo, sem autorização dele, o casal foi até a padaria de um amigo que ficava em outro bairro. Ao saber disso, pegou o carro e foi até lá. Praticamente arrastou a filha para fora, obrigando-a a entrar no carro, sob o olhar de todos que estavam ali, principalmente, o namorado, o amigo e a esposa deste, de quem a filha era muito amiga. Comportou-se como se tivesse flagrado a filha em um prostíbulo e não em uma padaria, na companhia de amigos e na frente de grande número de pessoas. Foram incontáveis as humilhações que o sogro impingiu ao Vitor.
O Vitor e o sogro eram personalidades extremistas e opostas. Enquanto um se dedicava a ostentar para aparecer, o outro se refugiava no seu íntimo, evitando contatos sociais, totalmente dedicado ao trabalho, à poupança, ao acúmulo de capital, à família e ao namoro. Pessoas como o Vitor, que evitam o contato social, tem dificuldade de encontrar seus iguais; por isso vivem isolados. Suas relações humanas, fora da família, acontecem exclusivamente no trabalho ou em função dele.
Quando o Vitor e eu nos conhecemos, houve uma empatia positiva entre nós e começou uma grande amizade. Eu considerava o trabalho como uma necessidade inexorável, defendia a honestidade como indispensável, o gasto com supérfluos totalmente desnecessário. Isso combinava com os valores dele. Se eu achava que capitalizar era importante, não era extremista como ele. Enquanto ele fugia do convívio social, eu cultivava vários amigos, tinha grande apreço por eles, jogava futebol e dançava. Ele era introspectivo enquanto eu, mesmo tímido, era expansivo na presença de conhecidos. Pode-se dizer que eu era um meio termo entre ele e os outros.
Nossa amizade nos tornou confidentes e, principalmente aos sábados, depois que saíamos das casas das namoradas, nos encontrávamos e conversávamos durante horas, até a madrugada. Eu não entendia como ele suportava tantas humilhações provocadas pelo sogro, principalmente porque não identificava nenhuma qualidade na namorada que justificasse aquilo. Nessa época eu não conhecia a força da emoção, principalmente, da paixão; por isso, achava que ele deveria deixá-la e procurar outra que fosse melhor e que não lhe causasse tantos problemas. Ele, no entanto, nem considerava essa possibilidade, seguramente porque a emoção era muito mais significativa do que os males causados pelo relacionamento. Se limitava a criticar e reclamar.
Nosso relacionamento foi acentuando, em mim, os valores que combinavam com os dele, deslocando-me mais para o lado da responsabilidade, diminuindo alguns comportamentos irresponsáveis que tivera até ali. Não foi uma mudança radical, mas foi significativa. Ela atingiu o auge quando, incentivado por ele, entrei no negócio de vender bolos.
Se ele influenciou significativamente meu comportamento, o inverso não aconteceu. Ele continuou introvertido e fugindo de maiores contatos pessoais, principalmente por achar que a maioria das pessoas eram desprovidas de objetivos e irresponsáveis. Ele se negava a jogar futebol ou praticar qualquer atividade que implicasse em risco de lesões físicas, porque elas impediriam o trabalho, portanto, entre a diversão e o trabalho, este era prioritário e impeditivo daquela. Eu não concordava com isso e continuei me divertindo, sem neglicenciar o trabalho.
A influência dele provocando alterações em mim enquanto ele permanecia fiel a seus princípios, parece que se deve mais à minha flexibilidade do que à força da personalidade dele, enquanto sua imutabilidade se devia à rigidez e medo de mudanças, principalmente a impossibilidade de admitir que pudesse estar errado em alguma coisa.

Eu não podia recusar a proposta do Kocho para tentar recuperar a freguesia do interior. Ele havia me ajudado muito, quando mal me conhecia. Havia me escolhido, entre muitos, para me oferecer aquela freguesia, antes de saber que ela estava prejudicada, o que me possibilitaria aumentar razoavelmente meus ganhos, dispondo-se a receber da maneira que eu pudesse pagar por ela. Essa freguesia tinha um grande valor emocional, para ele, por tê-la atendido pessoalmente no início de suas atividades naquele ramo. Além disso, eu poderia pegar a estrada uma vez por semana e viajar, o que eu continuava adorando fazer. Outro atrativo era o desafio de tentar algo para o que, eu já pudera comprovar, não Tinha o menor talento. Topei a empreitada.
Se a mim faltava talento para vender, ao concorrente, que se aproveitara do período em que a freguesia ficara abandonada, sobrava. Com muito custo consegui recuperar alguns fregueses, uma minoria. A maioria foi irredutível no propósito de continuar se abastecendo com o concorrente. A situação era desanimadora. O lucro era insuficiente para pagar as despesas de viagem. O furgão, que trabalhara tantos anos como ambulância, sendo submetido a duras condições de operação, pode Ter-se sentido aliviado ao ser retirado de serviço e encostado em um pátio da prefeitura. Quando foi arrematado em um leilão público e acabou vindo parar na minha mão, sendo obrigado a voltar ao trabalho, deve Ter-se revoltado e não parava de apresentar problemas, como que pretendendo se vingar de mim. Numa das viagens, precisei consertar sete pneus. Os pneus estavam tão desgastados e lisos que um amigo dizia que, ao passar por cima de uma moeda, eles eram capazes de identificar se a face superior era cara ou coroa.
Noutra viagem, a correia do ventilador do motor, desfiou inteira. Passei mais de duas horas remendando-a com barbante, (o que amarrava os pacotes de bolo) para poder chegar a uma cidade pela qual passara há algum tempo. Na cidade não havia uma loja de auto-peças. Me informaram que o único posto de gasolina era minha única possibilidade de encontrar a correia. A única pessoa que estava no posto, me disse Ter um monte de correias e mangueiras, num barracão nos fundos, mas que não poderia verificar se havia alguma igual a que eu precisava por estar sozinho e não poder deixar a frente do posto. Me autorizou a entrar lá e procurar alguma que me servisse. Ao entrar no barracão tive uma surpresa: Quando o homem dissera que tinha um monte de correias e mangueiras, não imaginei que o monte fosse um monte mesmo, verdadeira montanha se espalhando pelo barracão. Depois de muito tempo encontrei uma correia que não era exatamente igual, mas que servia.
Não me lembro de uma única viagem em que o furgão não exigisse a intervenção dos meus conhecimentos de mecânica. Muitas delas, não bastava ser mecânico, era preciso ser um verdadeiro mágico.
No retorno de cada viagem, meu semblante devia mostrar o desgosto causado pelos acontecimentos. O Kocho, penalizado, me dizia que eu deveria desistir, que tentara, mas que acreditava não valer a pena tanto sacrifício. Eu, no entanto, encarava aquilo como uma questão de honra.
Eu saia de São Paulo por volta das onze horas da manhã da Quinta-feira e voltava no final da tarde de Sexta. Minha capacidade de suportar sacrifícios estava se esgotando. Quando estava a ponto de desistir, fui informado que a rodovia que estava sendo construída, mais ou menos paralela à que eu percorria, seria inaugurada em breve. Ela teria postos de gasolina com restaurantes, o que sinalizava a possibilidade de eu fornecer-lhes bolos, propiciando um aumento considerável na freguesia. Isso me deu novo alento, incendiou a esperança e me proporcionou força para continuar enfrentando as dificuldades. Essa foi a boa nova dessa viagem. A má, foi que a bomba de gasolina do furgão, que nunca havia dado problemas, chegara ao seu limite. A temperatura alta provocava que parasse de funcionar, obrigando-me a aplicar-lhe panos molhadas para esfriá-la. Não conseguia andar mais que vinte quilômetros entre uma parada e outra. Tive que fazer isso inúmeras vezes e só consegui chegar em São Paulo por volta da meia noite.
O Kocho, mais uma vez, agiu para me ajudar. Comprou um caminhãozinho com baú de alumínio como carroçaria, de um vendedor que comprara um mais novo. Me propôs trocar o furgão pelo caminhãozinho. Quando lhe disse que eu não tinha como pagar a diferença, ele disse que não seria necessário, que trocaria um pelo outro, simplesmente. Que o havia comprado para servir de reserva para os vendedores, quando precisassem, e que o meu furgão atenderia a esse objetivo. Na verdade ele queria me ajudar, mas tomava o cuidado para não ferir meu amor próprio.
A nova rodovia foi aberta ao tráfego e, já na primeira semana, eu passei a madrugada entre Quinta e Sexta-feira visitando os novos restaurantes nos novos postos de gasolina. Na verdade não eram restaurantes, eram mais bares, lanchonetes. Fiquei muito feliz por Ter sido o primeiro a chegar e conquistar essa nova freguesia.
Na semana seguinte fui surpreendido ao notar que os proprietários das lanchonetes não eram os mesmos da semana anterior. A concessionária dos postos de gasolina obrigava os concessionários a fornecer cafézinho grátis aos usuários. Estes repassaram essa responsabilidade aos concessionários das lanchonetes, que exigiram vantagens para arcar com esse custo. Quando do funcionamento efetivo, os donos dos postos perceberam que o rendimento das lanchonetes era muito maior que a estimativa. Como não tinham um contrato formal, os concessionários dos postos passaram a aceitar ofertas melhores, trocando os concessionários das lanchonetes. Isso se repetiu por várias semanas, obrigando-me a convencer cada novo proprietário a comprar meus bolos. Finalmente as forças se equilibraram, foram feitos contratos entre concessionários dos postos e arrendatários das lanchonetes e pude, finalmente, afirmar-me como fornecedor deles.
As coisas melhoraram sensivelmente. No entanto, o caminhãozinho demonstrou que tanto eu como o Kocho nos idludíramos ao considerar que ele resolveria o meu problema de transporte. A única vantagem era quanto ao espaço que era bem maior. No entanto, ele quebrava tanto quanto o furgão. Para chegar a uma cidadezinha que eu atendia, era necessário trafegar por uma estrada de terra. Ao trafegar por ela, numa das viagens, a trepidação fez com que o capô do motor se soltasse e saísse voando como um planador, obrigando-me a ir buscá-lo no meio de um pasto à beira da estrada. De outra vez, levei um amigo que desejava viajar e conhecer lugares novos. Na estrada, um pneu traseiro estourou. Segui viagem até que a câmara de ar saiu parcialmente do pneu, fazendo grande barulho ao bater no asfalto. Parei no acostamento e acabei de retirar a câmara do pneu, jogando-a fora. O amigo me perguntou se eu não iria trocar o pneu. Disse-lhe que não seria necessário porque a rodagem traseira era dupla e o outro pneu agüentaria a viagem. Ele me chamou de vagabundo, acreditando que eu estava evitando o trabalho de trocar o pneu. A verdade é que eu não tinha pneu de estepe, por isso não poderia executar a troca. Como com o furgão, não faltavam oportunidades para demonstrar minha capacidade como mecânico e mágico.
O Vitor comprara uma perua nova e vivia me dizendo que fôra a melhor coisa que fizera. Que o dinheiro que gastava consertando o carro velho, pagava as prestações da nova e sobrava algum. Me aconselhava a fazer o mesmo, mas eu relutava, com medo de não conseguir pagar as prestações.
Numa viagem, o caminhãozinho apresentou tantos problemas que, ao chegar a São Paulo, fui direto a uma loja especializada em caminhões daquele tipo e pedi que me fizessem uma oferta para comprá-lo. Sabendo quanto poderia receber por ele, pedi ao Vitor que me apresentasse na concessionária onde comprara a sua perua. Combinei que daria o que receberia pelo caminhãozinho, como entrada, e pagaria o restante em prestações mensais. Me informaram que não tinham peruas para pronta entrega e que precisaria esperar vinte dias para recebê-la. Meu pai se prontificou a me emprestar sua perua para que eu trabalhasse enquanto não saia a nova. Vendi o caminhãozinho, paguei a entrada da perua e fui trabalhando com a do meu pai até que a nova saísse.

Eu já namorava há uns seis ou sete anos com a mesma moça. Antes e, até nos primeiros tempos desse namoro, os encontros aconteciam nos bailes, dançávamos com outros pares e, na hora de ir embora, o namoro acontecia em algum lugar, na rua, o mais escondido possível de olhares curiosos. Eu sentia verdadeiro pavor de ser surpreendido por algum parente da namorada, em companhia dela. Não era medo de ser agredido física ou verbalmente. Era algo estranho, que não conseguia identificar a causa. Várias vezes, ao verificar que algum parente da menina se aproximava, eu desaparecia correndo. Era um verdadeiro pavor, sem causa identificável.
Não me lembro quando nem onde conheci essa última namorada. Depois de muito tempo de namoro e de ela insistir para que eu fosse à sua casa; acabei cedendo. Combinei de ir à noite, acreditando que o escuro oferecia uma proteção maior. Não sabia do que deveria me proteger e, como a única agressão que eu conhecia era a física, armei-me com um pedaço de pau que encontrei no caminho. Cheguei no portão da casa dela segurando aquele pau, do tamanho aproximado de um taco de baisebol, Não pretendia ser ostensivo, por isso, segurava o pau junto a minhas costas, escondendo-o. Não sei que desculpa dei a ela por chegar ao portão de sua casa carregando um pau. Hoje, acredito que a causa desse pavor era o compromisso. Naquela época, os parentes consideravam que namoro era um compromisso com o casamento. A moral era muito rígida e os familiares não aceitavam que a moça namorasse descompromissadamente, arriscando-se a perder a virgindade, “perdendo-se”, tornando-se incapacitada para o casamento. Por algum motivo, o compromisso com o casamento me apavorava.
Fui muito bem recebido pela família da namorada e, a partir dali, passamos a namorar em casa. Não me lembro de Ter sido pressionado a casar, mas eu considerava isso como uma conseqüência natural do namoro. No entanto, só pretendia me casar quando tivesse o mínimo de condições financeiras para isso. Embora lutasse e me empenhasse para progredir economicamente, o progresso teimava em não acontecer. Não me lembro porque, mas no ano em que comprei a perua nova, antes de fazê-lo, prometi que o casamento aconteceria naquele ano.

Peguei a perua nova e comecei a trabalhar com ela. Foi como sair do inferno e entrar com todas as pompas no paraíso. Nada de mãos e roupas sujas de graxa, nem de ferimentos ao tentar consertos com ferramentas e peças improvisadas, nem de ficar pedindo socorro a outros motoristas. Era só dirigir e vender.
O Vitor tinha razão: economizando o que gastava para consertar os carros velhos, pagava as prestações da perua e ainda sobrava dinheiro. O desgaste físico e emocional diminuíram drasticamente e o progresso financeiro começou a aparecer. Acelerei o pagamento das dívidas, que eram muitas e comecei a ver a luz no fim do túnel.
O Vitor descobriu a fábrica de um produto que vinha fazendo sucesso no mercado. Eram barrinhas de chocolate com cereais ou amendoim. Passamos a revender esse produto também.
Fizemos amizade com o dono da fábrica e com alguns vendedores de lá e, depois de algum tempo, um deles me ofereceu sua freguesia, que afirmava propiciar boa rentabilidade. Era a possibilidade de deixar de acordar de madrugada, me livrar da correria que era atender os fregueses do interior e, principalmente, de obter ganhos maiores.
Propus a um amigo, o Tatu, que trabalhava como motorista em uma fábrica e que desejava trabalhar por conta própria, comprar minha freguesia. Ele alegou que não tinha nenhum dinheiro para dar de entrada. Disse-lhe que não seria necessário, pois eu tinha o suficiente par dar entrada na freguesia que compraria. Ele demonstrou receio em não conseguir pagar as prestações. Disse-lhe que não teria um compromisso rígido, que poderia pagar com o lucro da freguesia. Ele argumentou que não tinha como comprar uma perua, uma vez que eu continuaria com a minha. Disse-lhe que, nisso, eu não teria como ajudá-lo. O Vitor, que participava da conversa, argumentou que, se quisesse realmente trabalhar por conta própria, teria que fazer por onde. Que dificilmente encontraria uma oportunidade como aquela, portanto, valeria a pena esforçar-se para conseguir um empréstimo para dar entrada em uma perua, que, seguramente, ele poderia pagar.
O Tatu conversou com a mãe, viúva, que trabalhava em uma fábrica de refrigerantes e cerveja e ela se prontificou a conseguir o dinheiro para ele dar entrada em uma perua. Ele me comunicou que compraria a freguesia, eu acertei o negócio com a outra, pedindo um prazo para assumi-la, uma vez que teria que mostrar a minha para o Tatu e treiná-lo.
Ele era muito inseguro e se apavorava com as mínimas dificuldades que se apresentasse. Gastei mais tempo do que seria normal para alguém aprender o trabalho e conhecer a freguesia. Numa manhã muito fria, ele vestia um casaco, daqueles que vão até os pés. Por volta das seis horas da manhã, quando boa parte da freguesia já havia sido atendida, ao sair de um bar, ele enfiava as mãos nos bolsos da calça, do casaco e da camisa, procurando alguma coisa. Quando lhe perguntei o que procurava, ele disse que perdera o dinheiro que já havia recebido. Embora o valor fosse pequeno, pois passávamos entregando os bolos e só recebíamos na volta, ele dava a impressão que havia perdido a própria vida, tal o desespero que demonstrava. Outra particularidade que me chamava a atenção, era que, num cruzamento, quando eu lhe indicava entrar a esquerda, ele entrava a direita e vice-versa.
Quando senti que o Tatu já tinha condições de trabalhar sozinho, fui conhecer a minha nova freguesia. O rapaz me apresentou os fregueses e passei a trabalhar sozinho. Já de início, percebi que a freguesia não era tão boa como o rapaz alegara, no entanto, não chegava a ser ruim.
A esperança de ganhar mais, o desejo de abandonar a rotina anterior e a falta de experiência, propiciaram que a ansiedade provocasse o fechamento do negócio sem a devida análise da realidade. O produto era bem consumido porque era novidade. Passada a fase inicial, o consumo caia a olhos vistos e, em pouco tempo, caiu tanto que, a quantidade vendida não cobria as despesas.
Faltavam poucos meses para o final do ano, eu tinha que pagar as prestações da perua, as despesas normais e providenciar os móveis para o casamento. As vendas na freguesia caiam abruptamente e comecei a usar o dinheiro que o Tatu me dava como pagamento pela freguesia que lhe vendera para saldar meus compromissos. Era evidente que aquela situação era insustentável. Paguei duas prestações da freguesia que comprara, mas a partir da terceira, sabendo que me ludibriara, o rapaz nem mais apareceu para receber.
O negócio redundara num fracasso total. Eu não poderia desfazer o negócio com o Tatu, embora tivesse sido aconselhado por várias pessoas a faze-lo. Afinal, ele não tinha culpa do meu erro. Não bastasse o prejuízo financeiro, o amor próprio ferido por Ter sido enganado, ainda tinha que suportar as críticas por não Ter tomado a freguesia que vendera ao Tatu, de volta. Alegavam que ele não teria nada a perder, bastando que eu lhe devolvesse o pouco que me havia pago e, na pior das hipóteses comprando-lhe a perua, que eu poderia vender para me livrar desse encargo. Essas pessoas não compreendiam que havia um compromisso moral, que um não pode pagar pelo erro de outro e que, não tinha sentido que ele tivesse que voltar a procurar emprego depois de eu tê-lo incentivado a entrar naquele negócio.
Soube que uma freguesia de bolos, de uma outra fábrica, estava a venda. Novamente o Kocho veio em meu socorro. Me ofereceu um empréstimo para que pudesse comprar aquela freguesia. Comprei-a e voltei a estar sem capital e com dívidas.
Naquelas circunstâncias, não era possível cumprir o que prometera: casar naquele ano. Não teria como comprar móveis, pagar aluguel e arcar com as despesas de uma casa. Morar em casa própria, que era minha intenção, então, nem pensar. Isso se mostrava impossível naquele ano e muito improvável nos próximos. Quando declarei que o casamento teria que esperar, constrangido por não cumprir uma promessa, mas aliviado por adiar tal compromisso; o protesto foi geral. Alegaram que os móveis poderiam ser comprados a prazo, em prestações que qualquer um poderia pagar; que as despesas de um casal eram pequenas e não criariam maiores problemas. O maior empecilho era o custo do aluguel da casa. Meus pais se encarregaram de eliminar esse obstáculo, oferecendo o quarto, cozinha e banheiro que alugavam, mas que estava desocupado. Há algum tempo meu pai havia construído um cômodo e um banheirinho nos fundos da lateral do terreno, junto à casa e transformado um dos quartos desta em cozinha, fechando o acesso desta à casa. Esse apêndice se transformou em uma moradia independente, que tinha acesso pela lateral do terreno, separada da entrada para a casa. Um casal, com dois filhos pequenos, havia morado ali por bastante tempo, pagando aluguel, mas havia se mudado há algum tempo e a casinha continuava vazia.
Os argumentos que justificavam o não cumprimento do compromisso enfraqueceram e a questão moral de tê-lo assumido se agigantou, obrigando-me a honrá-lo. Adiei o máximo possível e marquei o casamento para o dia trinta e um de dezembro, o último do ano.
No dia quatro de dezembro fui com minha noiva comprar os móveis. Me lembro que foi nesse dia porque o vendedor da loja que oferecia as melhores condições, quando apresentei meus documentos para o crediário, me parabenizou pelo meu aniversário. Compramos o mínimo necessário: um fogão, armário, mesa com cadeiras para a cozinha; uma cama com colchão e um guarda-roupas para o quarto.
Fui surpreendido pela quantidade de convidados que compareceu à cerimônia na igreja. Esperava que fossem poucos devido à data: véspera de ano novo. No entanto, ali estava uma pequena multidão. Não haveria festa, por isso, ao receber os cumprimentos, eu me despedia de todos, desejando feliz ano novo.
O Vitor, que se casara alguns meses antes, me emprestou um automóvel, que já possuía, para que fossemos à Praia Grande, onde um primo meu tinha uma casa e nos emprestara para passarmos os dois dias de lua de mel.
Depois da cerimônia, a noiva e eu, como combinado, fomos levados para a casa dos pais dela, onde trocaríamos de roupa e partiríamos para a lua de mel. No caminho, percebi que uma comitiva de carros nos acompanhava. A casa de meus sogros ficou cheia de gente. Eram parentes e amigos que, alegando não acreditar que não houvesse festa, foram até lá. O pouco que havia para comemorar a passagem do ano, na família, foi dividido entre todos e aquilo virou uma verdadeira festa. Esse episódio me mostrou, pela primeira vez, o quanto eu era querido por várias pessoas. Foi emocionante!
O Vitor nos emprestara uma máquina fotográfica para que registrássemos a estada na praia. Eu tirava fotografias dela e ela de mim. Pretendendo ser fotografados juntos, pedimos a alguém que fizesse isso. A pessoa tirou duas fotos. A revelação mostrou que, não sei se propositadamente ou acidentalmente, em cada foto só aparecia um de nós.
No dia três de janeiro de mil novecentos e setenta e dois, enfrentei o meu primeiro dia de trabalho como homem casado. Em outubro nasceu a Cynthia, a primeira filha. Naquela época os assaltos a carros de entrega eram freqüentes, não passava um dia em que não se ouvisse falar de uma porção deles. Os alvos mais visados eram os carros que entregavam cigarros, mas qualquer um que tivesse o azar de estar no caminho dos assaltantes, se tornava vítima. Eu acreditava que estando armado poderia me defender. Comprei uma pistola bereta, calíbre 6.35. Era pequena e cabia na palma da mão. Por ser muito pequena, era difícil armá-la. Para que estivesse pronta na hora da necessidade, eu deixava uma bala na agulha. Para iniciar a disparar, bastava puxar o cão e acionar o gatilho.
A seqüência de tiros era automática, só necessitando ir apertando o gatilho. Ao chegar em casa à noite, eu tirava a pistola da cintura, tirava o pente de balas e a que estava na agulha e guardava tudo na gaveta da mesinha de cabeceira. Pela manhã, fazia o procedimento inverso.
Numa Segunda-feira, depois do asseio matinal e de tomar café, apanhei a pistola, coloquei o pente de balas e introduzi a da agulha. Só ai percebi que o cão estava puxado. Ao invés de tirar a bala da agulha para, depois, desarmar o cão; segurei a arma com a mão esquerda, segurei o cão com o polegar da mão direita e acionei o gatilho para levá-lo até o descanso. O cão escapou do dedo que o segurava e, ao invés de deslizar para o descanso, disparou a bala que estava na agulha. A junção entre o dedo indicador da mão esquerda com a mão, estava na rota da bala. O barulho do tiro acordou todo mundo. Enrolei um pano na mão ferida e meu irmão me levou até um pronto socorro, onde constataram que a bala havia arrebentado a junção do dedo com a mão. Depois de medicado fui liberado com a mão imobilizada. Ao voltar para casa, fui verificar onde a bala havia se alojado. Tremi ao verificar que ela estava encravada em uma gaveta a pequena distância de onde minha filha dormia.
Não tendo ninguém para fazer a freguesia em meu lugar, tive que trabalhar, mesmo com a mão esquerda meio inútil. Não bastasse isso, começou a crescer carne esponjosa no ferimento, que teve que ser queimada com nitrato de prata. Isso doeu muito!

Consegui quitar as dívidas e resolvi alugar uma casa, para Ter mais liberdade. Para conseguir isso, foi preciso muito trabalho e tempo. O Vitor e o Tatu progrediam a olhos vistos, enquanto eu me arrastava em busca do progresso. Eles tinham talento para o comércio e corriam atrás de todo e qualquer centavo, enquanto me faltava o talento e a necessária ambição. Percebendo isso, considerei que deveria tentar algo diferente, que propiciasse o que tentara, mas não conseguira até ali. Ocorreu-me que poderia estudar, conseguir uma carreira que possibilitasse um bom salário. Lembrei-me que no caminho para casa, passava por uma escola que oferecia cursos supletivos. Todos esses pensamentos me ocorreram em um único dia e, à noite, entrei naquela escola, me matriculei e comecei a assistir as aulas.
A escola funcionava em uma casa e só tinha uma turma à noite. Quando a proprietária me encaminhou à sala de aula, uma professora de matemática ensinava teoria dos conjuntos aos alunos. Eu nunca tinha visto aquilo e me senti como um peixe que fora atirado no deserto. No intervalo para o café, acompanhei os alunos até uma padaria nas proximidades. Fiquei ouvindo as conversas deles e notei que a maioria já freqüentava aquela escola há mais de um ano. Alguns já haviam prestado os exames semestrais promovidos pelo estado, e ainda não haviam conseguido eliminar todas as matérias. Foi um balde de água fria nas minhas pretensões. Se aquele pessoal, que aparentava Ter um bom conhecimento, tinha dificuldade para conseguir eliminar todas as matérias e conseguir a certificação; imagine eu, um quase analfabeto!
Até dormir naquela noite e por todo o dia seguinte, considerei se deveria continuar ou desistir de tentar uma carreira. Verifiquei que, até ali, o pouco conseguido havia custado muito trabalho e sacrifício. Que se não tentasse algo diferente, as chances de sucesso seriam mínimas. Que a diferença estava no conhecimento adquirido, que os que conhecera na escola, tinham mais conhecimento que eu, no entanto, nada indicava que eu fosse mais burro que eles. Se era para se sacrificar, que fosse por um objetivo viável. Decidi enfrentar o desafio.
Logo percebi que aprender o que os professores ensinavam era bem mais fácil do que eu imaginara. Que a maioria dos alunos tinha maiores dificuldades que eu para assimilar as matérias. Que no ritmo e, que o curso progredia, demoraria muito tempo para conseguir meu objetivo.
Decidi acelerar os estudos, pedi livros emprestados e, como não tivesse tempo para estudar, lendo; comprei um gravador portátil e, à noite, depois das aulas, lia os livros em voz alta, gravando. Durante o dia, ouvia a gravação. O estudo virou uma espécie de obsessão.
No meio do ano, quando abriram as inscrições para os exames supletivos, me inscrevi sem esperança de aprovação, só para conhecer o sistema. Havia um exame as oito horas da manhã e outro às treze horas, em dias consecutivos até a última matéria. A escola em que prestaria os exames era próxima de onde eu morava. Saia de madrugada e atendia alguns fregueses até a hora de voltar para o exame da manhã. Depois dele, corria para atender mais alguns fregueses e voltava para o exame da tarde. Terminado esse, voltava para atender o restante da freguesia e carregar para o dia seguinte.
No final do dia, as rádios divulgavam os gabaritos das provas. No primeiro dia comparei os meus gabaritos com os das provas e, surpreso, verifiquei que havia sido aprovado nas duas. No dia seguinte repeti a rotina do dia anterior e, no final da tarde, verifiquei que fora aprovado naquelas também. Consegui ser aprovado em todas as matérias. Fiquei radiante, mas tinha consciência de que a sorte me dera uma grande ajuda. Sabia que tinha muito pouco conhecimento e que não deveria me enganar com os resultados obtidos.
Quando voltei à escola e disse que havia sido aprovado em todas as matérias, me consideraram um gênio e fui muito festejado. Perguntei à diretora se haveria turma para o segundo grau e ela disse que esperava montar uma em pouco tempo. Com meus estudos como auto-didata eu havia ultrapassado o ponto das matérias que os professores estavam ministrando na escola. Por isso, continuei como auto-didata, esperando que a nova turma fosse iniciada.
Depois de quase dois meses, a proprietária da escola me comunicou que não conseguira alunos suficientes e que, por isso, não formaria a nova turma. Procurei outra escola e encontrei uma não muito longe dali. Passei a freqüentá-la, sem deixar de estudar por conta própria. Nos exames do final do ano, me inscrevi com a mesma intenção dos anteriores: para verificar o nível de dificuldade. Dessa vez, não era só isso; no fundo, no fundo, eu tinha esperança de eliminar algumas matérias. Poucas, duas ou três, mas tinha esperança de conseguir isso.
Segui a mesma rotina dos exames do meio do ano, alternando trabalho com os exames. As comparações dos meus gabaritos com os dos exames, foram me surpreendendo. Só não consegui aprovação em matemática. Eliminei todas as outras.
Fiquei felicíssimo, orgulhoso, com a auto-estima atingindo as alturas. Após a euforia e o deslumbramento iniciais, me senti confuso, perdido mesmo. Havia sido tudo muito rápido, demasiadamente rápido! Não tinha nem idéia de como prosseguir. Sentia que a escola que cursara, estava aquém de minhas necessidades. Era mais um sentimento que resultado de racionalidade lógica. No entanto, eu percebia que os alunos daquela escola não tinham o mesmo empenho que eu, por isso a escola não poderia acelerar o rítmo. Não sabia quanto conhecimento era necessário para prosseguir, mas considerava que o meu era insuficiente. Porém, onde conseguir o necessário?
Não sabia nem que carreira pretendia seguir. Imaginara que gastaria mais de dois anos para conseguir o que atingira em menos de um. Tinha ouvido falar, muito superficialmente, de que uma faculdade do sul de Minas Gerais, oferecia a oportunidade de assistir aulas nos finais de semana, dispensando os alunos das aulas semanais, para o curso de direito. Embora essa informação fosse muito superficial, era a única que eu tinha em relação aos cursos universitários.
Não me lembro como, mas fiquei sabendo da existência de cursinhos preparatórios para o vestibular. Procurei na lista telefônica e encontrei um. Liguei pra lá e, quem me atendeu, quando perguntei se as matrículas estavam abertas, me respondeu que sim, mas que só ofereciam cursos para mapofei. Levei um susto e desliguei o telefone. Eu não tinha a menor idéia do que fosse o tal de mapofei. Considerando que havia sido um idiota, voltei a ligar e perguntei o que era o mapofei. A pessoa me informou que era a uma entidade que preparava exames para várias faculdades nas áreas de exatas. Perguntei que áreas eram essas e me informaram que compreendia os cursos de ciências exatas, como: engenharia, física, matemática, etc. Agradeci as informações e desliguei. Não era o que eu precisava. Não considerava possível, pra mim, estudar engenharia. Me parecia que isso estava muito além de minha capacidade.
Alguns dias depois, ainda confuso e sem saber o que fazer; parado num cruzamento, a espera que o sinal abrisse, me entregaram um folheto que anunciava uma prova para bolsas de estudo para cursinho preparatório para vestibular. Seria no próximo Domingo.
No Domingo pela manhã, uma hora antes do horário marcado para a prova, lá estava eu. Um rapaz me abordou para confirmar se ali seria o local da prova. Me perguntou que área pretendia seguir e lhe confessei minha ignorância a respeito. Me informou que além do MAPOFEI, havia o CESCEM para ás áreas biomédicas e o CESCEA para a área de humanas. Que se eu pretendia fazer direito, deveria optar pelo CESCEA.
Ele era muito falador e me disse que pretendia fazer engenharia. Que como precisava trabalhar para sobreviver, optara por fazer engenharia operacional, que duas faculdades de Mogi das Cruzes, próximo da capital, ofereciam, no período noturno. Que o acesso a elas era fácil, por trem.
Quando fui conferir o resultado da prova, verifiquei que conseguira cinqüenta por cento de desconto na mensalidade. Fiz a matrícula e recomecei os estudos.
Agora, ao contrário do que acontecera nos cursos anteriores, tive grande dificuldade para acompanhar o rítmo das aulas. A quantidade de matéria era muito grande e o meu pouco conhecimento anterior, me dificultava tremendamente o acompanhamento. Com o máximo de dedicação e esforço, fiz o possível para absorver o máximo possível.
O físico logo mostrou que não agüentava a carga a que estava sendo submetido. Num começo de noite, ao me dirigir para o cursinho, parei num cruzamento a espera de que o sinal abrisse. Me assustei com o ruído de buzinas. Nesse curto espaço de tempo, eu havia dormido ao volante da perua. Outro sinal do meu estado físico, era a dificuldade de lembrar onde estacionara a perua. Várias vezes andei pelas redondezas, procurando-a por não me lembrar de onde a estacionara. Como não podia pagar estacionamento, deixava a perua na rua, onde houvesse vaga. Como a cada dia, a vaga aparecia em lugares diferentes, isso dificultava a memória em lembrar de onde a deixara.
Percebi que seria impossível continuar naquele rítmo por um ano inteiro. Decidi usar o horário das aulas de inglês para dormir. Eu não sabia nada dessa língua e tinha grande dificuldade de assimilar o mínimo das aulas. Tinha que sacrificar alguma coisa; optei pelo inglês.
Durante o tempo em que freqüentei o cursinho, fui conhecendo o sistema universitário e as opções possíveis. Percebi que os alunos que trabalhavam e tinham outros compromissos, eram mais aplicados aos estudos e progrediam melhor que os que podiam se dedicar integralmente aos estudos. Admirava um rapaz que trabalhava como pedreiro, com o pai e que se destacava entre os alunos de melhor aproveitamento. Ele me ensinou muito, tanto explicando o que eu tinha dificuldade de entender, como incentivando-me com seu exemplo.
Outra descoberta, que me surpreendeu, foi saber da existência da perseguição a ativistas políticos contrários ao regime ditatorial. O sumiço, prisão e morte de indivíduos que fossem considerados uma ameaça ao sistema político. Antes de conviver naquele ambiente, eu não tinha a menor idéia de que isso pudesse estar acontecendo. Com a censura dos meios de comunicação, o grande público só ficava sabendo o que interessava aos governantes.
Quando chegou a época da inscrição para os vestibulares, inscrevi-me para o MAPOFEI e para a faculdade de Mogi das Cruzes. Os exames do MAPOFEI aconteceram primeiro e me surpreendi ao verificar que havia conseguido classificação para uma faculdade pública de engenharia civil na cidade de Barretos. No entanto, as obrigações com o trabalho, impediam que eu pudesse freqüentar esse curso. A classificação no MAPOFEI, indicou que eu estava no grupo dos melhor preparados, por isso fui para o vestibular de Mogi com a certeza da classificação, principalmente porque a concorrência lá era bem menor.
Quando saiu o resultado, ao verificar as listas de aprovados, não acreditava em meus olhos. Percorri a lista do começo ao fim, do fim ao começo, várias vezes e não encontrei meu nome. Tinha considerado o exame muito fácil e respondera a maioria das questões com grande segurança. Não podia acreditar no que estava acontecendo!
Foi uma das maiores decepções que tive na vida, principalmente, quando comparado com as vitórias conseguidas até ali. Foi um verdadeiro balde de água gelada.
Como diz o ditado popular: “O que não tem remédio, remediado está”. Depois de vários dias de profundo abatimento, analisando a situação, verifiquei que estava bem preparado: a classificação no MAPOFEI, demonstrava isso. Não tivera problema de nervosismo pois, ao verificar as questões, as considerara fáceis. Portanto, ou houvera um problema com a minha prova, ou eu cometera algum erro ao passar as respostas para o cartão, que deveria ser perfurado ou havia zerado em inglês, no que eu era totalmente analfabeto. Zerar em alguma matéria, desclassificava o candidato.
Verdades ou não, as considerações acima me restituíram a auto-estima. Se por um lado esse fracasso provocou enorme frustração, por outro, foi muito útil. A seqüência de sucessos e a rapidez com que aconteceram; provocaram as pessoas a me considerar uma espécie de gênio e, pior: eu começava a acreditar nisso. O fracasso me mostrara a realidade: que além de esforço e empenho, eu contara com boa dose de sorte. Portanto, não havia genialidade nenhuma e, se pretendia conquistas, tinha que continuar lutando, contando com a sorte, sem desconsiderar a adversidade.

Nessa época, o Vitor descobrira que uma tradicional fábrica de biscoitos, pretendia montar um sistema de pronta entrega e estava selecionando vendedores autônomos para isso. Eles ofereceriam região fechada e financiariam o veículo para o trabalho.
Fomos, o Vitor, o Tatu, seu irmão e eu; conversar com o responsável pelo projeto. Ele nos garantiu que o projeto seria implantado e que nós, devido à experiência nesse ramo de negócio, tínhamos todas as condições de participar dele.
Depois de discutir e refletir, analisando os prós e contras, consideramos que as perspectivas eram muito boas. Vendemos as freguesias que tínhamos e nos dedicamos ao novo negócio.
Era uma empresa grande e a burocracia dificultava a agilidade na implantação do projeto. Foram idas e vindas infindáveis, até que o Vitor fosse liberado para trabalhar. Enquanto não liberavam o meu setor, fui ajudar o Vitor, para sentir como o negócio se desenvolveria.
Logo percebemos que seria muito difícil concorrer com a empresa sólida e tradicional que dominava esse mercado. Havíamos considerado essa dificuldade, mas não consideráramos que a dificuldade seria tão grande. Por outro lado, a empresa que representávamos, ao invés de propiciar facilidades e agilidade, fazia o contrário: criava problemas e dificuldades. Consideramos que seria impossível trabalhar naquelas condições e resolvemos desistir do negócio.

Descobrimos uma fábrica nova de biscoitos populares, que lançara uma embalagem econômica. O Vitor, que era o mais talentoso para o comércio, considerou que o preço e a novidade da embalagem, possibilitariam que montássemos freguesias com esse produto. Havíamos vendido as freguesias, mas mantivéramos as peruas. Decidimos formar duas duplas para formar as freguesias que, depois, seriam divididas. O Vitor ficou com o Tatu e eu com o irmão dele.
Nessa época, aconteceu o vestibular para a faculdade de tecnologia de São Paulo, que oferecia cursos para formação de tecnólogos. Esse tipo de profissional, tradicional na europa, havia sido instituído no Brasil há três ou quatro anos. A FATEC oferecia cursos nas áreas de engenharia e informática. Prestei o vestibular para a área de engenharia civil, na modalidade edifícios. Como a faculdade era pública, era gratuita, o que, diga-se de passagem, era uma grande vantagem. Fui aprovado, fiz a matrícula e comecei a freqüentá-la.
A formação das duplas para a formação das freguesias de biscoitos, resultou no que qualquer idiota poderia prever: o talento comercial do Vitor e do Tatu lhes propiciaram sucesso rápido; enquanto a incapacidade minha e do Carlinhos, resultou em um fracasso lamentável. Depois de nos esforçar e envidar esforços, tivemos que aceitar que não tínhamos competência para o negócio e resolvemos desistir.
Fui trabalhar com meu pai, que era empreiteiro de obras, fazendo limpeza final, raspando assoalhos e aplicando resinas em pisos de madeira. Era uma época em que estavam sendo construídos muitos prédios em São Paulo e havia bastante serviço. No entanto, o ganho não era proporcional ao trabalho. Ganhava o suficiente para sobreviver mas continuava sem televisão, nem rádio, por não poder comprá-los.
Haviam nascido a Lilian e a Célia e não era fácil arcar com as despesas de uma família com três filhas. As dificuldades eram um incentivo aos estudos, ao que me dedicava de corpo e alma. O curso era bastante puxado e exigia muito dos alunos. A esmagadora maioria deles vivia acumulando dependências em várias matérias.
Logo no início, no primeiro trabalho que nos pediram para fazer em grupo, me associei a quatro colegas e continuamos unidos até o final. Não havia descanso, nos finais de semana nos reuníamos na casa de um dos componentes, na maioria das vezes na minha, para estudar e fazer trabalhos. O esforço valeu a pena, pois conseguimos nos formar no tempo mínimo.
Certa vez, um dos componentes do grupo, disse que pretendia comprar uma televisão nova e me perguntou, como que temendo me ofender, se eu aceitaria a que ele estava usando. Fiquei muito feliz e agradecido, afinal, a mulher e, principalmente, as filhas poderiam desfrutar o que a grande maioria já podia: assistir televisão em casa.
O trabalho em obras me propiciou boa experiência e contato, na prática, com o que aprendia na teoria. Pude observar uma grande discrepância entre a teoria e a prática e considerei que, quando exercesse cargos de comando, resolveria a maioria deles. Era a ilusão prepotente que considerava que o homem é todo poderoso e que, os erros e não observância das teorias, se devia à falta de vontade, a negligência e ao descaso.
No último ano do curso, verifiquei que havia bastante trabalho, mas a concorrência obrigava a preços muito baixos, resultando em lucratividade muito pequena. Conclui que escolhendo trabalhos mais rentáveis, mesmo com quantidade reduzida, se obteria o mesmo resultado financeiro. Reduzindo a quantidade de trabalho, meu pai poderia administrá-lo sozinho, me tornando dispensável. Expus essa reflexão a meu pai e decidi procurar estágio para ingressar no mercado de trabalho na esfera de minha formação.
Por indicação de um cunhado, consegui estágio em uma empresa de projetos e consultoria. A denominação era pomposa, mas a realidade era desalentadora. No primeiro dia que me apresentei para o trabalho, a concessionária de água estava cortando o fornecimento por falta de pagamento. A empresa passava por sérios problemas financeiros. Estava projetando a pavimentação de algumas vias da cidade e respectivas galerias para drenagem. No entanto, não tinha os laboratórios exigidos em contrato e se valia de artimanhas para tercerizar esse trabalho e fazer acreditar que o fazia por seus próprios meios.
O engenheiro encarregado desses projetos, recebeu uma proposta melhor e se demitiu. Como não tinham condições de contratar outro, me encarregaram desse trabalho. O problema era que minha formação era específica para edifícios e eu não tinha conhecimento de pavimentação e drenagem. No entanto, diante da situação, decidi aceitar o desafio.
Coube a mim fazer o contato com o departamento técnico da prefeitura que fiscalizava os projetos. O chefe daquele setor, um engenheiro muito competente e incorruptível, logo percebeu minha incapacidade para aquele trabalho. No entanto, conhecedor do mar de falcatruas que envolviam o relacionamento entre estado e empresas que trabalhavam para ele; não concordando com aquilo, mas sabendo-se impotente para coibir aquele estado de coisas; simpatizou com minha honestidade e se propôs a me ajudar. Aprendi muito com ele e tive a satisfação de verificar que há gente digna até nos lugares mais corrompidos.
Com esforço, dedicação e a ajuda desse velho engenheiro, consegui levar a cabo aquela tarefa. Antes mesmo de terminá-la, me incumbiram de outra que não poderia esperar. Haviam pego a fiscalização da reforma de dez escolas estaduais. Por ser uma empresa de consultoria e projetos, não tinham a menor experiência na execução de obras, principalmente quando se tratava de reformas.
Para esse trabalho eu estava melhor preparado, além de ser da área de minha formação, contava com a experiência adquirida enquanto trabalhei com meu pai. Se não tinha grande capacidade, era o mais competente entre os componentes da empresa. Porém eu não poderia ser o responsável técnico e conseguiram que um projetista de estruturas de concreto que prestava serviço como autônomo para a empresa, assumisse a responsabilidade.
Ele, como os outros, não entendia nada de obras, mas não quis aceitar a responsabilidade sem verificar o que estava acontecendo. Me acompanhou em várias visitas, confirmou sua incapacidade para aquele trabalho e se convenceu de que eu tinha competência suficiente para realiza-lo. Esse pequeno contato nos tornou amigos e propiciou respeito mútuo. Durante muitos anos nos socorremos e ajudamos, quando necessário.
Pela primeira vez tive contato com a corrupção. Recebi, e rechacei com veemência, propostas para liberar serviços não executados, com qualidade aquém da necessária, em quantidades maiores que as reais, etc. Me senti um verdadeiro estranho no ninho, não era admissível que alguém envolvido naquele tipo de trabalho, não participasse do que era prática do cotidiano.
O que me fazia repudiar suborno, era uma questão de valores morais muito fortes. Na situação financeira que eu vivia, andando de ônibus e comendo sanduiches de pão com ovo frito, por não poder Ter algo melhor; a tentação de ganhar um dinheiro fácil poderia ser irresistível. Para reforçar a tentação, havia a insensibilidade da empresa que me pagava um salário miserável e nem permitia que eu usasse o carro, que utilizava para percorrer as obras, para ir e voltar para casa, tendo que deixá-lo guardado no escritório. Eram duas conduções para ir e duas para voltar, o que consumia quatro horas diárias. Um dos fatores que acentuou a respeitabilidade entre o engenheiro que assumia a responsabilidade pelo trabalho que eu fazia e eu, foi o fato de sermos incorruptíveis. Ele também foi sondado para facilitar as coisas para as empreiteiras e negou tão veementemente quanto eu. É incrível como, conhecidos nossos que criticam duramente a corrupção, nos critiquem por não nos beneficiarmos dela, considerando-nos otários por rejeitar o dinheiro fácil que nos era oferecido. Durante a vida, foram inúmeras as vezes que fui criticado por não aceitar as vantagens oferecidas pela corrupção.

Um pintor, amigo de meu pai, sabendo que uma construtora para quem trabalhava contrataria um engenheiro, me indicou. Ao ser entrevistado, o dono da construtora disse desconhecer meu título e questionou sua validade. Expliquei-lhe que minha formação era de um engenheiro civil, especializado em edifícios. Que a diferença com o engenheiro tradicional, era que ele tem formação em outras áreas, como: portos, aeroportos, rodovias, saneamento, etc.
Combinamos que eu passaria por uma experiência de três meses. Nesse interim aconteceria a conclusão do curso e a formatura. Se aprovado, seria efetivado e o salário que na fase experimental seria de seis mil cruzeiros, passaria para nove mil. O proprietário que me entrevistou era arquiteto e o sócio era engenheiro. Este era da minha idade e aquele uns cinco anos mais velho. Era uma construtora pequena, mas bem estruturada.
Fora um progresso significativo. Começaria ganhando quatro vezes mais e, se aprovado na experiência, teria um aumento de cinqüenta por cento. Para quem vivera tão apertado, até ali, aquilo representava um mergulho no paraíso.
A construtora terminava um prédio do Banco do Brasil, num bairro da zona norte da cidade; finalizava uma casa num club de campo, às margens da represa Guarapiranga; inciava as obras de um supermercado no extremo habitado da zona sul da cidade e o transmissor que dobraria a potência de uma importante emissora de rádio da capital, também na zona sul. Estavam para ser iniciadas as obras de duas agências do Banco do Brasil em Santa Rita do Sapucai e São Lourenço, no sul de Minas Gerais.
O Edgar, que era o arquiteto, disse que ele assumiria as obras do sul de Minas Gerais e que o Duda, sócio dele, e eu, nos encarregaríamos das outras.
Me dediquei de corpo e alma ao trabalho, ansioso para colocar em prática o que imaginara poder realizar, corrigir, inovar. Se por um lado acreditava que poderia fazer uma verdadeira revolução no que existia; tinha consciência de que tinha muito a aprender e me empenhava para absorver o máximo possível.
As obras do sul de Minas foram iniciadas e logo ficou claro que o Edgar não poderia assisti-las convenientemente, por causa dos compromissos que tinha como administrador da empresa. Durante o período de experiência, tive que viajar no lugar dele, por estar impossibilitado de faze-lo.
Quando expirou o tempo da experiência, fui conversar com o Edgar para saber se seria efetivado ou não. Ele disse que sim, que eu fora aprovado e que continuaria a trabalhar ali. Quando comentei que o aumento de salário combinado me ajudaria bastante, ele negou que tivesse feito tal promessa. Cheguei a duvidar de mim mesmo. Será possível que eu tivesse entendido errado? Não. Não era possível, eu comentara com todos os conhecidos, quando do acordo e não faria isso se não fosse verdade. Ele insistiu em que não prometera qualquer aumento. Disse-lhe que eu entendera que assim seria, mas se ele pretendia continuar me pagando o mesmo que na experiência, não poderia continuar a trabalhar ali. Que ele procurasse alguém para ocupar meu lugar, enquanto eu procuraria um novo emprego. Se ele contratasse alguém antes de eu conseguir outro emprego, eu sairia. Se, no entanto, eu encontrasse outro lugar, ele já estava avisado de que eu iria embora. Ele concordou e ficamos assim.
Naquela mesma semana, encontrei um ex-colega de faculdade que me disse que um engenheiro, que havia sido nosso professor, perguntara por mim, dizendo que teria um trabalho para me oferecer.Fui procurá-lo e ele confirmou que estava prestes a ser contratado por uma multinacional para fiscalizar as obras de um prédio industrial na cidade de Campinas. Que achava que eu teria condições de realizar esse trabalho, por isso pensara em mim. Disse que ainda não fora contratado, mas que as probabilidades disso acontecer eram grandes. Que o salário seria de vinte e dois mil cruzeiros e que eu teria preferência, caso aceitasse. Disse-lhe que poderia contar comigo e me despedi feliz da vida.
Quando disse ao Edgar que não aceitaria continuar trabalhando pelo mesmo salário da experiência, o fiz por impulso, por revolta ao verificar que ele se negara a cumprir o combinado. Pior! Negou que tivesse combinado tal coisa, indiretamente me chamando de mentiroso. Agi por impulso, mas não voltaria atrás, mesmo tendo consciência de que poderia demorar muito para conseguir outro emprego. Fiquei muito preocupado, mas, agora, estava radiante, não precisava temer o desemprego e poderia ganhar muito mais.
No dia seguinte, quando cheguei no escritório, o Edgar não estava, mas havia me deixado um recado de que eu deveria ir para Santa Rita do Sapucai para conferir a locação dos blocos de fundação, o que levaria dois ou três dias. Que ele me encontraria lá no dia seguinte ou no posterior. Eu não tinha carro e, como das outras vezes, pedi o de minha irmã emprestado e fui.
Dois dias depois, pouco antes da hora do almoço, o Edgar chegou lá. Percorremos a obra e, depois, fomos almoçar.
Ele me disse que não conseguiria acompanhar aquelas obras, como pretendera, porque os compromissos no escritório não lhe permitiam se ausentar o quanto as obras exigiam. Que, por isso, decidira me encarregar delas. Disse-lhe que ele tinha razão quanto à impossibilidade de conciliar o trabalho no escritório e a assistência às obras. Mas que, no entanto, ele precisaria arrumar outro engenheiro pois, eu, havia conseguido outro trabalho e não ficaria ali por muito tempo. Que ele deveria se apressar em conseguir alguém para me substituir.
Ele, demonstrando surpresa, perguntou porque eu iria sair. Fitei-o por algum tempo, incrédulo, principalmente, ao perceber que sua surpresa parecia autêntica. Como poderia Ter esquecido a conversa que tivéramos a tão poucos dias? Lembrei-lhe a conversa e o que ficara decidido. Ele alegou que se lembrava da conversa, mas que considerara que eu não falara sério, que agira por impulso.
Depois de alguns momentos de silêncio, ele me disse que me pagaria os nove mil e que eu esquecesse aquela estória de ir embora. Disse-lhe que não poderia fazer isso, que me comprometera com o outro trabalho e que não pretendia faltar com a palavra empenhada. Ele não insistiu e passamos a conversar sobre outras coisas. No final da tarde ele foi embora e eu fiquei até o dia seguinte.
Na Segunda-feira, pela manhã, quando cheguei no escritório, o Edgar já estava lá, me chamou para sua sala, me mandou sentar e disse que não permitiria que eu saísse da empresa. Disse-lhe que ele não tinha poder para isso. Que eu deixara bem claro, quando da conversa ao término da experiência, que iria embora assim que conseguisse outro emprego. Havia sido convidado por um ex-professor para trabalhar com ele e me compremetera a faze-lo. Portanto, não havia a possibilidade de eu continuar ali. Que poderia ficar mais algum tempo, até que a obra em que iria trabalhar começasse, o que lhe permitiria conseguir outro engenheiro para me substituir.
Ele alegou que ali, na construtora, todos eram como membros de uma família, que eu teria todas as condições de me desenvolver profissionalmente, com liberdade de ação. Que dificilmente encontraria em qualquer outro lugar condições tão boas para trabalhar e progredir profissionalmente.
Disse-lhe acreditar naquilo, o que seria um atrativo a mais para que conseguisse rapidamente alguém para me substituir. Que o que me impelira a sair, fora o mal entendido quanto ao salário que eu receberia. Que eu havia me sacrificado bastante para conseguir uma formação e que pretendia, agora, propiciar melhores condições de vida para minha família. Portanto, quando ele alegara que eu continuaria ganhando o mesmo salário inicial, considerei que era pouco e que teria condições de conseguir mais. Por isso decidira sair. Não pelo ambiente de trabalho e, muito menos, pelos colegas.
Ele alegou que eu me arrependeria ao sair dali. Que ele me oferecia um futuro promissor. Que a construtora ainda era pequena, mas que estava em processo de crescimento, solidamente, com segurança. Que eu cresceria junto com ela. Que o mercado estava cheio de empresas que prometiam muito, mas cumpriam pouco. Com a postura de um pai, me aconselhou a reconsiderar minha decisão e voltar atrás enquanto ainda era tempo.
Agradeci-lhe a preocupação e lhe disse para não se preocupar comigo. Que estava indo para uma multinacional, trabalhar como fiscal em uma obra de grande porte, onde teria grandes condições de aprender muito. Que teria o respaldo de um profissional experiente, que fôra meu professor. Que eu tinha humildade suficiente para reconhecer que tinha muito a aprender, tinha disposição para isso, mas que tinha algum conhecimento, disposição para me empenhar no trabalho e motivação para conquistar respeito profissional.
Ele chamou o comprador e pediu-lhe que fosse à banca de jornais comprar uma revista especializada em automóveis. Me contou que era filho único e que seu pai era um próspero comerciante de tecidos no Rio de Janeiro, o que oferecia um bom respaldo financeiro à construtora. Que nunca precisara recorrer a isso, mas que poderia contar com essa segurança em momentos de eventuais crises. Que o Duda, além de sócio, era seu cunhado, irmão de sua esposa. Que o sogro era sócio de uma construtora tradicional, onde ele trabalhara no início da carreira. Portanto, a construtora tinha respaldo, tanto financeiro, quanto técnico. Que dificilmente eu conseguiria tanta segurança e tranqüilidade para trabalhar como ali.
Disse-lhe Ter consciência de tudo aquilo e que, se não fosse o mal entendido quanto ao salário, eu não teria porquê não continuar ali. Que almejava progredir, mas que não era ambicioso e que me atraia crescer junto com a empresa, sentindo-me parte importante. Tinha consciência que em uma empresa grande, os indivíduos são como peças de uma grande máquina, dificultando o destaque pessoal, além de que, muitas vezes, a política de relacionamento considera mais as aparências do que a capacidade real. A questão era que, o mal entendido quanto ao salário me frustrara e me provocara a buscar uma remuneração melhor. Tivera sorte de ser convidado para um trabalho interessante, com boas perspectivas e um salário que era mais que o triplo do que estava ganhando. Como eu já o avisara do que pretendia, empenhei minha palavra com o professor e isso, para mim, valia muito mais que qualquer contrato firmado. Portanto, eu não tinha como continuar ali.
O comprador chegou com a revista e entregou a ele. Folhou-a até a página que continha uma tabela de preço de carros novos. Depois de consultá-la, me disse que compraria um automóvel zero quilômetro, que eu usaria como se fosse meu, tanto para trabalhar como para passear. Que ao invés de nove mil, me pagaria doze mil.
Declarei me sentir lisonjeado pela insistência dele, o que me acariciava o ego, valorizando muito a auto-estima. Mas que não poderia aceitar. Que não era uma questão de valores materiais. Era uma questão de honra, de palavra empenhada. Portanto, ainda que ele se dispusesse a triplicar o que me prometeram pagar na outra empresa, eu não teria como aceitar, acreditando que o compromisso moral não tem preço.
Ele voltou a mencionar o convívio familiar que acontecia na empresa, as possibilidades de crescimento e tudo o que já havia dito anteriormente. Eu sempre respondia com o mesmo argumento: que era uma questão de honra. Continuamos naquela repetetividade até perto da hora do almoço, quando o mestre de obras do transmissor da rádio ligou dizendo que estava com um problema e que precisava de ajuda para resolvê-lo. O Edgar mandou que localizassem o Duda e o mandassem para lá. Disse-lhe que não era necessário, que eu poderia ir até lá e resolver o problema. Que o Duda estaria na obra do banco, bem distante da outra. Ele argumentou que pretendia continuar nossa conversa. Disse-lhe que estávamos perdendo tempo, que eu assumira um compromisso moral e que não pretendia rompê-lo. Que ele deveria dirigir seus esforços para conseguir outro profissional. Ele concordou em que eu fosse socorrer a obra, mas me pediu que refletisse sobre o que conversáramos e que, na volta, voltaríamos a conversar.
Eu tinha uma verdadeira obsessão pelo valor da palavra empenhada. Não dava muito valor aos compromissos que assumiam comigo, por Ter constado muitas vezes que eram descumpridos com facilidade; no entanto, não conseguia faltar com a palavra que eu empenhara. Eu gostava de trabalhar ali, acreditava no crescimento da contrutora e que poderia crescer junto com ela. Tinha me afeiçoado ao pessoal, tanto do escritório, quanto das obras. Eu não era ambicioso e o salário que o Edgar me oferecera, mais a vantagem de Ter um carro a disposição, me satisfaziam. O Edgar era truculento, gritava e xingava por qualquer motivo. Quando fazia isso comigo, eu respondia no mesmo tom e ele aceitava. A insistência dele para que eu permanecesse, pagava, com sobra, a revolta que sentira quando ele se negara a cumprir o que havíamos combinado, demonstrando que não me dava qualquer valor. Agora, ao contrário, ele me supervalorizava, me oferecia uma condição moral excelente. Tudo isso era muito interessante, mas o compromisso assumido tinha um valor maior.
Essa lembrança me afetou bastante, me propiciou prazer em recordar o quanto fôra valorizado, ser disputado como algo de muito valor. Comparado com o que sinto hoje, desmotivado, sem perspectivas, esperando que o mistério jogue a próxima cartada; essa lembrança tem um valor significativo. Será que esse é o ponto ao qual a cigana se referiu no sonho? “Teu futuro está no teu passado. Relembre-o e, quando chegar no ponto certo, terá certeza de Ter encontrado o caminho.” Acho que não. Não senti nada mais significativo, apenas a sensação gostosa de Ter sido tão valorizado.
Voltei para o escritório no final da tarde e o Edgar voltou à carga. Repetiu todos os argumentos que já havia usado, dizendo que encomendara o carro, que chegaria na manhã seguinte. Repeti que o compromisso assumido não tinha preço e que nenhuma vantagem material me faria rompê-lo. Ele disse que eu era mais teimoso que um burro velho, mas que não desistiria até que eu cedesse.
Disse-lhe que ele estava sendo irracional, pois eu era recém formado, com um título que as pessoas resistiam para aceitar, com pouca experiência. Que ele poderia encontrar, facilmente, alguém, até, mais qualificado. Que além de teimoso, ele estava sendo caprichoso, considerando como derrota inaceitável o fato de não me convencer.
Ele confessou que gostava de jogar e detestava perder. Mas que, no entanto, o que o motivava a insistir tanto era a minha personalidade: humilde para reconhecer deficiências e erros, persistente na busca de conhecimento, disposição para o trabalho e, principalmente, dignidade. Acostumado a dominar e Ter suas vontades e desejos atendidos; era evidente o quanto lhe custava dizer aquilo a meu respeito. Acostumado a criticar com facilidade e economizando ao máximo elogiar, não teria dito aquilo se não acreditasse ser verdade.
Aquilo pesou significativamente, muito mais que o carro, o salário e a promessa de um futuro de progresso. Ele reforçou a proposta, dizendo que a empresa arcaria com todas as despesas do carro, inclusive as oriundas do uso particular. Que ele ficaria comigo como se fosse meu e que a construtora pagaria tudo. Que ao invés dos doze mil que prometera, pagaria quinze.
Declarei-lhe que reconhecia o esforço que fazia para manter-me ali, o quanto aquilo me sensibilizava e que me custava muito rejeitar tanta coisa. Que conversaria com o professor e se, ele me liberasse do compromisso, aceitaria a proposta. Ele demonstrou no semblante a comemoração de quem tivesse ganho o jogo mais importante de sua vida.
Procurei o professor naquela mesma noite, na faculdade, contei-lhe o que acontecera e ele me liberou do compromisso, cumprimentando-me pelo senso de compromisso e pelo caráter. Disse que tinha outros candidatos em mente, mas que dificilmente encontraria alguém como eu. Que me convidara pelo que eu demonstrara na escola, mas que, agora, pelo que lhe contara, não tinha dúvidas de que acertara. Desejou-me felicidades e se colocou a minha disposição para qualquer coisa que precisasse. Fui para casa como um balão inflável, prestes a estourar de tão cheio.
Eu não compreendia como um cara como o Edgar, prepotente, onipotente, parecendo sentir prazer em humilhar as pessoas e não perdendo oportunidade para isso; admitisse que eu tivesse aquelas qualidades e as valorizasse. Se ele as achava importantes, porque não as assumia e agia de acordo com elas? Eu achava que era tão fácil fazer isso. Nunca precisei fazer qualquer esforço para ser assim. Pra mim, era a coisa mais natural do mundo e considerava um exagero que valorizassem essas coisas como tinha feito o Edgar e o professor.
O importante é que, finalmente, eu poderia proporcionar uma melhor qualidade de vida à minha mulher e filhas. Já não era sem tempo, afinal, eu não lhes fornecera nada além do mínimo indispensável para a sobrevivência. Não pretendia elevar exageradamente o padrão de vida, pois considerava que o mais importante era aprender a viver com pouco, pois, com muito, é fácil. Mas não era necessário viver tão próximo de uma vida miserável.
Assumi as obras do sul de minas como se fossem as mais importantes do mundo, e eram. Do meu mundo. Eu tinha uma motivação a mais para perseguir o sucesso profissional. No último ano do curso, começara a participar das discussões a respeito dos obstáculos que colocaram à nossa carreira. O corporativismo dos profissionais tradicionais e que dominavam o mercado, restringia sensivelmente nossa atuação profissional. Nos classificavam como sub-engenheiros e impediam, através de legislação profissional, nossa ascendência e, principalmente, autonomia. Nos reservaram o lugar de auxiliares, precisando da tutela deles para tudo. Durante o curso, empenhado como estava em me formar o mais rápido possível, participei muito pouco. No entanto, depois de formado, me engajei e participava o máximo possível do movimento em prol de nossa emancipação. Eu precisava provar, na prática, que não deixava a desejar a qualquer outro profissional, que era tão capaz como qualquer outro. Isso virou uma verdadeira obsessão.
Até quando comecei a participar da política estudantil, eu era incapaz de falar para um grupo de pessoas. O professor de humanidades costumava passar uns filmes de desenhos geométricos se movimentando na tela e, ao final, pedia que cada um de nós fosse até a frente da sala e falasse sobre o que tinha entendido. Aquilo pra mim era terrível; a boca secava, as palavras se atropelavam, as idéias se embaralhavam e o resultado era desastroso. Em uma assembléia, onde os alunos se reuniram em um galpão para discutir a melhor maneira de encaminhar o movimento; sem saber como, nem porque, surpreendi-me, no meio da turma, falando alto, claro e de maneira inteligível. A partir daquele momento, nunca mais tive dificuldade de me expressar em público, não importando quem estivesse na platéia nem o número de ouvintes. Até hoje não compreendo o que provocou mudança tão radical e instantânea.
A distância entre Santa Rita do Sapucai e São Lourenço era de cem quilômetros, por estrada de terra, que estava sendo preparada para ser pavimentada. Por estrada asfaltada, essa distância dobrava, duzentos quilômetros. As duas foram iniciadas ao mesmo tempo. Eu passava metade da semana em uma e a outra metade na outra. Muitas vezes a urgência dos trabalhos me impedia de voltar para casa no final de semana. Cheguei a ficar três semanas sem voltar para casa.
Além das obras, me esforçava para participar do movimento estudantil, lutando contra a discriminação profissional que sofríamos, pela mudança da legislação que criava barreiras injustas para os egressos dos cursos que nos formaram. O sistema ditatorial de governo impedia a liberdade de expressão, dificultando a livre discussão, que propiciaria as correções necessárias. Ao invés disso, o sistema opressor facilitava que os poderosos reservassem todos os benefícios e vantagens para eles, tripudiando sobre as minorias. No nosso caso, era o corporativismo dos engenheiros tradicionais que legislava em causa própria nos conselhos profissionais e influenciava o sistema educacional universitário para apoiar seus intentos. Para discutir o problema e traçar estratégias de ação, tínhamos que nos esconder como se fôssemos marginais. O medo impedia que a maioria dos prejudicados participasse do movimento, sobrecarregando os que se atreviam a isso.
Não bastassem todas as dificuldades mencionadas, tínhamos que cuidar para que infiltradores não se aproveitassem do movimento, desviando-o de seus objetivos. Por outro lado, era preciso atuar politicamente, buscando canais para nossas reivindicações. A maioria dos que estavam empenhados nessa luta, tinham que trabalhar para sobreviver, o que restringia o tempo disponível e que deveria Ter o melhor aproveitamento. Nos revesávamos em viagens relâmpago pelo país, participando de congressos e assembléias, divulgando nossos objetivos, incentivando a luta, buscando adeptos para nossa causa.
O tempo disponível para a família era mínimo e eu procurava valorizá-lo ao máximo, levando as meninas a um club de que era associado, a um parque municipal na região ou à casa de amigos.
Certa feita, consciente de que dedicava muito pouco tempo à família, levei minha esposa para uma assembléia que aconteceria numa faculdade na cidade de Sorocaba. Como era comum, manifestantes contrários tentaram tumultuar os trabalhos, gritando muito e fazendo baderna. Tivemos muito trabalho para neutraliza-los e conseguir que a assembléia realizasse seus objetivos. Minha esposa ficou com muito medo, classificou aquilo como loucura e nunca mais quis me acompanhar.
Eram tantos compromissos e preocupações que não sobrava tempo para o que era uma verdadeira obsessão para muitos homens: mulheres. Discursando e discutindo em assembléias e congressos, despertávamos a atenção, inclusive de meninas, que nos viam como verdadeiros mitos. Era comum sermos assediados por elas. Eu considerava que ter um relacionamento com estudantes naquelas condições, sonhando com mitos, era alimentar ilusões descabidas. Por isso, vivia fugindo delas. Não sentia a menor necessidade de relacionamentos extra conjugais.

O empreiteiro que fornecia mão de obra para as obras do sul de Minas, era um espanhol, louco por mulheres. Não falava em outra coisa. Quando estávamos em Santa Rita, almoçávamos ora no restaurante da rodoviária, que ficava em frente a obra, ora num outro, na rua de trás. Neste, a proprietária tinha uma filha muito bonita, que chamava a atenção de todos os homens. Quando ela aparecia, os olhares dos freqüentadores denunciavam o interesse que despertava. Ela se mostrava recatada e não dava confiança para ninguém.
Numa noite, o empreiteiro, Diego, e eu, fomos tomar uma cerveja em um bar, que tinha um salão grande, com mesas, onde, de vez em quando, realizavam bailes. O bar estava vazio. Logo depois chegaram duas meninas carregando livros e cadernos e se sentaram a uma das mesas. O Diego já se acendeu, comentou a beleza e não parou mais de olhar para elas. Ele ficou me perturbando com a conversa de que pretendia falar com elas, mas que não se atrevia. Perturbou tanto que, venci a timidez e o acompanhei para que conversasse com elas. Apresentei-me e a ele e pedi licença para fazer-lhes companhia. Elas concordaram e conversamos até que disseram precisar ir embora. O Diego tinha mais interesse em uma delas e parece que houve reciprocidade. Fomos acompanhá-las até em casa. A que não estava com o Diego, morava mais perto. Ela entrou em casa, o Diego foi acompanhar a outra e eu fui para o hotel. No dia seguinte, o Diego não cabia em si de satisfação por Ter conseguido uma namorada. Alertei-o do risco que corria, sendo casado e namorando uma menina de uma cidade tão pequena. A possibilidade de encrenca era enorme.
Naquela região não havia usinas de concreto, por isso ele tinha que ser preparado na própria obra. Gastava-se uma semana para concretar uma laje. A última laje da obra de Santa Rita, cuja concretagem fôra iniciada na Segunda-feira, só foi concluída no final da tarde de Sábado. Como na Segunda-feira seguinte teríamos que inciar a concretagem da laje em São Lourenço e, como teríamos que levar operários de Santa Rita para ajudar no trabalho, o Diego e eu resolvemos não ir para casa. Dormiríamos ali e, no Domingo, iríamos para São Lourenço levando os operários.
Um dos operários da obra me convidou para um baile que aconteceria naquele salão em que o Diego conhecera a namorada. Insistiu para que eu fosse, alegando que ele seria o porteiro e que se sentiria honrado com minha presença. Eu estava muito cansado pois, o número reduzido de operários, me obrigara a pegar no pesado durante toda a semana. No entanto, diante de sua insistência, prometi ir.
O salão estava lotado, a música muito alta e a falta de ventilação adequada deixava o ar pesado. Avistei o Diego com a namorada à uma das mesas, mas não fui até eles. Estava difícil de circular entre tanta gente e eu pretendia ir embora logo.
Alguém se chocou com minhas costas e, ao virar-me, deparei com a filha da dona do restaurante, aquela que causava tanta admiração nos homens. Ela me pediu desculpa, alegando que fôra empurrada. Ela se mostrara tão constrangida pelo choque, que a convidei a tomar algo para demonstrar que fora um incidente sem importância.
Ela era bonita de rosto e corpo, sem ser excepcional. O que mais chamava a atenção era seu porte altivo. Fomos até o balcão e, depois de consultá-la sobre o que queria beber, fiz o pedido. Ela pediu licença para ir ao toalete e fiquei esperando.
Naquela época, nas cidades do interior, até os menos categorizados funcionários do Banco do Brasil, tinham status de pessoas importantes. O Diego e eu éramos considerados como celebridades. Ele por ser o chefe dos operários e eu por ser o engenheiro. Nem nosso jeito relaxado de vestir, nem a relação de igual para igual que mantínhamos com os operários e com qualquer pessoas com quem tínhamos contato; evitavam aquele misticismo.
Junto ao balcão daquele bar eu me sentia como um animal de zoológico que todos olham, mas não se atrevem a chegar perto. Isso era comum em qualquer lugar da cidade que estivéssemos. Era uma cidade muito pequena, portanto, todos nos conheciam.
Passado um tempo muito maior do que o normalmente necessário para usar o toalete, como a moça não voltasse, tomei a bebida dela, paguei e fui embora. Considerei que ela se sentira constrangida em rejeitar o convite para beber e usara aquele artifício para se livrar de mim.
Decidi caminhar um pouco antes de voltar para o hotel. Passei pela obra e, ao lado dela, havia outro salão como aquele em que acontecia o baile, só que este estava praticamente vazio. Senti sede e entrei para tomar alguma coisa. Ao contrário do outro, ali o ambiente era bem ventilado e a música suave. Fiquei bebericando junto ao balcão, quando senti que alguém se aproximava. Era a moça que havia ido ao toalete e não voltara.
Ela se desculpou pela demora, alegando que uma amiga a retivera no toalete para conversar e que tivera dificuldade para se livrar dela. Convidei-a a tomar algo e ela aceitou um copo da cerveja que eu tomava. Pedi um copo e, quando o servia, ela disse que iria ao toalete. Desapareceu novamente. Fui para o hotel considerando que além de bonita ela era totalmente maluca.
Combinei com o Diego que sairíamos no Domingo, logo depois do almoço, levando os operários para São Lourenço. Depois de tomar o café da manhã, fui até a obra e, por Ter o que fazer, liguei uma mangueira à torneira e passei a molhar a laje que havíamos concretado. Estava absorto nessa tarefa, quando o Diego se aproximou e me disse que a filha da dona do restaurante lhe pedira para me chamar, pois queria falar comigo e que me esperava numa ruela próxima. A primeira reação foi de não ir, mas a ociosidade e, principalmente, a curiosidade, me levaram a atender a convocação.
Ela se desculpou pela noite anterior e me pediu para conversarmos em algum lugar longe dos olhares curiosos. Sugeriu que fôssemos para o alto de um morro próximo de onde se podia observar a cidade inteira. Fui pegar o carro e nos dirigimos para esse lugar.
Ela disse que há tempo vinha me observando, desejando conversar comigo. No entanto, não tivera coragem, principalmente porque eu nunca lhe prestara atenção. Que quando me viu no baile, ocorreu-lhe de se chocar comigo, como pretexto para me abordar. No entanto, conseguido o objetivo, ao estar junto de mim, sentira uma necessidade enorme de fugir. Saíra para a rua e caminhara a esmo, sem atinar com o que a levara a agir daquela maneira. Me vira passar quando saí do baile e, à distancia, me seguiu. Quando entrei no outro bar, quis entrar e me abordar novamente, mas algo a provocava a se afastar. Cedera ao desejo de me abordar e entrara, mas, junto a mim, aquela força estranha obrigou-a a se afastar novamente. Caminhara pelas redondezas até alta madrugada, confusa, sem compreender o que estava acontecendo. Não conseguira dormir, por isso decidira me procurar naquela manhã.
Nessa época, eu era totalmente céptico e, conseqüentemente, ateu. A ciência era meu Deus e, o que ainda não conseguira explicar, o faria no futuro. Considerei que o que ela me relatara, ou era fruto de fantasia, ou artifício para conseguir alguma coisa, ou distúrbio psicológico ou psiquiátrico.
Ela me contou que os pais eram separados, que a mãe tinha o restaurante e o pai um taxi, que fazia ponto na rodoviária, em frente à obra. Que adorava o pai e que sofria pelo fato de ele morar sozinho e sofrer a falta da mulher, que ainda amava. Quando lhe perguntei por que não ia morar com ele, fazer-lhe companhia; ela disse que já tentara, mas que ele não queria, alegando que a casa da mãe era muito mais confortável, além de considerar que os filhos estariam melhor com a mãe do que com ele.
Disse que namorara um caixeiro viajante, que passava regularmente pela cidade, que se apaixonara por ele e que, desaparecera sem qualquer explicação. Acreditava que o motivo era que lhe contara que sua menstruação estava atrasada e que temia estar grávida. Na verdade fora só um atraso mesmo.
Disse-lhe que eu era casado, que amava minha mulher, tinha três filhas e as adorava. Que tinha uma vida muito tumultuada, fazendo duas obras ao mesmo tempo, distante cem quilômetros uma da outra e há duzentos quilômetros do escritório. Contei que estava envolvido com política estudantil que consumia a maior parte do tempo em que não estava trabalhando, o que me deixava muito pouco tempo para dedicar ao convívio familiar. Que as obras, para mim, eram muito mais que a construção de prédios; eram o local de aprendizado, de aplicação de meus conhecimentos, de experiências, de provar que eu era tão capaz quanto qualquer outro profissional. Que isso era muito importante para demonstrar que tínhamos razão ao reivindicar uma regulamentação profissional mais justa. Enquanto eu falava, ela me olhava como quem observa uma obra de arte que não consegue entender.
Verifiquei que já se fazia tarde e que precisaria voltar, almoçar e viajar para São Lourenço. Deixei-a na cidade, nos despedimos e fui me preparar para a viagem.
No meio da semana, deixei a concretagem em São Lourenço e fui para Santa Rita assistir a obra de lá. Depois de verificar os trabalhos e dar orientações, fui para o escritório da obra, preencher diários e cuidar da burocracia. Quando sai para tomar um café no barzinho da rodoviária, fui abordado por um menino, que me disse que a Rita queria falar comigo. Eu não sabia quem era a Rita e disse isso a ele. Ele me disse que era a filha da dona do restaurante. Que pedira para que eu fosse à sua casa, sem falta. O primeiro impulso foi recusar, mas decidi acompanhar o menino. Quando a porta da casa foi aberta, apareceu um rosto abatido, com olhos fundos e marcantes olheiras. Era uma imagem impressionante. Ela me fez entrar e sentar a uma mesa servida com café e bolo. Quando perguntei o que havia acontecido, ela, baixando a cabeça, respondeu que tentara o suicídio, tomando uma cartela de comprimidos.
Quando lhe perguntei sobre o motivo que a provocara àquele desatino, ela disse não saber. Que no Domingo, depois que nos despedimos, almoçara com o pai e passara boa parte da tarde conversando com ele, ouvindo dele o quanto estava sendo difícil viver sozinho depois de tantos anos ao lado da mulher que amava. Ela ficara penalizada, tentara confortá-lo, ofereceu-se par ir morar com ele, mas ele recusou mais uma vez.
Depois do jantar, conversara com a mãe sobre a possibilidade de reconciliação, mas ela negou veementemente, alegando que não amava mais seu pai e não conseguia mais viver a seu lado. Saíra e caminhara pelas ruas mais desertas. Seu pensamento oscilava entre o pai, o caixeiro viajante que a abandonara e eu. Não se fixava em nenhum de nós, não havia uma seqüência, era uma oscilação maluca de fragmentos de pensamentos. Tentou organiza-los, pensar em um de cada vez, o que significavam para ela e que problemas lhe causavam, no entanto, não conseguia e, ao tentar fixar o pensamento em um, um pensamento sobre outro a assaltava e impedia qualquer racionalidade lógica.
Depois de algum tempo caminhando, foi assediada por um rapaz que como vários outros, não perdia oportunidade de faze-lo. Desvencilhou-se dele e voltou para casa. Tentou dormir, mas não conseguira. Depois de muito rolar na cama em busca do sono, decidiu ir ao quarto da mãe pegar e tomar um dos seus calmantes. Esperava que aquele turbilhão desordenado de pensamentos desaparecesse, permitindo-lhe dormir e propiciando um pouco de paz.
Deitou-se mas o sono não vinha e os pensamentos continuavam ali, atormentando-a. Sentia o corpo entorpecido, mas a mente fervilhava na confusão de pensamentos. Depois de muito tempo, um pensamento expulsou os outros e dominou-a por completo. Mostrava-lhe a situação do pai, que não conseguia esquecer a mulher amada, o que o impedia de buscar novos caminhos e conquistar a felicidade por outros meios. Vivia uma vida vegetativa, na esperança da reconciliação, que segundo sua mãe, era impossível. O caixeiro viajante a seduzira com palavras doces, gentilezas e carinhos. Sentira-se amada e se apaixonara por ele. Depois de pouco tempo, o desaparecimento e a constatação de que ele era como todos os rapazes da cidade, que só desejavam seu corpo, sem dar importância à sua sensibilidade e emoção.
Passara tempos muito difíceis, abandonara os estudos e vivia angustiada, com o peito apertado, totalmente desmotivada, criticada pela mãe por não aceitar em ajudá-la no restaurante. Não queria ir ao restaurante, pelo mesmo motivo que não caminhava em público: para não ser assediada. Quando a obra do banco foi iniciada, sentiu que algo poderia acontecer; não sabia o quê, era um sentimento. A rotina da cidade mudaria, pessoas diferentes apareceriam, em fim, era uma esperança. No começo, ela chegou a se distrair com o movimento. Passava horas na sorveteria em frente à obra observando o movimento. Até o barulho ensurdecedor da máquina que cravava estacas de concreto no terreno, lhe aliviava a angústia. Em poucos dias tudo se tornou rotineiro e ela foi espaçando as idas à sorveteria, voltando a ser dominada pela angústia.
Um dia, ela conversava com o pai, na sorveteria, quando me viu chegar. Sentiu uma coisa estranha, uma espécie de tremor. Lembrava-se que o pai a cutucara e perguntara se estava se sentindo mal. Ela alegou estar sentindo uma indisposição, despediu-se do pai e foi para casa. Sentia-se estranha, algo havia mudado, mas continuava angustiada, com o peito apertado.
No final da tarde, voltou à sorveteria e ficou me observando conversar com os operários e fazendo medições. Sentiu como se uma força estranha a forçasse a ir embora. Era tão forte que não resistiu e saiu dali. Estava perturbada, sabia que eu tinha algo a ver com aquilo, mas não identificava o porquê. Dormiu mal a noite e na manhã seguinte foi até a sorveteria, tentar descobrir o que, em mim, a perturbava. Não me viu e soube, através do espanhol, dono da sorveteria, que eu fôra embora logo cedo.
A sorveteria era seu ponto preferido e o espanhol, das poucas pessoas com quem costumava conversar. Soube, por ele, que eu era engenheiro, mas que não era o da obra, que fôra ali para substituí-lo num trabalho específico, porque ele não pudera ir. Sentiu uma coisa estranha: uma mistura de desapontamento e alívio. Não identificava o que tinha maior peso.
O tempo passava e ela continuava apática, desmotivada e atormentada com os pensamentos em seu pai e no caixeiro viajante. Diminuíra sensivelmente suas idas à sorveteria. Soubera, pelo espanhol, que eu estivera ali, mas não me vira.
Na última vez em que fora substituir o Edgar e que conversáramos durante o almoço a respeito de minha saída da construtora; o fizemos no restaurante da mãe dela. Ela vinha me observando desde a sorveteria, tendo o mesmo sentimento estranho de atração e repulsa. Quando viu que nos dirigíamos para o restaurante, foi para lá e tentou ouvir o que conversávamos. Não pôde ficar muito tempo porque se sentiu incomodada com os olhares que o Edgar lhe dirigia, no entanto, entendeu que ele queria que eu ficasse trabalhando ali e eu dizendo que deixaria a construtora. A sensação de decepção e alívio voltaram a dominá-la.
Quando eu voltei para assumir a obra em definitivo, ela sentiu felicidade e medo. Sentia-se mal ao constatar que eu não olhava para ela. Quando passava, todos na obra olhavam, como querendo comê-la com os olhos, enquanto eu nem a notava. Que algumas vezes eu fôra à sorveteria, enquanto ela estava lá, tomava um copo de coalhada fresca, conversava um pouco com o espanhol e agia como se ela não estivesse ali. Aquilo lhe causava mal, ao mesmo tempo que lhe propiciava uma sensação de alívio. Isso foi se repetindo, até que soube que eu iria ao baile naquele Sábado. Decidiu ir lá e me abordar, mesmo correndo o risco de ser rechaçada. Quando eu fui gentil, desculpando-a e convidando-a a beber, uma força estranha a obrigara a fugir. Na Segunda tentativa, a mesma coisa. Quando conversamos no Domingo, enquanto relatava o que acontecera, disse Ter sentido um grande alívio, no entanto, quando lhe disse que era casado, que amava minha esposa e adorava as filhas, sentiu como se o mundo tivesse caído sobre sua cabeça.
Aquele pensamento tão claro, naquela noite de insônia tão tumultuada a levou a concluir que estava predestinada ao sofrimento e que o melhor seria fugir daquilo tudo. Sentiu uma calma incrível, foi até o quarto da mãe, apanhou a cartela de comprimidos, foi até a cozinha e tomou-os até o último. Deitou-se e sentiu uma calma enorme, como se flutuasse em nuvens.
Despertou no hospital, sentindo dor na garganta, ligada a um frasco de soro por uma mangueira e uma agulha espetada no braço. Passara mais uma noite no hospital e fôra liberada para ir para casa. Disse que a maioria das pessoas acreditara que eu causara aquela loucura, mas que ela os convencera que não. Lembrou-os que ela vinha se sentindo mal há muito tempo, muito antes de eu aparecer por lá. Que só conversara comigo no Domingo e por muito pouco tempo. Portanto, não havia a possibilidade de que eu tivesse causado aquilo.
Disse que pedira para que eu fosse até lá, porque sentia que eu poderia ajudá-la. Disse-lhe não saber como. Ela disse que também não, mas que se sentira muito bem quando me contara o que acontecera no Sábado e, agora, sentia-se muito melhor depois de Ter relatado o drama que vinha vivendo.
Brinquei com ela dizendo que, se falar aliviava seu sofrimento, talvez a solução estivesse em usar o confessionário da igreja como terapia. Ela disse já Ter tentado isso, mas o padre não lhe inspirara a confiança necessária. Que pretendiam mandá-la para a casa de uma irmã casada, que morava em Campinas, para que se submetesse a um tratamento psicológico ou psiquiátrico ali. Que já estivera lá, passara por avaliação e fizera algumas seções de psicoterapia, mas que não sentira qualquer melhora e não confiava que pudessem ajudá-la. Que sentia que eu poderia ajudá-la e, por isso, me pedia auxílio.
Aquele relato me sensibilizara profundamente e o pedido de ajuda me envaidecera enormemente. No entanto, a responsabilidade que aquilo representava me apavorou. Senti vontade de abraça-la e protegê-la, mas temi que aquilo pudesse faze-la crer que me transformaria em seu guardião e, pior, que me afeiçoasse a ela, causando problemas no meu casamento. Fiquei confuso, sem saber o que dizer ou fazer.
Disse-lhe que precisava ir embora, que tinha que terminar um trabalho na obra e voltar para São Lourenço. Recomendei-lhe que procurasse relaxar e se recuperar. Que era muito jovem e que tinha toda uma vida pela frente. Que conversaríamos quando eu voltasse e que, não sabia como, mas que procuraria ajudá-la.
Despedi-me e sai sem mesmo pegar em sua mão. Senti medo, muito medo. Caminhei rápido até a obra, como se fugisse de um grande perigo. Terminei o que tinha para fazer ali e voltei para São Lourenço.
De São Lourenço fui para São Paulo, no final de semana. Participei de uma reunião do movimento estudantil na Sexta-feira à noite e passei o final de semana com minha família. Passei a Segunda-feira no escritório, à noite, participei de uma assembléia em uma faculdade com o objetivo de convocar uma greve para chamar a atenção para nossas reivindicações. Só voltei a Santa Rita no dia seguinte.
O final de semana fora tão intenso que não me lembrara da Rita. Agora, na estrada, voltei a pensar no que me contara e senti pena dela. Considerei que ela pudesse Ter um distúrbio psiquiátrico e achei que o melhor seria que ela se submetesse a um tratamento.
Com a ausência de vários dias, o trabalho se acumulara e me dediquei a colocá-lo em ordem. Nem fui almoçar e, no meio da tarde, fui na sorveteria tomar uma coalhada fresca. A Rita estava lá e me convidou para dividir a mesa com ela. Perguntei sobre como se sentia e ela disse estar recuperada, mas ansiosa para conversar comigo. Que estivera ali pela manhã, me vira percorrendo a obra e entrar para o escritório. Que esperara que eu saísse para o almoço, mas que desistira ao verificar que eu não saia. Me pediu que nos encontrássemos à noite, para conversar com calma. Marcamos o encontro e voltei ao trabalho.
Peguei-a e, por indicação dela, fomos a um bar na extremidade da cidade onde serviam quadradinhos de peixe frito. Ela quis saber como fôra meu final de semana, contou que nossa última conversa lhe fizera muito bem, que a angústia tinha sido substituída pela esperança de voltarmos a conversar e que sentira grande ansiedade para falar comigo, quando me vira na obra. Quis saber como era meu trabalho, como funcionava o movimento estudantil e o que reivindicávamos. Ela demonstrava inteligência e sensibilidade e nada indicava que tivesse qualquer distúrbio psiquiátrico como eu chegara a considerar.
Ela se referiu várias vezes ao fato de Ter sentido atração e repulsa em relação a mim, à força que a impeliu a fugir de mim nas duas oportunidades naquele Sábado. Quis saber se eu acreditava em forças ocultas e disse-lhe que não, que acreditava na ciência e que, com a capacidade demonstrada descobrindo tanta coisa, acabaria por descobrir o que ainda estava envolto em mistério.
Quando fomos embora, deixei-a em casa e fui para o hotel. Ao passar por um espelho que havia no saguão, notei que estava com uma expressão feliz. Estranhei Ter observado isso, pois não me lembrava de Ter prestado atenção àquele espelho antes. Subi para o apartamento e percebi que a imagem da Rita ocupava meu pensamento. Era uma imagem doce, serena, que me fitava profundamente. Não havia reparado nisso quando estávamos juntos. Por que essa imagem aparecia agora? Era verdade, ela me olhara o tempo todo daquele jeito. Por que eu não reparara na hora e me lembrava tão claramente agora? Dormi com aquela imagem dominando meu pensamento, só.
No dia seguinte, ao chegar na obra, o Diego me perguntou sobre o que acontecera para que eu demonstrasse aquela cara diferente. Perguntei-lhe que diferença ela apresentava e ele não soube dizer, mas confirmou que estava diferente.
Perto da hora do almoço eu acompanhava a desmontagem da forma da última laje concretada, quando vi a Rita passar. Ela me acenou sorrindo e fez sinal que mais tarde estaria na sorveteria. Senti uma grande alegria.
Depois do almoço, me dediquei a discutir com o Diego, o mestre de obras e o encarregado da carpintaria, o que deveria ser feito para evitar as deformações que vinham ocorrendo na peças concretadas. Quando me lembrei da Rita já passava das quatro da tarde. Fui até a sorveteria e a encontrei. Marcamos encontro para a noite e eu voltei para a obra.
Fomos ao mesmo bar da noite anterior e degustamos peixe frito com cerveja, enquanto conversávamos. Prestei atenção na expressão de seu rosto e no olhar e confirmei a impressão da noite anterior. Quando terminamos de degustar o peixe, ela me convidou para caminharmos um pouco pela margem do rio.
Nós, que conversáramos tanto até ali, caminhamos vagarosamente, em silêncio, por um bom tempo. Era uma rua de terra que margeava o rio. O céu estava limpo e sem lua o que, associado à baixa luminosidade, permitia vislumbrar o firmamento pontilhado por infinitos pontos luminosos. Absorvido por aquela visão, parei olhando para o alto. Não sei quanto tempo passei naquela observação. Quando baixei a cabeça, deparei com o brilho daquele par de olhos, me olhando com tanta ternura que fiquei como que hipinotizado. Permanecemos nos olhando nos olhos, as cabeças se aproximando até que os lábios se tocassem iniciando um beijo roçado, que foi se intensificando enquanto os braços nos enlaçavam e as mãos percorriam nossos corpos.
Quando voltamos para o carro, nos abraçamos antes de entrar nele e ficamos colados um ao outro por algum tempo. Senti seu corpo estremecer e, quando perguntei o que havia acontecido, ela disse que lhe ocorrera que se tivesse tido sucesso na tentativa de suicídio, teria perdido a oportunidade de viver a felicidade que estava sentindo. Nos beijamos, entramos no carro, deixei-a em casa e, depois de marcar o encontro para a noite seguinte, fui para o hotel. O caminhar até o apartamento parecia um flutuar, pisando em nuvens.
Passei o dia muito ocupado, principalmente tentando encontrar solução para o problema das deformações das formas quando eram exigidas pela pressão do concreto fresco. Era um problema comum a todas as obras e que continuava sem solução. Normalmente, esse trabalho era delegado aos mestres de obras e aos encarregados de carpintaria. Os engenheiros se limitavam a cobrar resultados e criticar os defeitos acontecidos. Todos estranhavam que eu me preocupasse tanto com aquilo, alegando que a causa era a falta de uniformidade na resistência da madeira e da pressa que impedia uma boa revisão antes da concretagem. Eu não me conformava e buscava meios de solucionar o problema definivamente.
À noite fui me encontrar com a Rita. Na noite anterior, havíamos concordado que deveríamos evitar nos expor em público. Ela evitaria ir à sorveteria nos dias em que eu estivesse na cidade, nos encontraríamos à noite e evitaríamos lugares movimentados. Quando lhe perguntei se conhecia algum lugar em que estivéssemos livres da besbilhotice alheia; ela falou de um aeroporto, que ficava no topo de um dos morros que circundavam a cidade. Fomos até lá e verifiquei que não passava de um grande pasto, plano e com extensão suficiente para pouso e decolagem de pequenos aviões. Não tinha qualquer construção ou sinalização. Era um grande platô no alto de uma das montanhas mais altas da região. Dali, era possível enxergar toda a cidade que ficava a uns vinte quilômetros.
Me senti no paraíso, como se fôssemos os únicos habitantes da terra, cobertos pelo manto de infinitos pontos luminosos. Não faltava nem o pecado. Ela me disse que julgara estar apaixonada pelo caixeiro viajante, mas que, agora, percebia o quanto aquele sentimento fôra pequeno em relação ao que estava sentindo. Disse-lhe que sentia o mesmo, mas que continuava amando minha mulher e que, isso, me provocava um sentimento de culpa, por estar traindo-a, ao mesmo tempo que dificultava que ela, Rita, encontrasse o parceiro que pudesse faze-la feliz por muito tempo. Eu estava causando problema para as duas: traindo aquela e não podendo oferecer o futuro que esta merecia.
Aquela constatação me fez sentir o pior dos homens. Deixei de perceber o manto luminoso, a relva molhada, o aroma de mato e a mulher amada que estava a meu lado; a sensação do pecado me dominava. Eu que achava grotesca a traição e repudiava o criar ilusões nas pessoas, impossíveis de se realizarem; estava cometendo as duas.
Ela, percebendo meu abatimento, segurou meu rosto entre as mãos e olhando nos meus olhos, disse que eu não deveria me sentir culpado. Que ela sabia que eu amava minha mulher e que não a deixaria; que eu não a estava prejudicando, ao contrário, a tirara do fundo de um poço em que não imaginara poder sair. Portanto, minha mulher tinha motivos de sobra para se vangloriar de Ter a mim e, a ela, eu permitira renascer. Como eu poderia considerar estar causando mal, quando era um prêmio que qualquer mulher desejaria ganhar?
Fiquei impressionado que uma pessoa tão jovem, oriunda de um universo tão limitado e de pouca cultura, pudesse desenvolver aquele raciocínio. Argumentei que sua argumentação era lógica, mas que a realidade era cruel: eu estava traindo sim, e não poderia oferecer a ela o que eu gostaria e ela merecia. Ela insistiu, dizendo acreditar que eu não estava tirando nada da outra; que só estava oferecendo o que tinha de sobra.
Seus argumentos era lógicos e me propiciaram algum conforto, mas não me livraram da culpa que sentia. No entanto, diante daquele rosto demonstrando tanto carinho, amor e admiração, era difícil não apertá-la nos braços, mergulhar na sua boca, misturando nosso amor.
Quando voltávamos para a cidade, tive uma surpresa que aumentou bastante a culpa que sentia. Perguntei a sua idade e ela disse que faria dezoito anos no próximo mês. Pela aparência, eu estimara que ela teria vinte e dois ou vinte e três anos. Me senti um verdadeiro corruptor de menores. Ela argumentou que a idade cronológica importava pouco, que muitas vezes, se sentia mais madura que a própria mãe. Que o que eu estava lhe proporcionando seria bom em qualquer idade, para qualquer um.
No dia seguinte fui para São Lourenço e, na Sexta-feira fui para São Paulo, direto para a faculdade, onde tinha uma reunião do movimento estudantil. Em casa, a relação com a mulher e as filhas era de um amor intenso. A lembrança da Rita interferia nessa relação, porém, não diminuía a intensidade do que eu sentia por elas. Ela dividia o espaço em meu pensamento, ocupado pelas obras e pelo movimento estudantil, além da preocupação com a política e os problemas sociais. Não sei se era verdade ou tentativa de atenuar a culpa, mas não sentia que o amor pelas mulheres da minha casa tivesse se alterado. No entanto, a culpa por estar traindo e por estar interferindo negativamente no futuro de uma adolescente, me incomodava muito. Não havia racionalidade que a eliminasse.
Com o passar do tempo, o sentimento de culpa foi aumentando. O trair a mulher já não era tão importante, tinha consciência de que não lhe estava tirando nada. No entanto, foi crescendo o sentimento de que traia a mim, meus princípio e valores. Como poderia continuar lutando contra o egoísmo e a hipocrisia, se me deixava dominar pela emoção, desconsiderava a fidelidade e impedia que uma adolescente seguisse o curso natural da vida? Aquilo não poderia continuar e decidi por um fim naquele relacionamento.
Comuniquei à Rita minha decisão. A argumentação eu já vinha sustentando desde o início. Disse-lhe da minha incapacidade de superar aquela dificuldade. Que precisávamos nos afastar, mas que seria impossível vivendo tão próximos, numa cidade tão pequena. Sugeri que ela atendesse o pedido da irmã e se mudasse para Campinas, onde poderia continuar os estudos mais facilmente. Se ela não aceitasse essa opção, eu teria que sacrificar meu trabalho, desistindo daquela obra. Essa conversa aconteceu num verdadeiro mar de lágrimas, dela e minhas. Verificando minha irredutibilidade, ela acabou cedendo e prometeu ir embora.
Na última noite, a despedida foi dramática. Foram horas de choro convulsivo, abraçados, inundando-nos de lágrimas. Senti me despedindo de uma pedaço de mim. Deixei-a em casa e fui direto para São Lourenço, evitando vê-la ir embora na manhã seguinte.
Quando voltei, dois dias depois, o Diego me puxou para o escritório e, como quem vai revelar uma verdadeira bomba, me contou que a Rita viajara na manhã do dia anterior. Que tudo indicava que fôra definitivamente. Eu não lhe contara o que vinha acontecendo, nem a decisão final. Quando, no início, lhe falei sobre o sentimento de culpa, ele riu muito e disse que eu estava louco. Não acreditava que alguém, podendo aproveitar um mulherão daquele, pudesse pensar em qualquer outra coisa, principalmente, em sentir culpa. Para ele, a esposa era a mãe dos filhos e as outras mulheres eram objeto de prazer. Ele não poderia entender o que se passava dentro de mim.
Os dias seguintes foram terríveis. Era um sofrimento muito grande. Só o pensamento na mulher e nas meninas me confortava. Sentia-me incompleto, faltava um pedaço de mim. Os dias demoravam a passar e as noites eram intermináveis.
Na semana seguinte, eu acabara de tomar banho e me preparava para ir jantar, quando o Diego me procurou no hotel. Demonstrando um sorriso zombeteiro disse: “pediram pra vir te chamar. Advinha quem é?” Meu coração disparou ao mesmo tempo em que senti uma profunda revolta. Era ela. Voltara em menos de dez dias.
Fui encontrá-la dominado pela revolta. Eu sofrera terrivelmente para solucionar um problema e ela descumpria o combinado, voltando à estaca zero. Ela veio ao meu encontro com um sorriso algelical, me pedindo para ouvi-la antes de recriminá-la.
Disse que imaginara que sofreria muito com a separação e por isso relutara tanto para aceitá-la. No entanto, por mais que já tivesse sofrido e imaginado que aquilo seria muito pior, não poderia imaginar que chegaria a tanto. Que desta vez, não havia confusão nem atropelamento de pensamentos, como na época em que tentara o suicídio. Era um pensamento só: Ter perdido o maior valor que conhecera, maior que a própria vida. Percebendo minha preocupação, continuou: Não pensei em suicídio, porque você me mostrou que sempre é possível recomeçar e que a vida sempre nos renova as oportunidades. No entanto, avaliando a realidade, desenvolvi o seguinte raciocínio: Não poderei Ter você por muito tempo, conheci o sofrimento por te perder e sua imensurável intensidade; você me ensinou muito, me tirou do fundo do poço e poderá me ensinar muito mais. Diante dessas considerações, conclui o seguinte: Não vejo como poderei evitar o sofrimento ao te perder, portanto, perdendo-te agora, além de antecipar o sofrimento, perderei de desfrutar o teu amor e conhecimento por mais algum tempo. Por isso voltei: para diminuir o prejuízo. Já que não há como alterar o débito, vim tentar acumular o maior crédito possível, aproveitando o máximo até que a separação seja inevitável.
Disse-lhe que sua argumentação era de uma lógica inquestionável, no que se referia a ela. No entanto, permanecia a questão da traição e do risco que sua descoberta oferecia a meu casamento. Ela disse Ter considerado isso também. Que esse risco existia e que seria proporcional ao tempo que permanecesse o relacionamento, no entanto, se mesmo descobrindo a traição, minha mulher preferise me perder à perdoar; seria porque não tinha noção do meu verdadeiro valor, nem do amor que eu lhe dedicava.
Era mais uma argumentação razoável, mas mesmo que eu fosse perdoado, não evitaria os problemas e sofrimento que a descoberta provocaria. Ela jogou a cartada final: me pediu para considerar o que ela representava para mim e se, isso, não compensaria o sofrimento por uma eventual descoberta. A argumentação dela me surpreendia e me lembrava a ação dos vigaristas, que envolviam suas vítimas com argumentos tão ardilosos, que dificultavam tremendamente às vítimas não cair em seus golpes. Cheguei a considerar se não seria o caso dela.
Fiquei um tempo em silêncio, olhando-a nos olhos, percebendo aquele olhar suplicante, revisando a reflexão e verificando-a inquestionável. O problema é que a emoção resiste em se submeter à razão. Se a traição fosse descoberta, minha mulher sofreria. Percebi que, mesmo que a argumentação não fosse tão forte, eu não resistiria àquele olhar, à sua presença. Enlacei-a num abraço e nos beijamos buscando aplacar o desejo que nos consumia, esquecer o sofrimento que passáramos e desfrutar o que pudéssemos.
Não fosse o medo de ser descoberto e causar sofrimento a pessoas que eu amava tanto, a felicidade teria sido plena. Pude comprovar que era possível amar duas mulheres, intensamente, ao mesmo tempo; contrariando o que a maioria das pessoas acreditava. Passei a acreditar e defender o desfrute amoroso com mais de uma pessoa, convencido de que ninguém perderia nada e alguém ganharia muito. Aquele caso demonstrava isso. Anos mais tarde eu comprovaria que as coisas não são bem assim.

O problema de falar em público estava resolvido. Não compreendia ainda como aquilo acontecera, mas foi uma barreira já ultrapassada. No entanto, o escrever, continuava sendo impossível. Escrever no diário de obra era a tarefa profissional mais difícil. Outros documentos eu nem me atrevia e vivia pedindo ajuda quando precisava redigir algo. Essa dificuldade começou a me incomodar muito. Lia os diários de obra e sentia vergonha do que escrevera. Me ocorreu pegar um caderno e começar a escrever algo, buscando eliminar aquela barreira.
Já carregava o caderno na pasta a mais de duas semanas, pegava nele várias vezes ao dia e à noite nos hotéis, mas continuava em branco. Não atinava nem por onde começar, sobre o que escrever. Numa noite, em São Lourenço, me ocorreu escrever sobre o que estava acontecendo comigo e a Rita. Gastava horas para escrever um parágrafo. Com medo de que alguém pegasse o caderno e me associasse ao personagem, intencionei alterar a história para evitar esse problema.
Se me faltava competência para redigir, a deficiência era maior para criar. O disfarce funcionava como uma máscara transparente. O carro tinha um pequeno porta bagagem, fundo, atrás do banco traseiro. No fundo desse espaço eu carregava uma pasta velha, do tipo executivo, com cópias dos cadernos de encargo das obras, para necessidades eventuais. Quando ia para São Paulo, guardava o caderno, em que escrevia, ali.
Eu sabia que minha mulher vivia bisbilhotando minhas roupas e bolsos a procura de algum indício de traição. Não demonstrava ciúme exagerado, mas vivia procurando. Eu não ligava porque não queria perder tempo com discussões inúteis e porque não tinha nada a esconder.
Num final de semana eu fôra para São Paulo na Sexta-feira, mas teria que voltar no Domingo porque havia um trabalho a ser feito na obra de São Lourenço e o profissional que poderia faze-lo alegou que só poderia ir no Domingo. Ele me pedira para estar lá para orientá-lo.
No Sábado pela manhã, enquanto eu dormia, minha mulher fez uma revista geral e descobriu o caderno. Quando acordei ela me mostrou a descoberta, afirmando que aquilo provava que eu estava tendo um caso com uma mulher. Não eram mais que cinco ou seis folhas escritas e o arremedo de estória se referia a um romance entre um peão de obras e uma mulher que conhecera em um bar.
Argumentei que estava tentando escrever alguma coisa para tentar eliminar a barreira que me impedia de redigir textos. Ela argumentou que se fosse verdade, eu não precisaria esconder o caderno. Disse-lhe que fazia isso por vergonha de que alguém descobrisse minha incapacidade, ao ler um texto tão ruim. Ela defendeu que eu poderia escrever sobre a família, mas escolhera faze-lo sobre um romance. Isso demonstrava que aquilo era um relato do que estava acontecendo comigo e que eu trocara os personagens para não ser descoberto. Ela afirmava categoricamente que eu tinha uma amante em São Lourenço e que iria no Domingo para me encontrar com ela. Que o orientar um trabalho era pura desculpa para justificar o adiantamento da viagem.
Como ela não aceitasse meus argumentos e fosse ficando cada vez mais exaltada, temi que as crianças presenciasse aquilo e decidi acabar com a discussão, propondo-lhe que fosse comigo para São Lourenço, investigasse o que quisesse e tirasse suas próprias conclusões. Ela concordou, inclusive de não tocar mais no assunto até a viagem. Disse que deixaria as meninas na casa de seus pais e que diria que aproveitaria minha ida no Domingo para conhecer a cidade e que voltaria de ônibus.
Saímos no Domingo cedo. Por mais que me esforce, não lembro o que conversamos durante a viagem. Sinto que estava tranqüilo por saber que, em São Lourenço, ela não encontraria nada, mas que o sentimento de culpa me incomodava muito. Eu acreditava que não a privara de nada, mas tinha consciência de que sofreria bastante se descobrisse a verdade. Eu a amava muito e não economizava em demonstrar isso. Ela tinha um marido carinhoso, trabalhador, preocupado com a família, além de não se omitir quanto aos problemas sociais, lutando, tentando contribuir para corrigir distorções. Ela estava muito mais preocupada com o que ele poderia estar oferecendo a outra mulher, do que ao que tinha. Eu tinha consciência que a educação moral, baseada em preconceitos, isenta de racionalidade; ocasionava isso, mas não podia concordar. Não conseguia admitir que as qualidades de alguém, pudessem ser tão desvalorizadas, enquanto erros e falhas eram elevados ao ponto mais alto do pódium.
Chegando em São Lourenço, passei na obra, dei as orientações iniciais ao profissional que faria o trabalho, levei-a até o hotel e deixei-a a vontade para fazer o que quisesse. Disse-lhe que eu voltaria para o almoço, mas que não tinha horário determinado para faze-lo. Voltei para a obra e permaneci ali até o início da tarde.
Mesmo acreditando que não corria riscos, me sentia incomodado. Tinha facilidade para admitir erros, principalmente por considerá-los fonte de aprendizado. Não gostava de errar nem de admitir que errara, no entanto, sabia que tentar escondê-los ou justificá-los sem razão; só aumentava os problemas e impedia o possível aprendizado. O que me impedia de admitir o que estava acontecendo, era a incapacidade dela analisar racionalmente a situação, acompanhada da maioria das pessoas que a apoiariam na interpretação preconceituosa.
Fui para o hotel, almoçamos e subimos para o apartamento, onde me deitei e dormi. Quando acordei, ela não estava no quarto. Havia um bilhete na mesinha de cabeceira, onde ela comunicava que havia ido para Santa Rita. Consultei o relógio e verifiquei que o único ônibus que ligava as duas cidades partira a mais de uma hora. Seria difícil interceptá-lo antes que chegasse lá. Decidi que não tentaria, pois não acreditava poder demovê-la de seu intento. Quando chegasse a Santa Rita, não teria a menor dificuldade em saber a verdade. A Rita já sabia que isso poderia acontecer a qualquer momento. Eu não tinha como avisá-la de que o momento chegara. Considerei que, já que as coisas chegaram àquele ponto, o melhor seria permitir a descoberta, admitir os erros e buscar a melhor solução para a situação. Me senti aliviado e voltei para a obra, acompanhando os trabalhos até o final, no começo da noite.
Sai cedo e fui para Santa Rita. Estava triste, mas leve. Sabia que o desfecho, qualquer que fosse, me causaria muito sofrimento e aguardava sereno, triste, mas aliviado. A mentira chegara ao fim, o julgamento aconteceria, eu apresentaria minha argumentação, seria condenado, pagaria minha pena e me livraria da culpa. Viajei como quem se dirige a um tribunal, consciente de que fôra vítima da emoção, que tentara fugir da armadilha que ela me preparara, que me esforçara para promover o bem e evitar o mal, mas fôra incompetente para mentir.
Enquanto Santa Rita ficava em uma das margens do rio Sapucai, a estrada passava pela outra. Havia duas pontes para a travessia. Ao entrar em uma delas, o encarregado de pedreiros da obra, se atirou na frente do carro e, por pouco, não o atropelei. Atropelando as palavras, me disse que minha mulher estava na cidade, aconselhando-me a fugir. Ele estava agitado como se participasse de uma aventura excepcional. Ele me disse que o encarregado dos carpinteiros estava de plantão na outra ponte. Pedi que subisse no carro, peguei o que estava na outra ponte e fomos para a obra. Quando desci do carro, observei a Rita conversando com minha mulher, sentadas em um banco na rodoviária, em frente da obra. Os dois desceram do carro como ratos que abandonam o navio e correram para dentro da obra.
Ao entrar na obra, verifiquei que os operários procuravam os melhores ângulos para presenciar o que aconteceria. Intimei-os a voltar ao trabalho e pedi ao mestre e aos encarregados para que cuidassem disso. O Diego, entre divertido e preocupado, me disse que passara o final de semana ali, com a namorada, e que presenciara a chegada de minha mulher. Que, ao descer do ônibus, se dirigira a um grupo de mulheres reunidas em frente ao salão da cabeleireira e que não precisara mais que alguns minutos para saber do meu envolvimento com a Rita. Dali, fora direto para a casa da Rita com quem conversara por muito tempo. Que dormira no hotel e que já fazia algum tempo que as duas conversavam ali na rodoviária.
Percorri a obra fazendo observações, dando instruções e fui para o escritório cuidar da burocracia. Precisei expulsar o Diego, que teimava em continuar contando detalhes do ocorrido. Me dediquei a atualizar o diário e organizar a papelada, pois não sabia o que aconteceria e não pretendia que a obra pagasse por meus problemas.
Quando sai para a rua, vi que minha mulher estava sozinha na rodoviária. Peguei o carro, estacionei junto a onde ela estava e convidei-a a entrar. Dirigi até uma estrada de terra na saída da cidade, estacionei e pedi que ela procurasse se acalmar, controlasse o ódio que a levava a falar descontroladamente, para que pudéssemos tentar buscar uma solução. Passei mais de quinze minutos ouvindo a repetição de frases tão antigas quanto a irracionalidade que as criara. Finalmente ela se dispôs a ouvir.
Declarei-me culpado perante a lei, as regras sociais e os cânones religiosos. Que lhe reconhecia todos os direitos que essas instituições lhe outorgavam. Ela alegou que eu agia assim porque pretendia ficar com a outra. Disse-lhe que não; que era o simples reconhecimento de que existem regras, que eu as infringira e que não podia me furtar às conseqüências.
Ela quis saber por que eu fizera aquilo. Disse-lhe que, embora tivesse me esforçado muito, não resistira à paixão e me deixara levar. Que a força da emoção fora muito maior que a da razão e que não consegui evitar que aquilo acontecesse. Quis saber o que eu pretendia fazer agora. Disse-lhe que a primeira escolha deveria ser dela. Que tinha duas opções: separar-se de mim, recebendo todos os direitos, ou compreender a importância que ela tinha para mim, que eu não pretendera prejudicá-la, a falabilidade humana, a minha história e a disposição de tentar evitar que acontecesse novamente, relevando o acontecido, possibilitando que continuássemos juntos.
Ela voltou a repetir aquele conjunto de frases representativas da preconceitualidade e despidas de razão, caracterizando o domínio da emoção e externando a presença do ódio, do amor próprio ferido, do egoísmo e do desejo de vingança. Deixei que desabafasse por algum tempo, interrompi-a e chamei-a à razão, para que pudéssemos buscar a melhor solução. Sugeri que fôssemos almoçar, desde que ela pudesse se controlar, onde poderíamos continuar a conversa. Ela concordou e fomos a um restaurante que havia ao lado do hotel, onde eu nunca havia ido.
Sugeri que ela ficasse até o dia seguinte, evitando voltar para casa naquele estado e tendo tempo para refletir sobre o que eu dissera e, se possível, decidir entre as duas opções. Disse-lhe que a única condição que eu impunha, era que, se optasse por continuar comigo, se esforçasse para esquecer aquele episódio, evitando evocá-lo, principalmente, para justificar erros seus. Fiquei de ligar para São Paulo avisando que sua volta seria retardada. Durante o almoço me limitei a responder suas perguntas. Ao final, deixei-a no hotel e voltei para a obra, onde a curiosidade saltava aos olhos e gastei um bom tempo relatando o resultado da conversa.
À noite, ela me relatou a conversa que tivera com a Rita e que influenciara muito sua decisão de continuar comigo, desde que eu termiasse definitivamente o outro relacionamento. É claro que eu faria isso, no entanto, agora, sabendo como a Rita se comportara, não omitindo nenhum detalhe do acontecido, principalmente minha opção pela família; seria muita mais difícil me afastar dela. Não estava perdendo só um grande amor, perdia, também, uma pessoa de caráter.
Procurei a Rita, contei-lhe a conversa que tivera com minha mulher, comuniquei-lhe a decisão, agradeci sua honestidade, reiterei o quanto fôra importante para mim, considerei que sofreríamos muito, mas que chegara a hora do fim. Pedi, e ela se prontificou, a se manter afastada de mim, consciente do quanto seria difícil para nós dois, mas disposta a envidar todos os esforços para conseguir. Despedimo-nos com um beijo e fui embora, não conseguindo evitar as lágrimas que teimavam em rolar.
Eu imaginara que seria difícil, mas a realidade se mostrou cruel. A Rita voltou a freqüentar a sorveteria e passava muito tempo com o olhar fixo na obra. Eu evitava olhar para ela, mas saber de sua presença ali, me atormentava. Chega a ser uma aberração duas pessoas se amarem tanto, estarem tão próximas e não poder se relacionar. Ela começou a me mandar recados pedindo que fosse encontrá-la, que precisava conversar. Eu me negava, acreditando que isso só pioraria as coisas.
Ainda faltavam alguns meses para o término da obra e cheguei a duvidar que teria forças para continuar até o fim. Depois de muito tempo, como ela não desistisse de me mandar recados, concordei em encontrá-la no cinema. Pedi que ela entrasse depois do filme Ter começado, pelo corredor da direita e, como eu já estaria lá, a puxaria para o lugar que eu estaria.
Ela disse que havia se empenhado em se afastar de mim, mas que sua força se mostrava insuficiente e o sofrimento estava machucando demais. Sugeriu que nos encontrássemos de vez em quando, em outra cidade, onde ninguém nos conhecesse. Argumentei que isso seria prolongar o sofrimento, que eu havia empenhado minha palavra e não poderia faltar com ela. Recomendei-lhe ir para a casa da irmã, esperando que a distância nos ajudasse a esquecer.
Era uma situação terrível, sentados lado a lado, incendiados pelo desejo e tendo que manter-nos afastados. Ela disse compreender a necessidade racional da separação, no entanto, a emoção não dava trégua e cobrava insistentemente a aproximação. Conclui a conversa dizendo que sabíamos que seria assim, pedi que buscasse meios de me esquecer porque eu iria até as últimas conseqüências para cumprir o prometido. Levantei-me e fui embora, deixando-a em prantos.
Minha mulher disse que deixara o número do telefone de uma amiga com algumas mulheres de Santa Rita, para que a avisassem caso eu continuasse a me encontrar com a Rita. Vira e mexe, me dizia que haviam ligado acusando que eu continuava com ela. Eu sempre dizia a mesma coisa: que era mentira e que se não acreditasse, o melhor seria nos separarmos pois eu não poderia provar o que dizia e não suportava aquelas acusações injustas. Ela se calava, mas depois de algum tempo, voltava à carga.
Na última vez que fui a Santa Rita, para fazer a entrega definitiva da obra; estava acontecendo a festa da padroeira da cidade. O engenheiro do banco chegara tarde e o trabalho só foi concluído à noite. Por haver muitos carros na cidade, por causa da festa, ao chegar, não encontrei lugar para estacionar perto da obra e tive que faze-lo num lugar mais afastado. Quando me dirigi para lá, para ir embora, a Rita me esperava junto ao carro. Ela disse saber que era a última vez que estaria ali. Pedi-lhe para não dizer nada, pois palavras eram insuficientes para nos poupar. Que o silêncio deveria marcar nossa despedida final. Nos abraçamos demoradamente, encharcando nossos ombros de lágrimas, afastei-me dela, entrei no carro e parti.
Você já foi privado de um grande amor? Se não foi, não conseguirei definir o que é. Se já foi, não precisarei fazer isso.

Eu acreditava que o acontecido atingira fortemente minha mulher e, por isso, mesmo tendo imposto que não admitiria que aquilo servisse de pretexto para me cobrar algo ou me agredir de alguma forma; relevava quando ela descumpria o combinado.
A construtora do sogro do Edgar estava construindo um prédio escolar para o estado, que era um protótipo de uma experiência em pré-moldados. A obra vinha apresentando muitos problemas e, como eu tivesse terminados as obras de Minas, me propuseram tentar dirigir a execução daquela e eu concordei.
Era uma obra bastante grande, ocupando todo um quarteirão num bairro da periferia, próximo de onde eu morava. Se por um lado tive que enfrentar muitas dificuldades e problemas, por outro, era a oportunidade de estar mais próximo da família.
As peças pré-moldadas em concreto, eram fabricadas no próprio canteiro de obras e a encarregada desse trabalho era uma arquiteta recém formada, a Ariete. O escritório dela ficava em um barraco isolado do da obra.
Devido ao grande número de problemas que eu tinha para solucionar, passaram vários dias em que nosso único contato eram cumprimentos ao nos cruzarmos. Quando precisei de informações sobre o andamento da fabricação de peças, fui conversar com ela e nos reunimos no seu escritório. Depois da conversa técnica, continuamos a falar sobre generalidades e começou ali uma grande amizade. Enquanto eu via o mundo através das ciências exatas, ela se pautava mais pelas humanas. Enquanto eu era céptico, ela era sonhadora. Ao invés dessas diferenças nos afastarem, ao contrário, nos uniram, propiciaram que aprendêssemos muito um com o outro, além de nos complementarmos. A partir daquele primeiro encontro, passamos a conversar muito. Como o trabalho nos exigia muito, conversávamos depois do expediente. Não demorou para que começassem os comentários de que estávamos tendo um caso amoroso. Para evitar o crescimento desses comentários e para evitar maiores problemas, procurávamos conversar à vista das pessoas, levei-a para almoçar em minha casa, apresentei-a à minha mulher e procurei que, pelo menos de vez em quando, tivessem contato. Ela era noiva e nunca tivemos qualquer tipo de envolvimento além da amizade e da relação profissional.
Essa obra apresentava problemas de toda ordem, desde insuficiência de equipamentos, falta de operários especializados, exigência de prazos incompatíveis com a necessidade, dificuldades financeiras, em fim, exigia, como se costuma dizer: matar um leão por dia. Isso me exigiu um empenho muito grande, no entanto, me propiciou um enorme conhecimento, avaliar minha capacidade de reagir a imprevistos, improvisar e agir emergencialmente.
A Ariete tinha uma capacidade incrível para supervalorizar problemas. Sofria terrivelmente quando eles apareciam e admirava exageradamente as soluções. Nem mesmo a rotina diária de surgimento e solução de problemas a fizeram mudar a maneira de ser. Depois de se desesperar diante do problema, considerava genial a solução, por mais corriqueira que fosse. Essa amizade perdurou por muitos anos e, sempre que possível, mantinhamos contato, além de compartilharmos vários trabalhos.
No final dessa obra, a construtora do Edgar havia ganho a concorrência para construir um prédio do Banco do Brasil no bairro do Tucuruvi, em São Paulo; outro em Araruama, no estado do Rio de Janeiro, na região dos lagos e outro em Guaratinguetá, interior de São Paulo, no vale do Paraiba. Como a primeira a ser iniciada foi a do Tucuruvi, fui encarregado de iniciá-la.
Quando foi preciso iniciar a obra de Araruama, fui designado para dirigi-la, enquanto o Duda e o Edgar se encarregariam das outras.
Quando fui trabalhar na construtora do sogro do Edgar, ele achou melhor que eu me desligasse da construtora, fizemos um acordo sobre os direitos trabalhistas que eu tinha e ele transferiu o carro para mim como forma de pagamento. Quando assumi a obra de Araruama, ao invés de ser registrado como empregado, passei a ser um prestador de serviço, como autônomo. O Edgar me passou um carro, passat, que havia sido de sua mulher, para que eu o usasse, como acontecia com o outro. Eu vendi o meu carro e coloquei o dinheiro em uma caderneta de poupança.
O desenhista que trabalhava na construtora e que se tornara muito meu amigo, expressou a vontade de adquirir um terreno para, no futuro, construir uma casa, uma vez que morava na casa da sogra. Sabendo que eu também desejava isso, sugeriu que comprássemos um lote em sociedade, onde construiríamos uma casa para cada um. Quando eu concordei, esse objetivo se tornou uma verdadeira obsessão para ele. Quando eu vinha de Araruama, nos finais de semana, ele me fazia pegá-lo e sair em busca de terrenos que estivessem à venda. Passamos meses procurando até que encontramos um que se enquadrava no que pretendíamos e podíamos. Como ele não tivesse nenhuma poupança, o Edgar lhe prometera que a construtora lhe emprestaria o dinheiro necessário. Eu usaria o dinheiro conseguido com a venda do carro.
Combinamos com o vendedor que preparasse a documentação e que dali a duas semanas nos encontraríamos para concluir o negócio, quando pagaríamos a totalidade do valor combinado. Pedi a minha mulher que, na durante a semana em que teríamos que efetuar o pagamento, ela fosse à instituição onde tínhamos depositado o dinheiro e o sacasse, pois eu só voltaria na Sexta-feira à noite e não teria como faze-lo.
Quando cheguei, naquela Sexta-feira à noite, ao invés de ela me entregar o dinheiro, me disse que fora roubada, na saída do banco. Sofri um golpe terrível. Era o único dinheiro que tínhamos. Depois do impacto da notícia e da natural revolta, considerei que era um fato consumado, contra o que nada poderia fazer. Roubos acontecem e, infelizmente, eu havia sido vítima de um deles. No Sábado pela manhã, liguei para o Edgar, contei-lhe o ocorrido e ele se prontificou a me emprestar o necessário para que pudesse saldar o compromisso.

Eu continuava a participar ativamente da política estudantil e da luta por mudanças na legislação profissional. Houve um congresso muito importante em Maceió, Alagoas, onde estariam lideranças de várias regiões do país. Eu não poderia ir com os outros por causa do trabalho, mas não poderia deixar de participar. Comprei, financiadas em dez meses, passagens de avião para ir do Rio de Janeiro a Maceió e de Maceió para São Paulo. Fui na sexta-feria à tarde e voltei no domingo.
Ao chegar à Maceió, fui recebido pelo Helinho, da Bahia. Havia conseguido um carro emprestado para me pegar no aeroporto. Fomos direto para a Universidade Federal, onde se realizava o congresso.
Quando entrei no recinto, o Argemiro, do Rio Grande do Sul, que fazia uso da palavra; ao me ver, convocou-me a subir ao palco e falar a respeito do problema que os alunos de tecnologia sofrem ao tentar ingressar no mercado de trabalho. Falei do corporativismo dos profissionais tradicionais, empenhados em reservar para si todos os direitos, submetendo-nos a eles, como meros auxiliares. Que além de agirem nos conselhos profissionais, onde reinavam absolutos; influenciavam fortemente os conselhos federal e estaduais de educação, onde tinham grande representação; impedindo que estes agissem para corrigir as distorções existentes. Declarei que essa ação corporativista era facilitada por um governo ditatorial que beneficiava os poderosos em detrimento dos injustiçados.
Quando dizia isso, olhando para uma janelinha na lateral do palco, onde ficava o operador do som, vi-o fazer um sinal, cruzando dois dedos de uma mão com dois da outra, representando uma grade; querendo dizer que eu corria o risco de ser preso. Continuei a minha explanação e, ao término, quando desci do palco, vários assistentes me perguntaram se eu não tinha medo de ser preso, por causa das declarações que fazia, acusando um governo autoritário e violento. Eu tinha plena consciência dos riscos, por isso evitava exageros e não me expunha desnecessariamente. Havia muita arbitrariedade, porém, o medo fazia com que o monstro fosse muito pior do que realmente era.
Ao final dos trabalhos daquela noite, os organizadores comunicaram que haveria uma manifestação no centro da cidade, em repúdio a uma carta bomba que havia vitimado uma secretária da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro. Que depois, poderíamos usar o ônibus da Universidade para um passeio.
A manifestação foi pacífica, onde foi lida uma carta aberta e gritadas algumas palavras de ordem contra o terrorismo de estado. Logo depois, entramos no ônibus que saiu da cidade e pegou uma estrada. Pouco depois ele deixou a estrada, entrando em uma estradinha de terra no meio do mato. Temi que estivéssemos sendo levados para alguma emboscada, mas logo verificamos que era um lugar conhecido dos organizadores.
Era um local à margem de um rio onde, sob árvores, havia umas mesas toscas com bancos. Era uma noite sem lua e muito escura. Ao fundo havia um barraco onde se avistava a luz de um lampião. Os organizadores se dirigiram para lá carregando garrafões de pinga, limão e açúcar. Enquanto preparavam caipirinha, dois integrantes que levaram violões, começaram a tocar e, nos juntando a eles, cantamos, conversamos e bebemos caipirinha que, por falta de copos, eram servidas em garrafas que passavam de mão em mão. Ficamos ali, cantando, conversando e bebendo até o final da madrugada.
Quando o ônibus começou a viagem de volta, eu, meio bêbado, me lembrei de que não estava com minha bolsa. Quando gritei pelo Helinho para perguntar-lhe onde a deixara; uma menina que estava a meu lado, no banco, e que eu não tinha notado, me disse que minha bolsa estava no seu carro. Me disse, também, que fora encarregada de me levar até o local onde eu ficaria alojado.
Quando descemos do ônibus, o Helinho confirmou que a menina me levaria ao alojamento do estádio Pelezão, onde eu ficaria alojado. Ao chegar ao carro, notei que era o mesmo que o Helinho usara para me pegar no aeroporto.
A menina me perguntou se eu já vira o nascer do sol em Maceió. Disse-lhe que não. Ela perguntou se eu não queria aprecia-lo. Concordei e fomos até uma praia onde se via o sol nascendo por sobre o mar. Realmente, era uma imagem maravilhosa!
A bebedeira começou a dar lugar à ressaca. Ela sugeriu que fossemos tomar café e me levou até um bar. Durante o caminho para a praia e dali em diante, ela quis saber o que eu fazia, há quanto tempo participava do movimento estudantil, que experiências já vivera, o que pensava a respeito de uma porção de coisas, em fim, não me deixava ficar calado, exatamente o contrário do que eu queria, por causa do sono, da ressaca e do cansaço. Depois do café, com o dia totalmente claro, ela me levou até o alojamento, prometendo vir me buscar dali a três horas para levar-me para o congresso.
Fui acordado por uma mão que segurava meu braço. Olhei em volta como um cachorro que tivesse caído de um caminhão de mudança, reparei que havia uma porção de camas desarrumadas e ouvi uma voz dizendo que estávamos atrasados. Quando olhei na direção da voz, demorei um pouco para reconhecer a menina que me levara para ver o nascer do sol.
Depois de um banho rápido, acompanhei a menina até o carro, passamos em um bar para tomar café e fomos para o congresso.
Durante o dia os congressistas se dividiam em grupos de trabalho, que apresentavam, na plenária da noite, o resumo das discussões. O Helinho, que era da comissão organizadora, me pediu para visitar os grupos e provoca-los a discutir com mais objetividade, pois os trabalhos vinham se desenvolvendo morosamente e dispersos. A menina se ofereceu para me acompanhar e secretariar-me. Se transformou na minha sombra.
O grupo com quem eu conversava na hora do almoço, decidiu não interromper os trabalhos, mandando trazer alguma coisa para que comêssemos ali mesmo. A menina se prontificou a providenciar o lanche e recusou que contribuíssemos com o dinheiro para a compra. Quando ela saiu, alguém do grupo disse que ela era muito rica e que uma despesa daquelas era insignificante para sua carteira.
O trabalho dos grupos foi encerrado por volta das seis horas da tarde e a plenária começaria as oito da noite. A menina me disse que eu deveria aproveitar esse tempo para tomar banho, comer algo e descansar um pouco. Pediu que a seguisse, pegou o carro e dirigiu até uma mansão, num bairro aparentemente rico. Me levou até uma sala luxuosamente mobiliada, me acomodou num sofá e, depois de perguntar o que eu queria beber, trouxe uma bandeja com cerveja e petiscos.
Eu me senti um peixe fora da água. Aquela mordomia e luxo destoavam do ambiente do movimento estudantil, onde a dificuldade financeira era generalizada e, no lugar de boa acolhida, o comum era fugir da repressão. Disse isso a ela que confessou ser descriminada por muitos colegas pelo fato de ser rica. Alegou que não tinha culpa por não ser pobre e que não considerava crime desfrutar o que o dinheiro podia oferecer.
Defendi que o problema da riqueza era servir de parâmetro para escancarar a pobreza. Que não se sente falta do que não se conhece, mas que, ao mostrar o que a riqueza pode comprar, o pobre se sente tremendamente diminuído e sofre além do necessário.
Ela confessou acreditar que seria mais feliz se fosse pobre. Que invejava os colegas menos favorecidos, mas que se divertiam e eram muito mais felizes que ela. Que o dinheiro facilita o consumo mas dificulta relacionamentos leais, desinteressados, onde o ser predomine sobre o ter. Que se sentia num fogo cruzado, discriminada pelos pobres por ser rica e criticada pelos ricos por se relacionar com pobres. Disse ter inveja de pessoas como eu que não têm medo de enfrentar desafios e sacrifícios, lutando pelo que acreditam. Que ela era covarde e não se atrevia a enfrentar a família, abrindo mão do que lhe ofereciam, passando a viver por seus próprios meios.
Disse-lhe que não era verdade que pessoas como eu não têm medo. Que o que nos leva a lutar é o inconformismo, a incapacidade de aceitar o que nos contraria e a vaidade de ser admirado por desafiar. No entanto, em mim, pelo menos, o medo existia e não era pequeno.
Ela me olhava como quem estava diante de um extra terrestre, enquanto eu mastigava castanha de caju e bebia um gole de cerveja. Me ocorreu que não sabia nem o nome dela.
Disse se chamar Mariete, ter vinte e três anos, ser filha de usineiro de açúcar, cursar o último ano de veterinária na universidade federal de Alagoas, que era solteira e estava sem namorado há algum tempo.
Disse-lhe que era casado, que tinha três filhas, que amava minha mulher e que era fiel. Que o tempo passara rápido, que precisava tomar banho e voltar para a plenária.
Depois de tomar banho, comemos um sanduíche com cerveja e fomos para a plenária. No caminho ela me fez prometer que jantaria com ela, no término dos trabalhos daquela noite.
Naquela noite tive o prazer de, mais uma vez, admirar a capacidade de síntese, a direção serena e segura dos trabalhos, o respeito às opiniões contrárias, demonstrados pelo Argemiro. Novamente me ocorreu a questão: por que indivíduos assim são tão raros?
O Argemiro comunicou que um membro da reitoria o informara de que a repressão estava de prontidão para encontrar motivo para acusar o congresso de estar a serviço da subversão. Por isso, a recomendação de, ao final dos trabalhos, dispersar, evitando qualquer tipo de reunião fora da área da universidade.

A Mariete me levou a um restaurante e pediu uma pizza de camarão. Tinha tanto camarão sobre a pizza que era impossível ver a massa. Ela confessou que decidira participar daquele congresso como mais um evento social, uma espécie de confraternização estudantil. Que não imaginava que houvesse tantos problemas, muito menos, que houvesse pessoas empenhadas em discutir e agir na busca de soluções, arriscando-se por problemas coletivos, enquanto a maioria não se atrevia a se arriscar nem em benefício próprio. Que se considerava entre estes e estava muito envergonhada. Disse acreditar que enfrentaria um grande problema, que teria dificuldade de se relacionar com o tipo de homens que conhecera, até ali, depois de ter me conhecido e aos outros que se destacaram nos trabalhos.
Sugeriu que fossemos para sua casa, onde pretendia me explorar ao máximo, conhecendo mais detalhes sobre as idéias e pretensões do movimento. Que eu dormiria lá e, na manhã seguinte, iríamos à praia, antes do meu embarque para São Paulo.
Conversamos até alta madrugada, quando o sono indicou que eu precisava dormir. Ela me perguntou se eu preferia dormir com ela ou sozinho. Optei pela segunda.
Na manhã seguinte, depois da praia, tomamos banho, um lanche e ela me levou até o aeroporto. Nos despedimos com um abraço e ela cochichou no meu ouvido: “como eu disse ontem à noite, vocês me criaram um grande problema”.
Só muitos anos depois percebi com clareza o peso da relatividade. Aliás, foram necessários muitos anos para que eu percebesse muitas coisas, com as quais convivi, sem Ter consciência de sua importância. Depois de conviver com pessoas sensíveis, inteligentes, humildes, solidárias e corajosas; fica difícil conviver com as insensíveis, preconceituosas, prepotentes, egoístas e covardes. Infelizmente, as primeiras são raras exceções, enquanto as segundas abundam. É como conviver com a fome depois de Ter desfrutado de mesas fartas; Ter que andar a pé depois de Ter tido carro a disposição; ficar pobre depois de Ter desfrutado a riqueza; conviver com a falsidade depois de Ter desfrutado de uma grande amizade leal; em fim, a relatividade pode alterar profundamente a escala de valores.
Enquanto recordo a dignidade de companheiros como o Argemiro, a lembrança me mostra uma legião de companheiros que usavam o movimento estudantil para protestar contra insatisfações individuais. Muitos não queriam acabar com os privilégios da minoria e, sim, poder Ter acesso a eles. Havia os que pretendiam usar o movimento como um trampolim para uma carreira política, para poder desfrutar as benécies que ela oferecia. Era comum a influência do romantismo sem a menor interferência da racionalidade, defendendo utopias, acreditando que a distribuição igualitária do capital, possibilitaria que todos ficassem ricos. Em fim, era gritante o antagonismo entre a dignidade que lutava pelo coletivo e a mediocridade que ansiava por benefícios pessoais. Enquanto a solidariedade motivava poucos, o egoísmo dominava a maioria.

“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus. O homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto” (Rui Barbosa)

Durante a construção dessa obra de Araruama, percebi que a origem da maioria dos problemas não estava na tecnologia, técnicas construtivas, ferramentas ou equipamentos; a causa principal estava no ser humano, nas suas deficiências, na sua escala de valores, nos problemas que o atingiam no cotidiano. Os problemas vividos pela família, repercutiam no trabalhador, ocasionando deficiências no trabalho. A prepotência que o faz acreditar que já sabe o suficiente, impede-o de aprender mais. O comodismo o impede de se aprimorar e lutar por melhores condições de trabalho e remuneração. A inveja faz com que se empenhe em prejudicar os melhores ao invés de procurar crescer e ser melhor. Ao invés de lutar por melhorias, empenha-se em sabotar sem perceber que isso prejudica os companheiros e ele próprio.
Até ali, eu acreditava que as causas dos problemas nas obras, se deviam a falta de investimento na educação dos operários, na melhoria e desenvolvimento de ferramentas, equipamentos e máquinas, na melhoria de salários que possibilitassem uma sobrevivência mais digna. Tudo isso era verdade, no entanto, sem conseguir mudar o indivíduo, conscientizando-o da necessidade da humildade, da solidariedade, da importância da razão, principalmente, para se contrapor à emoção maléfica; de que é preciso luta e união para vencer obstáculos; as mudanças técnicas, científicas e tecnológicas teriam pouca chance de sucesso. Essa constatação me levou a mudar o caminho que vinha trilhando em busca de resultados melhores para todos.
Há algum tempo eu vinha estudando e fazendo experiências para desenvolver um método de projetar formas para estruturas de concreto. Isso não era ensinado na faculdade e a única literatura que encontrei a respeito, foi uma apostila de mil novecentos e quarenta e quatro, editada pela associação brasileira de cimento portland. As pesquisas, reflexões e experiências começaram a apresentar bons resultados, possibilitando esquemas de projeto, fabricação e montagem de formas.
Até então, eu acreditava que a ciência exata, a técnica e a tecnologia, eram as fontes necessárias e suficientes par resolver todo e qualquer problema. O sucesso que eu vinha obtendo na busca de um processo para projetar formas, comprovava isso. No entanto, a constatação do quanto a personalidade e as condições emocionais do indivíduo influenciavam o trabalho, me mostrou que as áreas que eu considerava suficientes para resolver problemas, não o eram tanto assim.
Passei a observar, também, no movimento estudantil o quanto os valores e a emoção dos indivíduos influenciava seu comportamento. Se a constatação disso era evidente; o que impedia o uso da racionalidade, para se contrapor e evitar os males causados, era um mistério. Por não compreender o que acontecia com o ser humano, acreditei que o domínio dos preconceitos era grande causadora de os indivíduos gerarem tantos problemas. Acreditava que, naqueles que não tinham maior instrução escolar, a falta de conhecimentos era o motivo principal, que associado às dificuldades econômicas, causavam os problemas por eles gerados. Por isso, defendia a necessidade de investir em educação e promover a melhoria econômica dos trabalhadores como meio de resolver a maioria dos problemas.
A primeira constatação de que o indivíduo era causador de problemas, aconteceu no trabalho. A Segunda, foi no movimento estudantil. Como não poderia deixar de ser, acabei constatando que isso acontecia em toda a sociedade: na família, na igreja, no clube, etc. Eu percebia a influência do ser humano na criação de problemas, mas não conseguia perceber o que acontecia realmente. Acreditei que os preconceitos, a ignorância e a miséria eram as causadoras do comportamento dos indivíduos. Me fixei nisso e, durante muitos anos, não me preocupei com outras possíveis causas.

Terminada a obra de Araruama, fui construir outro prédio do banco do brasil em Salto, interior de São Paulo. Tive a chance de aplicar a técnica já desenvolvida para as formas do concreto e continuar a pesquisar e experimentar. O resultado foi muito bom.
Em um Domingo, como era comum acontecer, fui com a mulher e as meninas numa chácara que o padrasto do Vitor tinha. Iam vários amigos e passávamos domingos muito agradáveis, comendo churrasco, bebendo, nadando na piscina, conversando, enquanto as crianças se divertiam bastante. Nesse Domingo, ao voltarmos para casa, o Vitor sofreu um acidente com o carro, que quase caiu na linha do trem. Felizmente ninguém se machucou. Na Segunda-feira à noite, fui com a mulher e as meninas na casa dele, para ver como estavam. Na volta para casa, quando estávamos quase chegando, uma perua bateu na lateral do meu carro e o jogou contra um poste. Minha mulher bateu a cabeça no parabrisas, quebrando-o e ferindo o rosto. Socorri-a a um hospital mas não puderam salvar um dos olhos que fora gravemente atingido.
Foi um golpe bastante duro. Sofri bastante, considerando que fora uma perda muito grande. Não tive qualquer culpa e ficou muito claro que eu não poderia Ter feito nada para evitar o acidente. O impacto não fora muito forte. Como ela estivesse distraída e solta no banco, o pequeno impacto foi suficiente para que se chocasse com o parabrisas e tivesse o olho perfurado.
Esse episódio me mostrou a solidariedade de amigos e quanto isso é importante como ajuda para superarmos as dificuldades e o sofrimento. O médico que fez a cirurgia de emergência, se tornou meu amigo e passava regularmente em minha casa para acompanhar a evolução do pós-operatório, até que uma prótese fosse colocada para substituir a parte do olho retirado.

Nessa época, aconteceu um congresso na cidade de Bauru, onde havia sido instalado o primeiro curso de tecnologia. Algum tempo antes, havia sido criada a associação dos tecnólogos do estado de São Paulo. Eu nunca quis fazer parte de diretorias, porém, o diretor de assuntos profissionais, dessa associação, temendo represálias por parte da diretoria da faculdade, onde era professor, renunciou. Fui convidado a substituí-lo e aceitei.
A maior parte dos diretores, inclusive o presidente, da associação, eram professores da faculdade de tecnologia de São Paulo e, embora não temessem tanto quanto aquele que pediu demissão, evitavam confronto de idéias com a faculdade. Isso impedia que a associação com firmeza no encaminhamento das reivindicações dos seus associados.
Em uma reunião da diretoria, o presidente comunicou que a associação participaria do congresso em Bauru. Que a associação só poderia arcar com as despesas de dois representantes, por isso, iriam ele e o vice-presidente. Alguns diretores defenderam que eu deveria ir, por ser quem vinha participando mais ativamente, há muito tempo, tanto no movimento estudantil, como na esfera profissional. O presidente continuou alegando que ele e o vice teriam que ir e que não tinham como arcar com a despesa de mais um membro. Acabei com a polêmica ao decidir ir por minha conta, assumindo as minhas despesas.
Como o presidente disse que usaria seu carro para a viagem, combinei ir com eles, aproveitando a carona. Como eu estaria trabalhando em Salto, que ficava no caminho, combinamos que iria com meu carro até um posto de gasolina na estrada em que passariam e, de lá, seguiria viagem com eles.
No dia combinado, cheguei ao ponto combinado para o encontro antes das sete horas da noite. Naquela época, os postos de gasolina fechavam as oito horas da noite. Como os funcionários do posto já se preparassem para fechar e meus companheiros não chegassem; decidi abastecer meu carro e seguir viagem sozinho.
Cheguei em Bauru perto da meia noite. Passei a noite em uma pequena pensão e, na manhã seguinte, fui procurar o local do congresso. Perguntei na faculdade e me informaram o endereço de uma república onde morava um dos alunos que faziam parte da comissão organizadora.
Quando me apresentei ele estranhou dizendo que a associação dissera que só mandaria dois membros e que, por isso, só haviam reservado duas vagas no hotel onde se hospedavam as delegações. Enquanto tomávamos café, o rapaz foi me informando de como funcionaria o congresso e quem participaria. Percebi que o objetivo era fazer crer que essa nova modalidade de cursos era um sucesso. Deveria ser uma espécie de confraternização entre políticos e dirigentes educacionais, comemorando o que eles consideravam um sucesso.
Defendi que a criação desses cursos, realmente fora uma inovação importante, formando profissionais capacitados. No entanto, os formados não tinham nada a comemorar, uma vez que a legislação profissional não lhes reconhecia capacidade e os considerava meros auxiliares dos profissionais tradicionais. Que só haveria o que comemorar quando o produto desses cursos fosse reconhecido e pudesse demonstrar sua capacidade, livre da opressão que impedia que isso acontecesse.
Ele, como a maioria dos alunos desses cursos, desconhecia essa realidade. A escola fazia a apologia dos cursos, propagando que o mercado estava ávido para absorver os formandos. Não lhes eram informadas as restrições que enfrentariam. Ele estava tão entusiasmado com a propaganda oficial que relutou em aceitar meus argumentos. Só se convenceu quando lhe analisei a resolução que definia as atribuições profissionais, comparando as nossas com as dos profissionais tradicionais. Confessou que, embora tivesse conhecimento daquela resolução, não a interpretara devidamente, o que, aliás, acontecia com a maioria dos seus colegas.
Ele sugeriu que fôssemos procurar o professor Henrique, que como ele era descendente de japoneses e também fazia parte da comissão organizadora; para que eu lhe expusesse minhas idéias. No caminho, passamos no hotel onde estavam hospedados o presidente e o vice da associação. Encontramo-los tomando um suntuoso café da manhã. Ao me verem, demonstraram surpresa, como quem acreditara que havia se livrado de um problema e o via reaparecer. Alegaram haver passado no ponto do encontro, mas como eu não estivesse, acreditaram que tivesse desistido. A surpresa os impediu de criar uma mentira menos infeliz, mas optei por não questionar, sabendo que isso não levaria a nada.
Os dois se juntaram a nós e fomos procurar o Henrique. Ele era engenheiro, professor dos cursos de tecnologia e grande entusiasta deles. O Takara nos apresentou e ele demonstrou satisfação em poder Ter contato com representantes dos profissionais, o que era difícil na cidade, uma vez que os formados não voltavam à faculdade para contar suas experiências.
Quando expus minhas idéias a respeito da situação, dos problemas que os formados enfrentavam no mercado de trabalho, ele se mostrou tão surpreso quanto o Takara. Ele era um grande defensor desses cursos, que eram novidade no Brasil, mas que eram tradicionais, principalmente, na Europa. Acreditava que esses cursos preparava profissionais mais condizentes com a realidade, com qualidade equivalente e, às vezes, superior, aos cursos tradicionais.
Ele citava o exemplo de sua área de formação: engenharia civil. O engenheiro tradicional, como ele, era formado para atuar em toda a área, que era imensa, abrangendo edifícios, estradas, obras de arte viárias, aeroportos, portos, saneamento, barragens, etc. O tecnólogo tinha formação dirigida para um segmento dessa área, por exemplo, o meu caso: edifícios. O meu curso preparava engenheiros especializados em edifícios, evitando conhecimentos mais profundos das outras áreas em que não iria atuar. Ele alegava que era impossível que um engenheiro civil atuasse em toda a área que sua formação abrangia. Que, ao engressar no mercado de trabalho, o profissional atuaria em um segmento, aperfeiçoando-se nele e que a falta de uso, tornaria obsoletos os conhecimentos pertinentes a outros segmentos. Que um engenheiro que tivesse entrado no segmento de edifícios e atuado por alguns anos, ao tentar mudar de segmento, estradas, por exemplo, teria que se reciclar. Para a empresa, era mais interessante e mais vantajoso economicamente, contratar um recém formado e treiná-lo ao invés de reciclar um profissional de outro segmento.
Era tão evidente o que ele defendia e tamanha era sua empolgação, que eu, mesmo vindo defendendo aquela tese há muito tempo, fiquei emocionado. Conversamos por um bom tempo, quando lhe relatei minha experiência profissional e na luta para corrigir as distorções. Ele confessou Ter estado tão envolvido e empolgado com a formação, que não atentara para os resultados no mercado de trabalho, principalmente, por falta de informação a esse respeito. Mostrou-se revoltado, percebendo que o produto que ele ajudava a formar estava sendo sub-utilizado, sem oportunidade de demonstrar todo seu potencial.
Como se aproximasse a hora da abertura do congresso, nos dirigimos para o campus onde ele se realizaria. Depois de uma cerimônia pomposa onde se destacavam muitos políticos, dirigentes de faculdades e membros do sistema educacional; foram formados grupos de trabalho, que discutiriam temas específicos. Os trabalhos desses grupos foram iniciados na parte da tarde, depois de um almoço em uma churrascaria da cidade. O ambiente era de festa.
O Henrique presidiu um grupo, me convocou para ele, onde também participavam o representante do ministério da educação, alguns professores e alunos. Ele escolheu o tema: atuação profissional do tecnólogo. O presidente e o vice da associação participaram de grupos que discutiram o ensino e a formação.
O representante do ministério da educação, dr. Mário, era, também, descendente de japoneses. Era inteligente, sensível e, principalmente, humilde, raridade nos altos escalões do governo. A pedido do Henrique, expus minhas idéias. Elas foram debatidas e analisadas durante toda a tarde.
O Henrique providenciou para que o Dr. Mário e eu ficássemos hospedados no mesmo hotel, providenciando a transferência dos presidente e vice da associação para lá, também. Alegou que estabeleceríamos ali nosso quartel general. Depois de nos instalarmos, nos reunimos na área da piscina, numa conversa regada a cerveja.
O Dr. Mário disse Ter participado do grupo que criara esses cursos e que a intenção era a de modernizar a formação profissional, cuidando para que os alunos tivessem a necessária formação científica e tecnológica, indispensáveis a um profissional qualificado e competente. Sabia que isso contrariava muitos interesses, principalmente dos profissionais tradicionais, de instituições e de escolas particulares; no entanto, não imaginara que os obstáculos criados por eles pudessem criar tantos problemas para o novo profissional. Informou que um motivo importante para a criação desses cursos, era a falta de profissionais para atender a demanda que as perspectivas de crescimento do país previa. Que não descartava a intenção de empresas em Ter disponibilidade de profissionais a custos mais baixos, impedindo-os de ascender além do que lhes interessava.
Concordamos que enfrentávamos forças poderosas, apoiadas por um governo opressor que se esforçava para impedir discussões que contrariassem seus interesses. Era como a luta de David com o gigante. Devíamos Ter consciência de nossa fragilidade e buscar estratégias que nos possibilitassem conquistas muito difíceis.
Depois de jantar na mesma churrascaria do almoço, participamos da plenária da noite onde sobravam discursos poliíticos enaltecendo a iniciativa do governo em criar os novos cursos que possibilitavam acesso à formação superior a quem não tivera essa possibilidade até ali. A noite foi encerrada com mais um jantar num clube da cidade. Ficou claro que aquele congresso tinha como objetivo enaltecer os interesses daqueles contra quem lutávamos. Era uma verdadeira festa para promover as vantagens e camuflar os problemas.
Na volta para o hotel, o Henrique nos acompanhou e nos alertou para dois professores que participavam do nosso grupo, que eram muito ligados à direção da faculdade e que, desconfiava, estavam ali como verdadeiros espiões. Eles defendiam que o tecnólogo era um profissional do fazer e que deveria deixar os cargos de direção para os profissionais tradicionais. Que fazer era muito mais importante que dirigir. Que o futuro se encarregaria de demonstrar isso. Era o discurso oficial a que tanto estávamos acostumados.
Por sugestão do Dr. Mário, decidimos não discutir a busca de estratégias no grupo, fazendo isso fora do alcance dos espiões. Na plenária da noite seguinte, seriam apresentados os andamentos dos trabalhos dos grupos de discussão.
Na tarde seguinte fomos informados de que deveríamos apresentar um relatório dos trabalhos do grupo, que seria apresentado por um porta voz do congresso, na plenária da noite. Não ficamos muito surpresos quando o porta voz desconsiderou nosso relatório e colocou que o grupo recomendava uma maior divulgação da capacidade dos novos profissionais, mostrando as vantagens que as empresas teriam ao contratá-lo. Enfatizou que os problemas enfrentados pelo tecnólogo no mercado de trabalho, se deviam ao desconhecimento que as empresas tinham de seu potencial.
Havia sido repetido o ritual do dia anterior, com almoço, dois jantares e um sem fim de discursos. Na volta para o hotel, o Dr. Mário nos informou de que fora abordado durante o jantar, por um elemento da cúpula do congresso, que lhe insinuou a necessidade de impedir que idéias descabidas fossem discutidas no nosso grupo. Que, quando ele defendeu que o profissional deveria Ter a oportunidade de crescer de acordo com sua capacidade; o indivíduo disse que essa reivindicação colocava em risco a continuidade desse tipo de cursos.
Concordamos que a direção do congresso não nos permitiria divulgar os resultados de nossas discussões. No entanto, era fundamental que isso fosse feito. Como na plenária final a platéia poderia dirigir perguntas aos membros da mesa, onde também estariam o presidente da associação e o Dr. Mário; decidimos preparar um questionário que obrigaria a abordagem do problema principal.
As perguntas foram minuciosamente preparadas, escolhidos os que deveriam faze-las e a quem deveriam ser dirigidas. Antes do início da plenária final, os que formulariam as perguntas foram espalhados pelo auditório, para descaracterizar que pertenciam a um grupo.
O resultado foi o esperado. As perguntas eram tão objetivas que não deixavam margem a que o questionado se furtasse a admitir os problemas ou, ficasse claro que a posição que eles defendiam era totalmente inconsistente. Era evidente a contrariedade e descontentamento demonstrados pelos componentes da mesa, vendo expostos problemas que se esforçavam por esconder. Os discursos preparados com antecedência, não consideraram aquela situação e os que não tiveram capacidade de improvisar, demonstraram a incongruência de seu discurso com a realidade. O tiro saiu pela culatra e o jantar festivo de encerramento mostrou que muitos dos participantes, iludidos até ali, passaram a defender nossa bandeira naquela luta. Era evidente a revolta dos organizadores do congresso e, um deles, chegou a se queixar ao Dr. Mário, de que haviam preparado uma festa para afirmar o sucesso do que defendiam, no entanto, ela fora usada para comemorar sua derrota.
Nossa vitória nesse congresso não teve maior influência na solução dos problemas, mas teve uma importância significativa para denunciá-los e conseguir argumentos para substanciar a luta. Serviu para mostrar, também, que a razão não tem força suficiente para se opor à manipulação emocional articulada pelos detentores do poder, tanto político, quanto econômico.
Ficou claro, também, a submissão de pessoas ao poder em troca de vantagens pessoais. É comum que pessoas ajam contra a razão, que não tem como negar, para ganhar ou não perder vantagens particulares, em detrimento do coletivo. Pude perceber o quanto é difícil combinar dignidade e vantagens materiais, o que só alguns afortunados conseguem.

“Teu futuro está no teu passado. Relembre-o e, quando chegar no ponto certo, terá certeza de Ter encontrado o caminho.”
Até aqui, nada indica que eu tenha encontrado o ponto a que a cigana se referiu. Mas, já que comecei, vou prosseguir na tentativa de encontrá-lo.
Terminada a obra de Salto, iniciei outro prédio para o banco do brasil em São paulo, na vila Diva. Decidi por em prática o processo de projetos para formas de concreto, que vinha desenvolvendo no decorrer dos últimos anos. Nessa época já havia duas empresas que vendiam a forma pronta, projetada especificamente para cada obra. Pedi ao comprador da construtora que orçasse as formas com essas empresas e eu mesmo fiz o orçamento de quanto custaria para construí-la da maneira tradicional. Guardei esses orçamentos e elas foram executadas conforme meu projeto. Quando a estrutura de concreto foi concluída, apuramos o custo da forma executada e o comparamos com os orçamentos que tínhamos. Ela havia custado quarenta por cento do orçamento mais baixo. Além do baixo custo, a qualidade da estrutura fora excelente, sem qualquer defeito, tão comuns nas obras convencionais.
Fiquei eufórico! Conseguira aliar grande redução de custos, associado à excelência de qualidade. Poderia vender projetos, propiciando essas vantagens aos compradores e ganhar um bom dinheiro. Senti como se tivesse descoberto verdadeira mina de ouro.
Nessa época, o Vitor e o Tatu, haviam deixado o negócio de vender biscoitos e haviam montado um negócio para vender carros usados. O negócio fora bem sucedido e eles já estavam com duas lojas. Comentei com eles o resultado obtido nessa última obra e as possibilidades de lucro que o negócio oferecia. Que eu tinha dois obstáculos a vencer: conseguir quem vendesse os projetos, uma vez que eu era totalmente incompetente para isso e juntar dinheiro para abrir a firma e contratar um técnico para confeccionar tabelas de dimensionamento, facilitando o trabalho na hora de projetar. Naquela época, não havia a facilidade dos micro computadores para agilizar os trabalhos, por isso eu pretendia criar tabelas que evitassem cálculos repetitivos. Eles se interessaram pelo negócio e se propuseram a ser meus sócios. Investiriam o capital necessário e se encarregariam das vendas.
O que me provocara a desenvolver um sistema de projetar formas para concreto, foram os defeitos, tão comuns, que o sistema tradicional propiciava. Em segundo lugar, havia a preocupação com o excessivo consumo de madeira, com grande desperdício. A madeira mais usada para esse trabalho era o pinho, obtido pelo desdobro de árvores de araucária. Não havia reflorestamento dessas árvores e as matas nativas estavam se extinguindo. A escassez dessa madeira, que já se fazia notar, ocasionava a entrada no mercado de madeira originada da floresta amazônica. Essa madeira era mais pesada, mais sujeita a deformações, mais difícil de ser serrada, pregada; em fim, introduzia mais dificuldades em um trabalho que já era bastante problemático. Eu acreditava que essa situação se agravaria rapidamente, por isso me empenhei em conseguir uma maneira de diminuir os problemas no produto acabado e diminuir o consumo de madeira. A redução do custo financeiro foi conseqüência e não causa da minha motivação.
Na análise dos resultados dessa experiência, constatei um detalhe que poderia aumentar ainda mais a economia: além de diminuir em muito o consumo de madeira e, principalmente, o desperdício; a facilidade de montagem e desmontagem das formas, diminuía, em muito, a agressão que elas sofriam, propiciando um reaproveitamento bem maior. Nessa obra, especificamente, a reutilização fora de três vezes, no entanto, poderia ser reaproveitada pelo menos mais outras três. Como a estrutura já fora concluída, não havia como continuar o reaproveitamento e, a não ser a madeira que continuou sendo aproveitada em andaimes, o resto foi vendido como lenha. Me ocorreu que essa madeira poderia ser reaproveitada em outras obras, o que poderia ocasionar uma economia ainda maior.
Conversei com o Vitor e o Tatu e sugeri que poderíamos que poderíamos alugar formas ao invés de só vender projetos. Isso nos propiciaria lucrar ao continuar utilizando a madeira que, normalmente, seria jogada fora. Eles concordaram e disponibilizaram o local onde haviam tentado montar uma terceira loja e que se mostrara inviável.
Contratamos um ex-colega meu da faculdade para confeccionar as tabelas de cálculo e minha irmã para secretariar os trabalhos. Eu continuei trabalhando na construtora e, nas horas de folga, orientava os trabalhos.
O Vitor e o Tatu, empenhados em seu negócio, não tinham tempo para promover a venda de projetos e aluguel de formas. Mesmo sendo totalmente incapaz para isso, consegui vender alguns trabalhos para conhecidos, mas era muito pouco. Além de minha incapacidade para vender, esbarrei na inércia dos engenheiros que relutam em experimentar novidades, além de que, muitas obras são administradas por construtoras ou engenheiros autônomos, que são remunerados por uma percentagem do que é gasto. Ao diminuir custos, a remuneração deles também diminuiria, portanto, não tinham interesse em economia acima do normal.
Foi como Ter uma galinha que botava ovos de ouro, que se perdiam por falta de consumo. Todos os trabalhos realizados foram um sucesso e comprovaram as vantagens oferecidas. O dinheiro ganho foi investido no aprimoramento da técnica. No entanto, o negócio não progredia por absoluta falta de consumidores e, não que não os houvesse, mas por falta de quem os convencesse das vantagens que propiciava.
Até hoje me é difícil compreender como desisti de algo tão promissor, que oferecia qualidade, diminuía a possibilidade de acidentes do trabalho, diminuía a necessidade de desmatamento e propiciava grande economia financeira. Quantos negócios oferecem tantas vantagens? No entanto, redundou em fracasso.
Acredito que se tivéssemos investido dez por cento do que gastamos em tecnologia, em um sistema de vendas apoiado em boa propaganda, teríamos obtido o sucesso imaginado. No entanto, isso não foi feito e a frustração dominou a motivação.
Acredito que o que me fez desistir do empreendimento foi a revolta, pela preguiça mental de muitos engenheiros que se negavam a analisar as justificativas técnicas que eliminavam qualquer tipo de risco que pudessem imaginar. Revolta contra o egoísmo e a ganância que levava muitos administradores a rejeitar o negócio porque teriam seu lucro diminuído, desconsiderando a ética que os obrigava a buscar o melhor para o cliente. Revolta por sentir desvalorizado o empenho e o trabalho que eu dedicara por tanto tempo. Provavelmente acreditei que os castigava ao deixar de oferecer um negócio tão vantajoso. Na verdade, o grande prejudicado fui eu, que deixei de obter reconhecimento profissional e sucesso financeiro.
Hoje, ao passar por uma obra e observar as formas para concreto, utilizando técnicas onde fui um dos pioneiros, sinto meu anonimato. Não acredito que tenham copiado meu sistema. O mais provável é que outros tenham se empenhado tanto quanto eu, conseguindo resultados semelhantes. A diferença é que eles tiveram a competência e a sorte que eu não tive.

Nessa época, nasceu minha última filha, a Daiane. Embora eu nunca tivesse intencionado Ter filhos, elas foram nascendo e a Daiane era a Quarta. Para evitar que isso se repetisse, decidimos que minha mulher se submeteria a uma esterelização.
O Tatu me sugeriu que eu empregasse uma pequena economia que tinha, na compra de um carro velho e o reformasse, obtendo algum lucro. Comprei um ford corcel, bem danificado e, aos poucos, fui reformando-o.
Um dos lazeres a que me dediquei nessa época, foi viajar para
Foz do Iguaçu e visitar Puerto Strosner, cidade fronteiriça no Paraguai, que era um zona franca, onde se podia comprar produtos estrangeiros a preços reduzidos. Ia de ônibus e meu companheiro era o Marcos, irmão do Vitor. Eram dezesseis horas de viagem para ir e outras tantas para voltar.
Havia muita demanda por produtos estrangeiros, mas minha incompetência comercial me impedia de ganhar dinheiro com isso. Como desde que começara a trabalhar nunca tirara férias, usava essas viagens como uma forma de lazer. Muitos consideravam que era loucura, mas eu me sentia bem.
Sempre fui grande admirador da evolução tecnológica e me encantei com a possibilidade de gravar imagens em vídeo. Vendi o corcel que reformara e usei todo o dinheiro para comprar uma filmadora. Trazer esse produto do estrangeiro era ilegal, considerado contrabando. Comprei-a com a condição de que o vendedor ma entregasse em São Paulo. Era um risco, os comerciantes dali não mereciam a menor confiança. No entanto, eu que nunca me senti atraído por qualquer tipo de jogo, parece que tinha uma grande atração pelo risco. Comprei e fiquei esperando, sem a menor certeza de que a receberia. No entanto, como viajava para lá quase toda semana, não seria muito difícil conseguir o dinheiro de volta, caso a promessa não fosse cumprida.
Na Sexta-feira seguinte, um homem me ligou dizendo que estava com a filmadora e que eu poderia retirá-la em um local em que marcamos um encontro. Senti grande alívio ao abrir a maleta e verificar que estava completa.
A filmadora me propiciou muito prazer. Gravava imagens das obras, festinhas, a família, em fim, era um tremendo avanço em relação à fotografia, que só registrava imagens estáticas e sem som.
Nessa obra, onde verifiquei o sucesso de meu sistema de projetar formas para concreto; cometi o maior erro de minha carreira. Quando da locação da obra, em que se marcam todos os pontos de localização de fundações, pilares, etc.; por não confiar no mestre de obras, eu mesmo executei esse trabalho. Eram mais de cem pontos a ser marcados. Só errei um: o principal! A legislação do município obriga a que sejam respeitados recuos mínimos dos prédios em relação à rua, laterais e fundo do terreno. Eu errei na primeira medida e, assim, todo o prédio ficou deslocado em direção à rua, diminuindo em setenta e dois centímetros o recuo obrigatório. Isso só foi verificado quando o engenheiro do Banco do Brasil, que fiscalizava a obra, resolveu verificar a locação. Fomos os dois fazer esse trabalho. Quando verifiquei o erro, não pude acreditar que o tivesse cometido. Embora o erro fosse evidente, repeti essa medição quatro ou cinco vezes, inconformado. O erro era muito grave, a construção já ia bastante adiantada e, a rigor, deveria ser demolida e recomeçada na posição correta. O prejuízo financeiro seria enorme, além de impedir que o prédio fosse concluído no prazo estipulado. Era uma Sexta-feira, no final da tarde; por isso deixei para comunicar o erro, à construtora, na Segunda-feira. Me senti mortificado! Não admitia que um erro daqueles pudesse ser cometido, principalmente por mim.
O Edgar e o Duda haviam programado uma pescaria no mar para aquele final de semana. Eles sairiam na Sexta-feira no final do dia e só voltariam no Domingo. Comuniquei isso ao engenheiro fiscal, disse-lhe que eu passaria o final de semana estudando o problema e que, na Segunda-feira, junto com o Edgar e o Duda, decidiríamos o que fazer. Ele, no entanto, logo que saiu da obra, telefonou para o Edgar e lhe comunicou o que havíamos verificado. Eles já estava de saída para a pescaria. Imagino o desespero que a notícia lhes deve Ter causado.
Eu tinha plena consciência da gravidade do problema. Se não conseguíssemos uma solução alternativa, o prédio teria que ser demolido e o prejuízo financeiro poderia levar a construtora à falência. A gravidade da situação exigia o emprego da maior racionalidade possível na busca de alternativas menos danosas. Nessas situações, a emoção gera sentimentos tão fortes que dificultam tremendamente o raciocínio. Eu me sentia um lixo! Sabia que precisava dominar a emoção e conseguir usar a racionalidade. Lembrei do entusiasmo com que o Edgar e o Duda haviam programado aquela pescaria, que o trabalho não permitira que acontecesse antes. Considerei que, no final de semana, não seria possível encaminhar qualquer solução. Que eles não teriam melhores condições que eu para analisar o problema. Que seriam tão afetados pela emoção quanto eu. Por isso, decidi não privá-los do prazer tão programado e esperado. Eu refletiria durante o final de semana e, na Segunda-feira, apresentaria o problema e a análise que conseguisse até lá.
No entanto, a ansiedade do engenheiro fiscal impediu isso, não sei por quais motivos. Sua atitude provocou o cancelamento da pescaria, a antecipação do sofrimento deles e me impediu de oferecer alguma solução, por falta de tempo para refletir. Nem por um instante considerei a possibilidade de buscar justificativas, muito menos, eximir-me da culpa. Ela evidente e eu sabia que era pura perda de tempo tentar justificá-la. O tempo deveria ser usado na busca de solução, sendo imprescindível evitar usá-lo para justificativas que em nada contribuiriam, só causando mais problemas.
O Duda tinha uma personalidade tranqüila e calma. O Edgar, no entanto, era o oposto. Me recebeu com acusações, descarregando todo o desespero que sentia. Permanecei calado, ouvindo, esperando que se acalmasse. Eu era o culpado e considerei que era justo que ele descarregasse em mim e não em qualquer outro.
Como o tempo passasse e ele não se acalmasse, tornando-se repetitivo; decidi enfrentá-lo e chamá-lo à realidade, alegando que já tivera a chance de acusar, de demonstrar sua revolta, mas que era preciso começar a refletir em busca de solução. Ele, acostumado que estava a tripudiar sobre tudo e todos, tinha dificuldade para dominar a emoção e se deixava arrastar pelo desejo de agredir como forma de amenizar seu sofrimento. Só se controlou quando, aos gritos, ameacei abandonar a construtora e o problema.
Depois de horas debruçados sobre o projeto, não me lembro quem, percebeu que a frente do prédio tinha saliências, que eram jardineiras, tanto no térreo quanto no andar superior. Que o projeto considerara o recuo obrigatório a partir dessas jardineiras. Portanto, a fachada, propriamente dita, continuava obedecendo o recuo obrigatório. Consultada a legislação, verificou-se que as jardineiras poderiam ser consideradas elementos decorativos e que poderiam avançar sobre o recuo.
Depois de consultado o departamento técnico da prefeitura, o projeto foi modificado para legalizar a mudança ocorrida. Felizmente, tanto os prejuízos financeiros quanto de tempo foram insignificantes. As conseqüências foram desprezíveis, o que não diminuiu, em nada, a gravidade do erro. A partir daí comecei a Ter consciência da importância do erro para o aprendizado. Que o ser humano é falível e que todos os cuidados são insuficientes para eliminar as possibilidades de erro. Que a revisão feita por indivíduos diferentes pode minimizar em muito a ocorrência deles. No decorrer da vida pude confirmar essa constatação e perceber sua importância. Que se é impossível evitar a totalidade dos erros, é fundamental aproveitá-los para aprender, evitando, principalmente, que se repitam. Que erros, sem conseqüência, poderiam Ter originado verdadeiras tragédias, que só não aconteceram porque algum mistério as impediu. Um carro viajando em uma estrada, derrapando em uma curva e invadindo a pista contrária, poderá sair ileso ou causar várias mortes, dependendo de, naquele instante, outro carro ocupar o espaço que ele invadiu, ou não. Frações de segundo podem propiciar, ou não, uma tragédia.

A próxima obra foi um prédio industrial, para uma fábrica de jóias no bairro do Bom Retiro. Eram quatro pavimentos e a estrutura de concreto foi feita com formas alugadas por nossa empresa. Foi um sucesso, mas houve um pequeno acidente. Por falha de um carpinteiro, que não detectei na verificação, um trecho de uma laje ruiu, quando estava sendo concretada. Foi um pequeno problema, mas me custou muita gozação por parte do proprietário da obra, que por sinal, foi um dos grandes admiradores do meu projeto.
Quando essa obra se encaminhava para a conclusão, só faltando detalhes de acabamento; a construtora estava sem novas obras. Com a receita muito diminuída, era necessário cortar despesas. Éramos no setor de engenharia. O Edgar e o Duda eram proprietários. Portanto, eu me tornara totalmente desnecessário. Eles poderiam desenvolver o pouco trabalho existente, com bastante folga. Acertamos as contas e me desliguei da construtora, até que surgissem novos trabalhos.
Não era só aquela construtora que não tinha trabalho; a crise era generalizada. Por isso não consegui trabalho em outro lugar. O proprietário da obra que eu estava fazendo, não se conformava que eu tivesse deixado sua direção. Relutou em aceitar, mas foi vencido pelo argumento de que uma empresa não pode se dar ao luxo de gastar desnecessariamente e, eu, era totalmente dispensável, os outros dois poderiam concluí-la sem nenhuma dificuldade.
Ele não se conformou e, depois de um mês, me chamou e me propôs que eu trabalhasse para ele, ajudando-o a montar a indústria. Propôs que trabalhasse só na parte da manhã, pagando-me um quarto do que eu ganhava, até ali. Como não tinha alternativa, aceitei.
Como eu não tivesse carro, pegava ônibus, metrô e caminhava um bom pedaço para chegar até a obra. O proprietário me dissera que pretendia comprar um carro grande e confortável para apanhar e levar clientes no aeroporto. Que não pretendia investir muito nisso, portanto, esperava a oportunidade de comprar um mais antigo, mas que estivesse em bom estado.
O Vitor pegou um ford landau, na troca de um carro que vendeu na loja. Ele estava em ótimo estado e, por já Ter alguns anos de uso, o preço era pequeno, principalmente porque já era um carro que não era mais fabricado. Levei o carro e mostrei-o ao proprietário da indústria, que decidiu comprá-lo. O Vitor e o Tatu, me deram um passat velho, caindo aos pedaços, como comissão pela venda do landau.
O passat estava em péssimo estado e como eu não tinha dinheiro para mandar arrumá-lo, fiquei andando com ele do jeito que estava. Ele mais quebrava do que andava, mas ajudava um pouco nas locomoções.
Um dia, aquele mesmo pintor que me indicara para trabalhar na construtora, me disse que um engenheiro para quem trabalhava, estava precisando de um engenheiro. Fui conversar com ele, que me propôs trabalhar três meios períodos por semana. Ele me pagaria o mesmo que o proprietário da industria me pagava. Era dobrar a remuneração, o que melhorava um pouco a situação, que não estava fácil! Aceitei e comecei a trabalhar no mesmo dia.
Era uma construtora pequena, com pouco trabalho, mas em vias de crescimento. O Isac, meu novo patrão, começou demonstrando sua personalidade ao me pedir para redigir um contrato, especificando o que havíamos combinado. Quando lhe apresentei o contrato, ele alegou que havíamos combinado que seriam quatro meios períodos por semana e não três. Eu precisava do trabalho e, por isso, aceitei, mesmo consciente de que ele descumpria o combinado e, ainda, insinuava que eu é que pretendera ludibriá-lo.
O Isac tinha bons relacionamentos na comunidade judaica, o que lhe propiciava o crescimento do volume de trabalho. Depois de alguns meses eu já era coordenador de engenharia e comandava uma equipe que chegou a contar com oito engenheiros.
Com o crescimento do negócio, o Isac resolveu trocar uma brasília velha que tinha para trabalhar, por um carro mais novo e eu a comprei. Era bem velha, mas bem melhor do que o passat, que já estava me deixando louco de tanto que quebrava.
Algum tempo depois, o Isac decidiu trocar o outro carro que tinha, uma ford belina, por um carro mais novo. Vendi a brasília e comprei a belina. A minha remuneração não crescia na proporção do crescimento da construtora, mas melhorara sensivelmente e já não vivia tão apertado como na fase aguda da crise.
Como o trânsito no final da tarde fosse muito congestionado, eu percorria as obras na parte da manhã, despachava a burocracia no escritório por volta da hora do almoço e passava a tarde trabalhando numa sala na loja do Vitor. Todo o trabalho de escritório eu realizava ali, recebendo e fazendo ligações, em fim, o trabalho que eu faria no escritório da construtora.
No final do ano, os engenheiros e as meninas do escritório resolveram fazer uma confraternização num barzinho de Moema. No final, a Ainos, secretária do escritório, me pediu para levá-la em casa. Ela já estava bastante alcoolizada, embora não estivesse completamente bêbada. Quando a deixei em frente ao prédio onde morava, ela me abraçou e me beijou na boca, dizendo que me amava. Considerei que aquilo fora fruto da bebida, pois ela era noiva e se casaria em breve.

Quando cheguei no escritório, encontrei um bilhete sobre minha mesa, onde estava escrito: eu te amo. Chamei a Ainos e lhe perguntei se sabia quem havia deixado aquele bilhete ali. Ela disse que fora ela.
Fiquei um tempo olhando-a, sem saber o que dizer, enquanto ela me encarava fixamente, cristalizada, como quem teme a reação da outra pessoa. Senti como se me tivessem colocado um fardo sobre os ombros. Não cheguei a sentir a vaidade acariciada por Ter atraído uma mulher bonita. Senti que não poderia retribuir aquele sentimento, que não poderia oferecer-lhe nada de bom e que, por outro lado, seria um estorvo ao futuro que ela havia traçado, casando-se com o noivo a quem amava, ou amara até ali. Senti-me um vírus que provocara doença em algo que fora saudável até ali. Considerei que ela pudesse estar louca, estivesse sofrendo algum distúrbio mental; no entanto, lembrei de seu comportamento no trabalho, responsabilidade, eficiência, racionalidade, em fim, não havia nada que indicasse que ela tivesse algum problema mental. Me senti mal, danoso, destruidor.
Não sabia o que dizer, não encontrava palavras que traduzissem o que sentia, tive medo de aumentar, ainda mais, o prejuízo que lhe causara. Optei por tentar fazer o trem voltar aos trilhos, reconstruindo a linha acidentada, refazendo o circuíto interrompido.
Disse-lhe que acontecera um acidente e que precisávamos nos esforçar para consertar os estragos. Ela discordou, afirmando que o que acontecera fora uma revelação, mostrando-lhe que o amor era algo diferente do que acreditara até ali.
Temi que alguém, ali no escritório, pudesse perceber o que estava acontecendo e sugeri a ela que continuássemos a conversa fora dali, em uma lanchonete das vizinhanças.
Enquanto esperava por ela, pensei no quanto eu havia sofrido por não poder desfrutar de um amor, tendo que deixá-lo, optando por outro. Isso estava no passado e, agora, não parecia tão sofrível. Me lembrava de Ter sofrido muito, mas, agora, não sentia que fosse tão ruim. Por que? Por que eu sofrera tanto por algo que parecia não ser suficiente para tanto?
Quando ela chegou, eu pensava que se eu havia superado aquele problema no passado, ela também superaria este. Disse-lhe que aquilo havia sido um acidente, que não pode haver um relacionamento entre duas pessoas, se somente uma amar e a outra não puder corresponder. Que eu não a amava e, independente de eu ser casado, amar minha mulher; não poderia manter um relacionamento com quem eu não pudesse amar. Que sentia muito que aquilo tivesse acontecido, que lamentava que isso lhe causasse sofrimento, mas que não poderia aumentar o problema permitindo que aquele acidente progredisse. Que deveríamos estancar aquilo e retomar o curso que a vida vinha tendo.
Ela argumentou que aquilo não era aquilo, era amor, um amor apaixonado, irresistível, desejando satisfação, recusando soluções lógicas, racionais. Que não era um caso de engenharia e, sim, de emoção, que não aceita soluções analíticas, que provoca desejos, que pretendem satisfação. Disse que ao perceber que se sentia atraída por mim, considerou a situação e concluiu que era loucura. Que eu era casado, que não parecia ser dado a aventuras amorosas, nem demonstrara qualquer atração por ela. Por outro lado, ela tinha um noivo, que amava, por quem era amada, com quem namorava há alguns anos. O casamento estava marcado e tudo caminhava como planejado. Não tinha sentido abandonar tudo isso por algo irracional, sem indicativos de que pudesse dar certo. As reflexões indicavam isso, cada vez com mais clareza. No entanto, a emoção se mantinha alheia à racionalidade, desprezando-a, aumentando a pressão, reforçando o desejo, criando ansiedade, pretendendo satisfação. Ela resistira por muito tempo, mas perdera o controle e fora totalmente dominada, forçada a se declarar e tentar o que parecia impossível.
Disse-lhe que compreendia a força e a irracionalidade da emoção, mas que a vida não se submetia a ela, criando obstáculos intransponíveis quando seus objetivos eram diferentes. Era uma luta alheia a nossa vontade, envolvendo forças muito maiores que a nossa, envolvendo-nos, usando-nos, causando-nos sofrimento, impiedosamente. Se a racionalidade não podia eliminar a emoção, nem os sofrimentos causados, era a única possibilidade de minimizar os efeitos perniciosos, indicando os caminhos menos ruins.
Ela confessou que, várias vezes, fora vítima de vontades incontroláveis, que a forçavam a buscar satisfação a qualquer custo, atropelando tudo e todos. Que isso já lhe causara sérios problemas, por isso tinha consciência de quanto era prejudicial. No entanto, era muito mais forte do que ela e não conseguia opor-se. Fora adotada por um casal estéril, que se esforçava para proporcionar-lhe o máximo possível, cuidando, no entanto, para não exagerar, esforçando-se para que ela tivesse consciência de valores e das dificuldades a enfrentar para se conseguir as coisas. Quando criança, tivera alguns desejos que os pais não puderam ou consideraram prejudicial satisfaze-los. A impossibilidade de satisfação provocou males físicos como: febre, vômitos, diarréias e dores. Na adolescência, mesmo tendo conhecimento dos riscos inerentes ao sexo, desprezou-os e, para evitar que conhecidos soubessem que o praticara, foi até uma estrada, pediu carona, seduziu o motorista, um engenheiro, que ficou muito surpreso ao verificar que a havia desvirginado. Ela sentira enorme prazer na dor e prolongara-a o quanto pode. O rapaz quis levá-la para casa, mas ela recusara, preferindo pegar outra carona para voltar. Subira no primeiro caminhão que passara e se entregou ao assédio do motorista. Desejosa de dor, provocou-o a penetrá-la por trás e quase desmaiou de prazer ao sentir-se estrupada.
Fiquei surpreso com aquela revelação, Não podia imaginar que uma moça que se mostrara tão recatada, consciente e racional, pudesse ser capaz de tamanho masoquismo! A curiosidade me fez perguntar sobre como se desenvolvera sua vida sexual a partir dali.
Ela disse Ter caído em si, percebido a inconsciência do que cometera e decidido abster-se.
Quando lhe perguntei se tivera dificuldade para conseguir isso, ela respondeu que não. Que simplesmente não sentia mais vontade. Que só voltara a Ter relações com o atual namorado.
Argumentei que o que ela sentia por mim, deveria ser mais uma manifestação dessa vontade doentia que costumava acometê-la.
Ela concordou, declarando que chegara à mesma conclusão. Por isso, tinha esperança de que praticando sexo comigo, pudesse se livrar daquela pressão e retomar o caminho que vinha trilhando. Arrematou pedindo-me que a ajudasse a tentar o que lhe parecia a única possibilidade de reverter o que vinha sentindo.
Encarei aquilo como uma tarefa, com esperança de que pudesse ser a solução para um problema que me parecia assustador. Combinamos nos encontrar no final da tarde e tentar por um fim àquele martírio.
Considerei que aquela deveria ser uma experiência desagradável, para facilitar obter o pretendido. Fomos ao pior motel que pude encontrar e praticamos um sexo selvagem, animal, sem carinho, agressivo. Ela chorava, gritava, pedia que a agredisse, enquanto eu me sentia sufocado, ansiando para que aquilo terminasse e me livrasse daquela loucura. Pareceu uma eternidade até que ela se acalmasse e defalecesse.
Permanecei deitado, como se tivesse assistido a um filme de terror em que eu atuara. Demorei algum tempo para perceber que ela estava inconsciente e, não, relaxada como eu imaginara. Fiquei assustado, tentei despertá-la chacoalhando-a, dando-lhe tapas no rosto, mas nada. Senti que tinha pulso e que respirava, mas não voltava a si. Peguei água no banheiro e joguei no seu rosto. Ela despertou num sobressalto.
Empurrei-a para o banheiro, tomamos uma ducha rápida, nos vestimos e saímos. Eu agia como se fugisse da própria morte. Já na rua, perguntei-lhe como se sentia. Ela disse sentir-se como se estivesse despertando de uma anestesia. Levei-a até o prédio onde morava e, depois que confirmou estar bem, fui embora, aliviado, como quem se livrara de grande tormento. Fora uma experiência incrível, de excitação, medo, angústia, humilhação. Foi selvagem e cruel, difícil de descrever!
Quando passei pelo escritório, no dia seguinte, ela entrou em minha sala e disse que o efeito fora contrário ao esperado. Que sentira um prazer nunca antes experimentado e que me desejava mais que nunca. Senti raiva e tive ímpetos de expulsá-la da sala. No entanto, considerei que ela estava doente e que o caso precisaria ser tratado com cuidado.
Pedi que se sentasse e fingisse que estávamos despachando normalmente. Disse-lhe que considerava aquilo uma anormalidade doentia, que ela precisava procurar ajuda profissional.
Ela protestou, alegando que a única ajuda de que precisava, só eu poderia lhe dar. Que não estava louca, mas apaixonada, amando loucamente, me desejando intensamente. Não era loucura e, sim, amor, desejo.
Argumentei que era anormal, um exagero, além dos limites do aceitável. Que para ela poderia ser bom, mas pra mim, era sacrificante, saber-me causa de tais sentimentos, sem poder retribuir, sentindo repulsa por tal relacionamento. Que amor deve ser fonte de felicidade e prazer e, não, de sofrimento. Que aquilo deveria Ter um fim, antes que prejuízos maiores acontecessem.
Me olhando com expressão em que se misturavam decepção e angústia; ela me perguntou sobre o que eu achava que ela deveria fazer. Aconselhei-a a dedicar-se ao noivo, buscar satisfação na sua companhia e procurar ajuda para tratar suas emoções, principalmente, as vontades incontroladas que costumavam acometê-la.
Ela sugeriu que nos relacionássemos por algum tempo, sem compromisso, com total liberdade. Disse-lhe que era impossível, que estava além de minha capacidade, que me dispunha a ajudá-la no que pudesse, como amigo. Que compreendia o quanto aquilo poderia ser ruim para ela, que lamentava o que estava acontecendo, mas que não tinha condições de satisfazer seu desejo. Que procurasse valorizar o noivo, buscando nele o carinho e a satisfação sexual de que necessitava.
Ela pareceu compreender, agradeceu e saiu da sala. Fiquei aliviado, acreditando que ela compreendera e que o tempo se encarregaria de eliminar os malefícios daquele acidente.
Foram tempos difíceis, de raiva pelo assédio que eu sofria e pena pelo que imaginava que ela sentia. Eu acumulava admiração e prestígio profissional, mas aquela situação era uma pedra no sapato. O assédio me incomodava, mas não me sentia no direito de ser agressivo com alguém que se dizia apaixonada por mim.
O casamento acabou acontecendo e, como colega de trabalho, não consegui nenhuma desculpa aceitável para não comparecer. Na hora dos cumprimentos aos noivos, ao beijá-la, como todos faziam, ela desviou a cabeça roçando seus lábios nos meus. Felizmente, parece que ninguém percebeu, mas foi uma demonstração do que ela era capaz.
“Teu futuro está no teu passado. Relembre-o e, quando chegar no ponto certo, terá certeza de Ter encontrado o caminho.”
Desejei com todo fervor que esse tempo não tivesse qualquer influência no futuro, o que configuraria uma tragédia.

Nessa época, reencontrei um amigo de infância que não via há anos. Ele continuava bom de conversa e as lembranças prolongaram o encontro até tarde da noite. Ele passou a freqüentar a loja que eu usava como escritório. Chegava sempre alegando pressa, dizendo que só passara para dar um alô e ia ficando, só indo embora quando a lua já tinha percorrido boa parte do seu caminho noturno. Falávamos do passado, analisávamos o presente e especulávamos sobre o futuro.
Ele falou sobre a admiração que tinha por uma cunhada, irmã de sua mulher; que, divorciada, se esforçava para conseguir uma vida melhor, trabalhando, estudando, lutando contra preconceitos, demonstrando uma coragem e dignidade fora do comum. Aquilo estava mais para veneração do que simples admiração. Eram tantas as qualidades que ele lhe atribuía, que induzia a duvidar de que pudesse ser realidade, não passando de exageros provocados por uma paixão.
Ele disse que ela cursava uma faculdade para a área de rádio e televisão. Que tinha dificuldade para realizar algumas tarefas por falta de uma câmera de vídeo, tendo que esperar a disponibilidade do equipamento da escola, que era usado por todos. Disse-lhe que eu tinha uma câmera e que ela poderia usá-la o quanto precisasse.
Ela passou a usar a câmera, quando precisava e eu a acompanhei em alguns trabalhos, o que me propiciou conhecer várias pessoas. Entre elas, havia uma mulher, Bia, que parecia Ter as qualidades que meu amigo atribuía à cunhada. Logo nos tornamos amigos e verificamos que tínhamos grande afinidade sobre política, economia, problemas sociais, ideologia, em fim, tínhamos visões muito parecidas sobre a vida.
Ela também era divorciada e lutava para firmar-se profissionalmente e conseguir estabilidade financeira. Fora representante comercial durante alguns anos, o que lhe possibilitou comprar uma casa e um carro. Os produtos que ela representava começaram a sofrer uma concorrência muito grande, a empresa foi perdendo espaço no mercado e ela perdeu sua fonte de renda.
Decidiu retomar os estudos e cursar rádio e televisão, acreditando que era uma área promissora. Quando coloquei minha câmera de vídeo a disposição dela, passou a fazer filmagens de casamentos, aniversários e outros eventos. Sempre que possível, eu a acompanhava, ajudando-a nesse trabalho.
Ela mostrava ser liberal, avessa a preconceitos e revoltada com o comportamento da maioria das pessoas que, ao invés de resolver, aumentavam os problemas, deixando-se dominar por preconceitos, vontades incontroladas e modismos. Eu também via as coisas dessa maneira, o que nos levava a conversar horas a fio, analisando situações, criticando comportamentos, buscando soluções.
Uma tarde, ela passou na loja que eu usava como escritório e, depois de conversarmos durante um bom tempo, eu tive que sair para uma reunião. Saímos juntos, eu no meu carro e ela no dela. Seguimos na mesma direção, ela me seguindo. Alguns quarteirões à frente ela piscou os faróis e eu parei, acreditando que seu carro estivesse com problemas. Ela estacionou atrás de mim e eu fui até ela. Quando lhe perguntei o que havia acontecido, ela me pediu que entrasse no seu carro. Dei a volta e sentei-me no banco a seu lado, imaginando que ela quisesse me mostrar algo. Ela me pediu que a beijasse.
Estranhei, mas beijei-a e senti algo muito forte. Percebi que aquele beijo influenciaria fortemente meu futuro. Foi só um beijo, nos despedimos de novo e cada um seguiu seu caminho.
Há muito tempo meu casamento vinha se deteriorando e eu fazia o possível para mantê-lo, acreditando que grande parte da culpa me cabia. Quando nos casamos, tínhamos o mesmo tipo de cultura e éramos bastante iguais. Ela não acompanhou meu desejo de crescimento e enquanto eu buscava conhecimento e lutava por mudanças, ela continuou estagnada no mesmo tipo de vida que sempre levara. Nossas diferenças foram aumentando e, embora eu a aconselhasse a mudar também, não me esforcei o bastante para isso.
Minha busca me ocupava muito tempo, o que implicava na redução do tempo dedicado à família. Eu me esforçava para que esse tempo tivesse qualidade e acreditava que, se minha maneira de ser não influenciava minha mulher, influenciaria minhas filhas, ajudando-as a enfrentar dificuldades com mais facilidade, a perceberem a importância do conhecimento, os malefícios dos preconceitos, a necessidade da solidariedade e os prejuízos do egoísmo, ressaltando a necessidade de lutar para conseguir mudanças.
Se minha presença em casa era mínima, o meu empenho para suprir as necessidades básicas era total. Passamos por muitas dificuldades, mas nunca faltou o mínimo necessário para uma vida dígna. Acredito que minha mulher não me compreendia, achando que eu desperdiçava tempo com coisas que não renderiam vantagens financeiras, no entanto, acho que sentia um certo orgulho por Ter um marido que as pessoas consideravam inteligente e lutador. As mudanças foram acontecendo e aumentando a diferença, mas não se percebia nenhum mal maior, por causa disso.
Minha formatura e o primeiro trabalho efetivo em engenharia, melhoraram muito o poder aquisitivo da família, acompanhado de um certo status, que para mim não tinha grande importância, mas para os familiares era significativo. A maioria me considerava uma espécie de louco, mas inteligente, trabalhador, esforçado e lutador.
Essas melhorias coincidiram com o meu relacionamento com a Rita, que provocou uma desastre no casamento. Embora sofrendo terrivelmente, me esforcei para que as conseqüências fossem minimizadas. Eu tinha consciência dos efeitos emocionais causados em quem se considerava traída, tanto pela emoção natural, como pelos preconceitos, que não permitiam entender que eu fora vítima do mistério, tendo me apaixonado sem Ter contribuído para que isso acontecesse. Compreendendo a gravidade da situação, me esforcei par minimizar os efeitos.
Ela, no entanto, interpretou o papel de quem perdoara quando, na verdade, mantinha aquele episódio como um trunfo para usar convenientemente. Usou o desejo de vingança para justificar os erros que cometia, principalmente desperdiçando dinheiro e fazendo dívidas que a moral me obrigava a pagar. Mostrou-se de uma hipocrisia doentia, mentindo descaradamente, mesmo diante das provas mais evidentes e incontestáveis. Defendia-se alegando que era fiel e que nunca me traíra. Ela não considerava que trair a boa fé, a confiança, a lealdade, fosse tão prejudicial quanto trair sexualmente.
Tudo que eu fiz para tentar corrigi-la foi inócuo. Ela continuava cometendo verdadeiros absurdos, o que evidenciou que aquilo era uma doença e não simples desvio de comportamento. Quando a Cynthia cursava a faculdade de psicologia, pedi-lhe que conseguisse algum profissional que pudesse tentar ajudar sua mãe. Isso nunca chegou a acontecer, mesmo porque eu não acreditava que a ciência pudesse fazer algo significativo para resolver um problema daqueles. A verdade é que isso nunca foi tentado e, talvez, tenha sido um grande erro.
Eu continuava amando-a e, tudo que fazia, não era só para ajudá-la, mas para ajudar a mim mesmo, para recuperar uma pessoa que me era importante, além de ser a mãe de minhas filhas e de saber o quanto o comportamento dela poderia influenciá-las negativamente.
As melhoras não aconteciam, pelo contrário, os problemas se repetiam e o desgaste foi se acentuando. O desgaste só não foi maior, porque eu continuava com muitas atividades, possibilitando-me desviar um pouco o foco daquela situação e dos problemas gerados.
Quando conheci a Bia, ela esteve algumas vezes em casa, para pegar a câmera ou para usar um equipamento de edição de vídeo que eu tinha. A mulher mostrara antipatia por ela desde a primeira vez. A Bia também não gostou dela. A medida que a amizade crescia, o meu casamento era assunto de nossas conversas em muitas ocasiões. Ela achava estranho que pessoas tão diferentes pudessem conviver por tanto tempo.
Quando a Bia me pediu aquele beijo, a mulher já nos considerava amantes há muito tempo, dizendo que a Bia acabara com nosso casamento, que eu me transformara em outro homem. Isso não era verdade, eu continuava amando-a e lutando para recuperá-la. A amizade com a Bia me ajudava a suportar os problemas que ela me causava.
A Bia se mostrava amiga e companheira, se interessava pelo que eu fazia, por meu trabalho, pela luta política estudantil e profissional; me acompanhava a encontros e reuniões, dava opiniões e discutia comigo em busca de soluções. Eu a admirava como pessoa e lhe dedicava grande amizade.
Aquele beijo me deixou confuso, eu sentira um prazer inesperado. O fato de ela Ter me pedido o beijo foi uma surpresa, afinal já tínhamos bastante intimidade para que ela tivesse comentado se sentia alguma atração por mim. Ela nunca deixara transparecer algo assim. Tive medo de que essa mudança pudesse abalar nossa amizade, afetando o companheirismo de que desfrutávamos. Me senti feliz e preocupado.
Pensei que um romance entre nós, daria razão a quem estivera errada, acusando o que não existia. Era injusto! Era dar credibilidade a uma injúria.
A personalidade da Bia me impressionava tanto, que não me lembrava de tê-la olhado como mulher. Várias pessoas comentaram comigo que ela era bonita. Eu também achava, mas considerava isso insignificante diante das suas qualidades. Eu a valorizava tanto como pessoa, que a aparência não me merecia maior atenção. O que mais me chamava a atenção na sua aparência, era a postura, a elegância, independente da simplicidade do que vestia.
O preconceito de que não é possível a amizade pura entre um homem e uma mulher, considerando inevitável a prática sexual entre eles; levava muita gente a imaginar que éramos amantes. Isso me incomodava por considerar que a desvalorizava como pessoa, interpretando-a como simples objeto de prazer; que meu único interesse nela fosse seu corpo. O que acontecia era exatamente o contrário, o corpo era o que menos me interessava. Aliás, não me tinha despertado o menor interesse.
Infelizmente os preconceitos sociais relegavam a mulher a esposa, mãe, dona de casa ou objeto de desejo. Eu considerava que o machismo havia criado isso e que as mulheres haviam se submetido. No entanto, ainda que exceção, muitas mulheres haviam provado que aquilo era injusto, que elas eram tão capazes quanto os homens e que a descriminação era uma injustiça abominável.
Eu considerava a insinuação de que a Bia fosse minha amante, como verdadeira agressão. Muitos homens achavam que isso seria um grande benefício, desconsiderando a grandeza que eu desfrutava propiciada pela sua sensibilidade, inteligência, coragem, determinação, lealdade, etc. A melhor relação sexual, com a mulher mais gostosa do mundo, não chega aos pés do que a emoção, inteligência e valores pode propiciar. O que mais me irritava era que, minha mulher e alguns amigos, sabiam o que eu pensava a respeito disso e, mesmo assim, teimavam em afirmar o contrário.
Um conhecido a Bia estava montando um negócio e, como ela estivesse com tempo disponível, ele lhe pedira que ficasse no estabelecimento, para receber as entregas e permitir que fossem feitas as ligações dos serviços públicos.

No dia seguinte ao beijo, eu ainda estava confuso, entre feliz e preocupado, quando a Bia me ligou me pedindo para encontrá-la no estabelecimento que ela estava cuidando. Quando cheguei, ela me pegou pela mão e me guiou até os fundos. Ficamos um de frente para o outro, olhando-nos nos olhos, nos abraçamos e beijamos ardentemente. Foi como se nos tivessem ligado numa fonte de alta voltagem. Nenhuma palavra foi dita, nem era necessário, mesmo porque não conseguiriam traduzir o que acontecia.
Esperamos o proprietário chegar, o que não demorou muito, saímos e fomos para um motel. Agora sim, as pessoas poderiam falar que éramos amantes, desfrutando os prazeres do corpo, a volúpia da emoção sob o comando da paixão. Só quando chegávamos onde ela havia deixado o carro, ela percebeu que deixara o soutien no motel. Rimos muito e decidimos que não valia a pena voltar para buscá-lo.
Acabara a confusão, agora eu sabia que estava apaixonado por uma mulher admirável, fora do comum e me sentia duplamente feliz: pela paixão e pelas qualidades que admirava na mulher amada.

A cunhada daquele meu amigo, através da qual eu conhecera a Bia, me apresentou a uns amigos, ex-paraquedistas. Me tornei amigo deles e, com alguns, desfrutei de uma amizade excepcional, de afinidades e contrastes que motivaram grandes discussões e questionamentos, mas principalmente, admiração e respeito. Os três já morreram, mas me deixaram um legado inestimável, me propiciaram compreender muita coisa, principalmente, o valor da inteligência, da sensibilidade, da coragem para defender o que acreditamos e a humildade para reconhecer a razão alheia. Neles conviviam a brutalidade e agressividade com uma sensibilidade tão delicada que parecia impossível existir num mesmo indivíduo. Se esforçavam por impor suas idéias, ao mesmo tempo que respeitavam admiravelmente idéias contrárias, defendidas com inteligência. Eu considerava que éramos uma espécie de aberração, de contrastes incongruentes, que a inteligência e sensibilidade transformavam num resultado harmônico. A rigidez convivia com a maleabilidade, da mesma maneira que a agressividade cedia lugar à ternura, em transformações que pareciam impossíveis e inacreditáveis. Claro que isso era ininteligível para a maioria das pessoas, mas para nós, era límpido e claro. Tanto berrávamos em discussões acaloradas, quando derramávamos lágrimas sentidas, provocadas por emoções profundas.
Décio, Tigre e Newton. Devo muito a eles, de me terem provocado a olhar muitas coisas por ângulos que eu desprezara, por escancararem seus erros para que eu aprendesse com eles, por me mostrarem que é possível e, muitas vezes desejável, ser terno na agressividade e agressivo na ternura. Éramos bastante diferentes uns dos outros, mas a alquimia da mistura usava o respeito e a inteligência como catalizador, propiciando um resultado admirável. Muito do que tenho sofrido, não teria proporcionado tanto estrago, se pudesse Ter-lhes desfrutado a companhia e recebido sua solidariedade. É uma pena que pessoas assim sejam tão raras.
O Décio tinha um sítio em Boituva, próximo ao centro nacional de paraquedismo. A convivência com ex-paraquedistas, a proximidade com um lugar onde ele era praticado e a disposição de alguns filhos desses amigos em começar a saltar, me levou a praticar esse esporte.
Foi um desafio terrível, pois tenho muito medo de altura. No primeiro salto, depois de passar um dia inteiro recebendo instruções e treinando movimentos em terra, senti o maior medo que já sentira na vida. Éramos seis pessoas, sentados espremidos no assoalho do avião. Eu estava junto à porta e, quando esta foi aberta, senti o vento, o barulho do motor e percebi o abismo que me separava da terra, tive ímpetos de me colar no avião ao invés de sair dele. Era mais que medo, era verdadeiro pânico. Quando o instrutor mostrou o polegar virado pra cima e me perguntou se estava tudo certo, respondi afirmativamente, não porque fosse verdade, mas porque havia respondido àquilo centenas de vezes durante o treinamento.
Ao comando do instrutor, tirei os pés pra fora do avião, apoiei-os no estribo e segurei o montante da asa, saindo totalmente do avião. Como por encanto, o medo acabou e, ao próximo comando, me soltei.
Um solavanco, ruído de tecido drapejando, olhei para cima e verifiquei que as céluas do velame estavam infladas, as linhas estendidas e desembaraçadas, o slide baixo, em fim, tudo normal. Peguei os batoques, ouvi os cumprimentos do instrutor que dirigia os saltos desde o chão e passei a obedecer aos seus comandos.
Depois do medo que passara, sentir a felicidade de estar flutuando, admirando uma paisagem maravilhosa, com a sensação de total liberdade; propiciava uma felicidade indiscritível. Receber os cumprimentos dos amigos, depois do pouso, reconhecer Ter enfrentado o desafio e Ter concluído a tarefa com sucesso, era demais, não faltavam motivos para rir e chorar. Eu não era mais nenhum moleque, já tinha quarenta anos.
Foi uma experiência incrível e continuei gastando adrenalina nesse esporte até decidir mudar para o vôo livre.
Entre o conhecimento desses amigos e meu primeiro salto de paraquedas, passaram vários anos.

Algum tempo antes de conhecer a Bia, aconteceu o que, pra mim, representou uma verdadeira tragédia. O Tatu foi assassinado durante uma tentativa de assalto. Ele chegava em casa de carro, quando foi abordado por assaltantes e ao reagir, foi baleado na nuca. A Cristina, sua mulher, assistiu tudo desde a janela da sala.
Foi um golpe profundo, sentimento de perda, revolta contra o egoísmo que valoriza mais os bens materiais do que a vida, a injustiça que permite a morte de pessoas boas e preserva a vida de tanta gente ruim. Pura emoção, pouca razão. Chorei como poucas vezes na vida. Como a maioria, usava todos os detalhes que aumentavam o sofrimento, desprezando o que poderia amenizá-lo.
Quando cheguei de madrugada na casa dele, depois de atender as necessidades burocráticas para o sepultamento, e vi seus filhos pequenos dormindo no sofá, desconhecendo que tinham perdido o pai, senti grande revolta com o que permitia que coisas assim acontecessem. Não considerava que a vida é assim, que muitas coisas acontecem independente de lógica e que não temos capacidade para interferir nisso. Sentia revolta, buscava culpados e desejava vingança.
Nos dias seguintes, quer dizer, nas noites; sonhava com ele, com sua morte. Numa das vezes, sonhei que estava no velório e, em determinado momento, fiquei sozinho junto ao caixão. Percebi que sua mão se movimentara, levemente. Logo depois ele abriu os olhos. Eu olhei em volta, prevendo o alvoroço que aquela ressuscitação provocaria. Fiz-lhe sinal para que permanecesse imóvel, enquanto esperávamos a melhor oportunidade para ele se levantar do caixão e sairmos correndo, uma vez que a confusão seria inevitável. Quando me pareceu que o momento era propício, ajudei-o a se levantar e saímos correndo, com o restante das pessoas correndo atrás de nós.
Essa morte me fez questionar muita coisa, principalmente, valores. Acho que foi ali que comecei a considerar que existem forças desconhecidas, cujos objetivos desconhecemos e que interferem na vida, independente de nossa vontade consciente. Não era algo claro e, sim, uma espécie de pressentimento, uma idéia nebulosa. A única lembrança clara é que foi a última vez que a morte dominou meu emocional e ele me dominou por inteiro. Passei a considerar o óbvio: que a morte é conseqüência da vida e que não temos a menor capacidade de evitá-la.
Por outro lado, passei a valorizar a qualidade de vida, compreendendo que a felicidade acontece em momentos e que é preciso aproveitar as oportunidades em que isso acontece, impedindo que preconceitos e outras bobagens sociais nos impeçam de aproveitá-los.
Passada a comoção inicial, dediquei-me a fazer com que a viúva assumisse os negócios que o marido deixara, principalmente as lojas de automóveis. Eu acreditava que o Vitor, sócio nos negócios, era suficientemente competente e honesto. Meu empenho para que ela participasse dos negócios, objetivava mantê-la ocupada, desviar seu pensamento da tragédia, ao mesmo tempo que se capacitasse para gerir o que o marido lhe deixara. Como ela sempre trabalhara em empresas antes do casamento, acreditei que além do já citado, ela pudesse ajudar o sócio a dirigir os negócios.
Empenhei-me para conseguir o que me parecia melhor para ela. Procurava orientá-la, ensinar-lhe técnicas básicas de administração, de controle de contas, tentando motivá-la a participar da administração da própria vida e, principalmente, da dos filhos. Isso fazia com que eu passasse bastante tempo com ela.
Não demorou para que as mentes maldosas associassem aquela proximidade com um relacionamento amoroso. Provar que você não está tendo um relacionamento amoroso é tão difícil quanto provar que não é casado. Nem certidões negativas de todos os cartórios do mundo podem provar a solteirice, pois o tempo necessário para consegui-las, é suficiente para que você se case em um dos cartórios em que tirou as primeiras certidões.
Era uma relação muito forte, sim. Baseada na solidariedade, no respeito ao sofrimento alheio, na disposição para minimizar o sofrimento causado por uma tragédia. No entanto, quem é que perderia tempo considerando uma besteira dessas, quando podiam especular sobre sacanagens sexuais, interesses financeiros e tantas outras coisas tão interessantes?
Tempos depois, o casamento do Vitor que, segundo alguns, já havia durado muito mais do que o bom senso poderia imaginar, indicava a proximidade do fim. Ele começou a se relacionar amorosamente com a viúva e, algum tempo depois, isso deixou de ser segredo. Só ai, as pessoas compreenderam a injustiça que praticaram ao me acusar de ser o amante da viúva.
Eu acreditei que a principal causadora daquele romance fora a emoção, que tivera a ajuda da morte de um e da irrascibilidade de outra. A Cristina estava livre para iniciar outro relacionamento e o Vitor optara por deixar um casamento que lhe causara tantos aborrecimentos, buscando um relacionamento que lhe propiciasse o que fora impossível no primeiro. Por isso defendi o direito que eles tinham de se relacionar, o que me propiciou um bom número de inimigos.

O meu relacionamento com a Bia obedecia aos valores que defendíamos, principalmente a liberdade e lealdade. Ela sabia que eu amava minha mulher e que fazia o possível para continuar com ela. Eu sabia que ela não recusava relações com homens que lhe parecessem interessantes. Isso não me incomodava nem diminuía o amor, o respeito e a admiração que lhe tinha.
Ao voltar de uma viagem que fizera à Europa, me contou que se sentira atraída por um italiano em Veneza e que transara com ele. O mais importante para mim, não era o que ela fazia com outros homens e, sim, o que me propiciava. Ela, no entanto, deixava escapar que o fato de eu não amá-la com exclusividade a incomodava, embora se esforçasse para esconder isso.
Dizem que é possível que muitos enganem por pouco tempo, que alguns enganem por algum tempo e que, uns poucos consigam enganar por muito tempo. No entanto, parece impossível enganar quem quer que seja por um tempo muito grande.
A Bia conseguiu me enganar por um bom tempo, vários anos. Isso foi possível pela sua capacidade interpretativa, porque ela interpretava até para si mesma, acreditando nas suas próprias mentiras e, principalmente, por que eu não queria acreditar que eu fosse co-autor na criação de uma personalidade tão maravilhosa, que não passava de ficção.
Não foi uma grande decepção porque esse personagem foi se desmanchando aos poucos. Havia evidências desde o início de incoerência, mas eu considerava que eram típicas de personalidades fortes e sensíveis.
Ela costumava criticar com veemência a discriminação, principalmente o racismo. Argumentava que num pais como o Brasil era um absurdo discriminar os pretos que tanto ajudaram a construir o pais, lutaram para se livrar da escravidão, lideraram lutas e movimentos, mostrando grande capacidade. Alegava que eram tão inteligentes e sensíveis como qualquer branco, que sobravam exemplos demonstrativos disso nas artes, esportes, literatura e nas mais variadas profissões. Criticava, também, o racismo de muitos pretos contra os brancos, pretendendo inverter a situação.
Era uma argumentação coerente, inteligente, demonstrando compreensão de um problema que se arrastava há séculos. Por outro lado, não perdia oportunidade de criticar os que ela chamava de pardolinos, referindo-se às pessoas pardas, principalmente os nordestinos. Considerava-os preguiçosos, incompetentes, incapazes e principal causa da formação de favelas e da marginalidade que imperava na cidade.
Quando eu acusava a incoerência ao criticar, por um lado, a discriminação contra os pretos e, por outro, discriminar os pardos e, principalmente os nordestinos; ela alegava que aquilo não era discriminação e sim a constatação da realidade. Que era evidente a predominância desse tipo nas favelas e nos presídios.
Quando eu argumentava que esse tipo de indivíduos compunham a maior parte da população, principalmente entre os mais pobres. Eram as maiores vítimas de um sistema social e econômico egoísta, baseado na exploração do trabalho, valendo-se da ignorância como grande aliada para atingir seus objetivos. Ela me acusava de estar distorcendo suas palavras. Alegava que tinha consciência de que essas pessoas foram a mão de obra que construíra as grandes cidades, que continuavam trabalhando nos serviços mais pesados e repugnantes, que outras pessoas não se dispunham a fazer. Que ela reconhecia isso e a importância que eles tinham na sociedade. Que o que ela acusava, era que eles compunham a maioria da marginalidade e isso era evidente, não era invenção sua.
Como o meu desejo era que ela tivesse as qualidades que eu lhe atribuía, aceitava sua argumentação e considerava que eu é que errava na interpretação. Eu a considerava superior e ela se aproveitava disso, não perdendo oportunidade de me criticar, de desvalorizar o que eu pensava ou fazia.
O tempo foi me mostrando que aquela discriminação contra os pardolinos era a ponta do iceberg; a grande discriminação era contra os porbres. Ela os considerava inferiores, repugnantes e, por isso, lutava para ganhar dinheiro e justificar a posição que se atribuia nas classes mais altas. A pobreza era um pejorativo e ela não poderia fazer parte daquela ralé. Estava pobre, mas era uma questão de tempo, pois sua superioridade lhe propiciaria galgar os postos a que tinha direito.
Eu a amava e, principalmente, a admirava, por isso preferia aceitar que eu é que interpretava mal suas palavras. Eu me considerava inferior a ela e ela me ajudava muito a acreditar nisso, destacando e realçando os menores erros e deslizes que eu cometia. Eu não me importava em ser inferior a ela nem a ninguém que fosse muito superior, acreditava ser um privilégio poder desfrutar dessas pessoas, absorver seu conhecimento, aprender com eles.
Ela tinha qualidades e conhecimento suficientes para ser uma grande pessoa, mas, por algum motivo, preferia interpretar ser maravilhosa enquanto se mantinha medíocre. O resultado é um verdadeiro absurdo, pois ela pagava o preço devido por uma pessoa excepcional, sem aproveitar as vantagens que isso poderia oferecer. Era criticada por parecer muito liberal, por dizer o que muitos não gostam de ouvir, por desafiar dogmas e preconceitos. Ao invés de capitalizar dignidade, escancarava suas fraquezas e denunciava sua hipocrisia.
Mesmo depois de Ter percebido tudo isso, eu não a deixei, acreditando que seria possível transformar a interpretação em incorporação e que ela passasse a ser o que vinha interpretando. Mas, ela acabou se afastando de mim, deixando uma profunda tristeza por constatar que algo tão maravilhoso não passara de fantasia. De saber o valor que aquilo tem, pois acreditei e vivi como se fosse verdade.
O importante na vida é a felicidade, o prazer, a alegria que se desfruta. Não importa se as causas são reais ou fictícias, isso não diminui o sentimento. O efeito colateral, terrível, é a perda do que foi tão bom. A ressaca da bebedeira, a noia do drogado, a perda de um amor, são exemplos do alto preço cobrado a posteriori por prazeres vividos. É comum que, ao Ter que pagar, consideremos o preço alto demais pelo que desfrutamos. É comum, também, que não nos preocupemos em considerar esse preço quando nos entregamos ao desfrute do que é bom.
Não parece razoável abrir mão de felicidade, prazer e alegria, por medo do preço que será cobrado a posteriori. Experiências passadas, próprias ou alheias, podem fornecer dados suficientes para calcularmos o preço de algo, analisarmos os prós e contras e optarmos pelo desfrute ou não. O excesso de bebida pode diminuir o prazer possível e aumentar desproporcionalmente o preço a ser pago. O mesmo pode acontecer com as drogas. A moderação pode propiciar um prazer maior e baixo custo ou ausência dele. Essas informações fazem parte do senso comum, são do conhecimento da maioria das pessoas, no entanto, isso não é suficiente para que muitos as desprezem e vivam pagando caríssimo por prazeres nem tão grandes.
Quem se apaixona por alguém de mal caráter, deveria saber que pagará caro pelo prazer que desfrutará. Mesmo sabendo disso, é comum que se atrevam a desfrutar e lamentem profundamente o custo proveniente.
Imagino como eu poderia ser feliz, desfrutando o prazer e alegria proporcionados por uma mentira em que eu pudesse acreditar pela vida inteira!
“Teu futuro está no teu passado. Relembre-o e, quando chegar no ponto certo, terá certeza de Ter encontrado o caminho.”


A Ariete, aquela arquiteta com quem trabalhei na obra daquela escola que era um projeto experimental; montou um escritório numa sala de um sobrado de seu pai, onde dois dentistas também mantinham seus consultórios, em outras salas.
Ela se casara e, por falta de melhores oportunidades profissionais, optou por montar o escritório. Os trabalhos que apareciam eram pequenos e em pouca quantidade.
Sempre que possível, eu ia até lá e passávamos um bom tempo conversando sobre engenharia, arquitetura, mas principalmente, sobre generalidades, filosofia, ideologia, política, sociologia, etc. Eu brincava com ela dizendo que daquele escritório sairiam as soluções para a construção de um mundo melhor.
Eu continuava trabalhando na construtora, mas realizei alguns trabalhos com ela, pequenas reformas e, até, a construção de duas casas, que ela projetara.
O proprietário de uma dessas casas, comprou um apartamento em um edifício em construção, a preço de custo. Nesse sistema, o comprador vai pagando o custo da construção, à medida que ela vai se realizando. É comum que, para que o ritmo da obra não fique limitada à disponibilidade de pagamento dos compradores; seja conseguiido um financiamento, que poderá ser pago num prazo bem maior do que o da construção.
A maioria dos compradores desse prédio, o fez porque tive a promessa de que haveria financiamento, permitindo a construção em curto tempo e um tempo longo para o pagamento.
A construtora que incorporou o prédio e vendeu os apartamentos, fez a promessa de financiamento sem tê-lo contratado, baseada na promessa de um banco em realizá-lo. Era o final da década de oitenta, oitenta e sete, oitenta e oito, por ai. Eram anos de instabilidade financeira, quando as crises se sucediam e a inflação as criava e alimentava.
A construtora tinha anos de experiência no mercado e sabia que dificilmente aquele financiamento se realizaria. Aproveitou a promessa de uma vaga possibilidade para iludir os compradores alegando que o financiamento estava garantido.
As obras foram iniciadas com recursos próprios dos compradores, em ritmo lento, esperando a entrada do financiamento para que se desenvolvesse no ritmo prometido.
O tempo foi passando e o financiamento não acontecia. Muitos dos compradores não tinham condições de arcar com os custos da obra, mesmo para um ritmo excessivamente lento.
O Ede, proprietário daquela casa que a Ariete projetou e eu dirigi a construção, comprara um apartamento nesse empreendimento como investimento. Ele fazia parte da comissão de obras, formada por elementos eleitos entre os compradores, que tem o objetivo de fiscalizar o empreendimento em nome deles.
Os compradores, descontentes com o ritmo da obra e a demora do financiamento, pressionavam a comissão de obras. Esta, só conseguia informações vagas por parte da construtora. Pressionados e sem conhecimento suficiente para pressionar a construtora, decidiram buscar ajuda profissional.
O Eder me indicou e eu participei de uma reunião com os elementos daquela comissão, quando me expuseram a situação. Disse-lhes que, infelizmente, não havia muito a fazer. Que o ritmo de uma obra depende dos recursos disponíveis e que, pelo que eles me informaram, estes eram diminutos.
Se a situação já era ruim, a tendência era de piora. Muitos dos compradores haviam usado poupança e empréstimos para pagar parcelas mensais que possibilitaram aquele ritmo até ali. Alguns já haviam esgotado esses recursos e, outros, estavam a ponto de atingir esse limite. Portanto, as perspectivas eram de que a situação piorasse.
A maioria dos elementos da comissão era daqueles que não conseguiriam continuar arcando com os pagamentos que vinham realizando. O meu diagnóstico causou uma espécie de pânico entre eles O que eu disse era evidente e eles próprios sabiam disso. Evitavam encarar a realidade, na esperança de que algo excepcional acontecesse. No entanto, a realidade era clara...e ruim.
Todos aqueles homens tinham curso superior, eram administradores de empresas, médicos, engenheiros, economistas, em fim, nenhum deles era ignorante. Já era estranho saber que tinham entrado em um negócio baseado em promessas, sem garantias reais. Era mais estranho ainda, que não conseguissem usar seus conhecimentos para analisar os dados do problema, equacioná-lo e encontrar uma solução. A verdade, é que estavam dominados pela emoção e não conseguiam racionalizar, fugindo disso, inclusive.
Alertei-os de que a paralização da obra seria a pior coisa que poderia acontecer. Que a experiência mostrava que isso provocaria a dispersão dos compradores, dificultando negociações que viabilizassem a continuidade do empreendimento.
Eles realmente não conseguiam raciocinar e me pediram para sugerir alguma alternativa.
Sugeri que convocassem uma assembléia dos compradores, que expusessem a realidade e identificassem que valor seria possível ser pago pela maioria. Com isso, garantiriam a continuidade das obras, ainda que em ritmo muito lento, propiciando que aqueles que não tivessem condições de arcar com o dispêndio necessário, pudessem vender suas cotas, livrando-se de maiores prejuízos.
Eles aceitaram minha sugestão e me pediram para assessorá-los e, a pedido deles, fui conversar com a construtora. Verifiquei que não haviam tido a intenção de aplicar um golpe, mas que haviam feito uma aposta suicida, com mínimas possibilidades de sucesso. O fracasso daquele empreendimento representaria a falência da construtora. Ela era grande interessada em resolver o impasse, mas como os compradores, não conseguia raciocinar com lógica na busca de uma solução viável.
A remuneração da construtora, nesse tipo de empreendimento, é uma porcentagem do que é gasto nele. A taxa estabelecida era o teto do cobrado no mercado. Convenci-os a reduzi-la, argumentando que era melhor ganhar menos do que inviabilizar o negócio e arcar com os prejuízos resultantes. Acabaram aceitando e se prontificando a empenhar-se para resolver os problemas.
Na assembléia de compradores o clima era de guerra, os ânimos exaltados, com muitos compradores acusando a construtora de Ter agido dolosamente, aplicando um golpe criminoso.
A muito custo a situação foi controlada, foi estabelecido um mínimo que todos pudessem pagar até que as unidades pudessem ser negociadas e vendidas a quem tivesse melhores condições de arcar com contribuições mensais maiores.
Fui contratado pela comissão de obras para assessorá-la, o que fiz por quase oito anos, até a conclusão das obras.
Foi uma experiência interessante, que me ensinou muito, principalmente que é possível administrar interesses conflitantes, desde que haja senso de justiça, honestidade, racionalidade e disposição para enfrentar todo tipo de intenções egoístas, objetivando tirar vantagens de crises e conflitos. A arma mais poderosa para conseguir isso é a simplicidade. Quem procura se beneficiar por meios escusos, tende a complicar para confundir. A simplicidade dificulta intenções escusas e a ação de quem pretende cometê-las.
O mercado capitalista se baseia na relação de forças, no aproveitamento de oportunidades, onde as vantagens conseguidas são inversamente proporcionais aos escrúpulos. Nas crises, enquanto muitos estão perdendo muito; uns poucos aparecem como salvadores, comprando a custos baixíssimos o que custou muito aos perdedores, capitalizando o mérito de Ter evitado prejuízos maiores.
Naquele empreendimento, muitos venderam suas unidades por preços muito menores do que já haviam pago, para evitar uma perda maior. Alguns investidores com capital, aproveitaram a situação e adquiriram várias unidades que, depois da crise, venderam com enormes lucros.
A construtora se aproveitou da confusão e, através de artifícios matemáticos, cobrava mais do que tinha direito. Quando acusei o que vinha acontecendo, eles tentaram usar a complicação para camuflar o que vinham fazendo. No entanto, não conseguiram se livrar da simplicidade da minha demonstração e tiveram que devolver o que tinham cobrado em excesso.
Muitos dos que perderam, foram vítimas de sua ambição, pretendendo Ter mais do que podiam, assumindo compromissos que não tinham como cumprir, ansiosos por parecer mais do que eram.
Não é fácil administrar um ambiente assim, mas é possível.

Pela época em que comecei a assessorar aquela comissão de obras, a Ariete fez um projeto de um prédio de dezessete andares para ser construído em um terreno que seu pai tinha no mesmo bairro em que ela tinha o escritório.
Era mais que o projeto de um prédio, era o de um sonho. Ela pretendia morar nele com mais dezesseis amigos. O prédio teria um apartamento por andar.
Era um terreno muito íngreme, que ia de uma rua a uma avenida, com uns cinqüenta metros de comprimento e vinte e cinco metros de desnível. Era uma verdadeira pirambeira.
A Ariete havia prestado concurso par ser arquiteta na prefeitura e estava trabalhando no setor de análise de projetos. Acabara a época das “vacas magras”. Sua personalidade não lhe permitia participar de falcatruas, mas o conhecimento da legislação, que ela estudou profundamente para efetuar o trabalho com competência, lhe propiciou que prestasse acessoria a projetistas, orientando-os para que os projetos pudessem ser aprovados sem problemas. O salário, mais o que ganhava com as acessorias, lhe propiciavam uma renda razoável.
Quando ela me falou da idéia de projetar aquele prédio, considerei que fosse mais um sonho poético, daqueles que ela costumava Ter.
Ela começou o projeto e eu participava opinando em soluções técnicas para vencer os obstáculos oferecidos pela topografia do terreno. Ela empolgada com a idéia de só Ter amigos como vizinhos e eu cético, achando que aquilo era uma utopia. Considerava muito difícil que dezessete famílias tivessem amizade suficientemente forte para evitar problemas causados pelos custos da construção e todos os problemas que uma obra gera. O mais provável é que, ao irem morar juntos, houvesse mais inimigos do que amigos.
Eu dizia isso a ela, mas ela estava cada vez mais empolgada com a possibilidade. Ela conseguiu a adesão de seu pai e de dois amigos, que moravam no mesmo prédio que ela, na época. Um, era dentista e o outro trabalhava em um cartório.
O projeto evoluiu e eles conseguiram fechar o grupo quando o dono do cartório concordou em ficar com as duas últimas unidades. Fizemos o orçamento cuja conclusão funcionou como um balde de água fria para os sonhos até ali alimentados. Era um valor muito alto. A idéia era fazer a construção com recursos próprios, sem financiamento.
A Ariete e os dois amigos que participavam desde o início, se recuperaram rapidamente e passaram a desenvolver argumentos para convencer os outros de que o custo não era impecilho. Que era uma questão de tempo, que seria maior do que o imaginado anteriormente. Que o sacrifício seria recompensado pela qualidade de vida de que poderiam desfrutar no futuro, além da capitalização que aquilo representaria.
A Ariete sempre considerou que ela e eu dirigiríamos e administraríamos o empreendimento. Quando percebi que ele realmente poderia se realizar, disse a ela que eu não participaria. Toda obra é uma grande fonte de problemas. O longo tempo estimado para aquela construção, adicionaria problemas. Os problemas gerariam conflitos, que eu estava acostumado a administrar, mas naquele caso, os conflitos envolveriam amizades que eu não considerava suficientemente fortes para resistir aos contratempos e que poderiam redundar em rompimentos e conseqüentes disputas emocionais. Eu não estava disposto a me envolver em coisas assim e preferia ficar de fora.
Eles insistiam para que eu dirigisse a obra, enquanto eles se encarregariam da administração. Insisti na negativa. Me prontifiquei a acessorá-los e fiscalizar a construtora que contratassem, mas não a dirigir diretamente.
Sugeri que fizessem uma concorrência entre várias construtoras e contratassem a que melhor condições oferecesse. Que convidassem aquela para a qual eu trabalhava e, se ela fosse escolhida, eu participaria automaticamente, uma vez que era o coordenador de engenharia.
Levei o Isac até o escritório da Ariete, eles conversaram, ele empregou toda sua capacidade de vender, mas o negócio não foi fechado. Ela e os companheiros insistiam em que eu deveria aceitar o encargo.
Acabei aceitando, impondo uma condição absurda: que eles não teriam direito de me acusar ou criticar, por maior que fosse o erro que eu pudesse cometer. Era um verdadeiro absurdo, impossível de ser cumprido, no entanto, era um habeas corpus preventivo, que me dava o direito moral de evitar questionamentos que julgasse infrutíferos. Alertei-os de que meu passado me avalizava profissional e moralmente, mas que eles estavam me supervalorizando e que isso geraria cobranças que eu não poderia satisfazer. Portanto, estavam cometendo o primeiro grande erro, ao decidir pela emoção, desconsiderando a razão.
A obra começou num ritmo ainda mais lento do que a outra em que eu assessorava a comissão de obras. Mais ou menos um ano depois, ao ser empossado um novo governo, a ministra da fazenda decretou o confisco da poupança, limitando os saques bancários, na tentativa de conter a inflação. Foi um desastre, principalmente para a construção civil. Sem dinheiro, as obras pararam e, mesmo depois do impacto inicial, ninguém se atrevia a investir, com medo do que poderia acontecer.
No ano anterior, eu havia recebido duas propostas de trabalho irrecusáveis. Eles me pagariam o triplo do que eu ganhava. Conversei com o Isac comunicando-lhe as propostas e previnindo-o de que eu deixaria sua empresa. Ele relutou, renovou promessas que repetia há vários anos, de que me daria participação em empreendimentos, sociedade em apartamentos e melhor remuneração.
Disse-lhe que estava cansado de investir no futuro e que pretendia aproveitar as vantagens imediatas que me ofereciam. Que eu não era indispensável para sua empresa e que ele não tinha porque arcar com maiores despesas desnecessariamente. Ele me pediu um tempo para encontrar uma solução que me permitisse continuar ali. Eu sabia que isso não aconteceria, mas concordei para não parecer radical.
Quando, dois meses depois, lhe cobrei uma resposta, ele confessou que não tinha como cobrir aquelas ofertas, mas que precisava que eu ficasse mais três meses até que ele pudesse se reorganizar. Achei um exagero, mas concordei.
Nesse meio tempo, aconteceu aquela intervenção do governo no sistema financeiro. As obras pararam, sem perspectiva de recomeçar. As construtoras ficaram sem trabalho, tanto a que eu deixaria, quanto aquela em que iria trabalhar.
O Isac se sentiu desobrigado de cumprir tudo o que me havia prometido, me pagando o saldo de salário a que tinha direito e mais nada.
Foi um tempo difícil. Fiquei só com a assessoria àquela comissão de obras e a construção do prédio da Ariete, que rendiam muito pouco.
O prédio da Ariete era uma obra difícil e de risco considerável, em função da topografia do terreno. Ele tinha três sub-solos que abrigariam as garagens, sendo que a mais baixa ficava uns dois metros acima da avenida que passava na parte de baixo. Optamos por construir a parte central do prédio até o térreo e, enquanto a torre continuava a subir, os sub-solos seriam executados do térreo para baixo, minimizando os riscos de desbarrancamentos. As escavações eram feitas sob as lajes já construídas, em condições muito difíceis.
Quando terminamos a construção desses sub-solos e pudemos relaxar, uma vez que a maior fonte de risco deixara de existir; houve um acidente, provocado por um erro na obra de um prédio que estava sendo construído em um terreno vizinho ao nosso.
Um muro de contenção que eles haviam feito, provisoriamente, no nosso terreno, para facilitar o trabalho deles, rompeu, provocando um desbarrancamento que colocava em risco as casas vizinhas, na parte alta do terreno. O risco era muito grande e alguma providência teria que ser tomada com urgência.
Chamei o engenheiro da obra vizinha, pedi que convocasse os seus projetistas e fiz o mesmo, chamando os projetistas da estrutura e das fundações do nosso prédio.
Todos olhavam, pensavam, o tempo passava e nada de solução. Fui buscar um amigo meu, engenheiro e projetista de estruturas e ele também não teve nenhuma idéia salvadora.
O desbarrancamento havia provocado um túnel por baixo do terreno, abrindo uma espécie de salão subterrâneo no alto, perto das casas. O maior risco era a repetição do desbarrancamento no mesmo lugar do primeiro, o que ocasionaria o afundamento do túnel, que poderia provocar o desbarrancamento do terrenos das casas, engolindo-as. A situação era desesperadora.
Ansioso por uma solução e desesperado porque ela não aparecia; afastei-me dos outros para Ter uma visão mais ampla do local. O projetista das fundações do nosso prédio me acompanhou. Olhando à distância, me ocorreu a idéia salvadora. Era preciso previnir um novo desbarrancamento e a solução seria colocar um monte de terra escorando o barranco.
Liguei para o escritório e pedi que providenciassem com urgência uma firma de terraplanagem que pudesse mandar caminhões com terra e uma máquina para empurrá-la contra o barranco. Em menos de duas horas os caminhões começaram a chegar com a terra e a máquina já fazia o trabalho. No final da tarde, o perigo maior já não existia e o trabalho de preencher o túnel e o salão já pode ser iniciado.
Quando fui levar de volta o amigo que fora buscar, ele comentou que a idéia do projetista fora genial. Perguntei-lhe qual tinha sido a idéia, pois eu não ficara sabendo. Ele disse que fora a idéia de colcar a terra.
Como eu me afastara pouco antes de Ter a idéia e o projetista me acompanhara e, logo depois, pedi que as providências fossem tomadas, Todos acreditaram que a idéia tinha sido dele. É comum creditarmos as melhores idéias aos especialistas, desconsiderando que elas independem de qualificação, podendo surgir em qualquer mente.
Os técnicos tem a tendência de buscar idéias técnicas, usar seu conhecimento científico e tecnológico na busca de soluções. Isso, muitas vezes, os impede de considerar idéias simples e óbvias.

As condições econômicas foram melhorando e o ritmo da obra pode ser um pouco acelerado. A qualidade da estrutura era invejável, usava formas que eu projetara e um sistema de trabalho inovador, que pela primeira vez tive oportunidade de por em prática. A velocidade reduzida dos trabalhos e, principalmente, a possibilidade de ousar sem a limitação dos críticos imediatistas, possibilitaram o que não havia conseguido até ali.
Eles aceitaram minha idéia de comprar um moinho para moer o entulho gerado na obra, reaproveitando-o como argamassa, reduzindo custos e aumentando a qualidade. Outra característica que ajudou bastante, foi o treinamento de pessoal e remuneração proporcional ao rendimento e qualidade do trabalho.
Naquela época era comum que a maioria dos trabalhadores morasse em alojamentos na própria obra. Eles recebiam refeições de qualidade e tinham uma televisão a disposição, o que era raro em qualquer outra obra, onde era comum que vivessem amontoados, em condições insalúbres, tendo que cozinhar as próprias refeições.
As novidades, a qualidade e a economia, propiciavam que os proprietários estivessem satisfeitos e sentissem orgulho de participar daquele empreendimento. No entanto as satisfações humanas são passageiras e a criatividade não consegue satisfaze-las como gostariam. As novidades se incorporaram ao cotidiano, deixando de propiciar satisfação, fazendo parte da rotina.
Quando a obra chegou na fase do que se chama de acabamentos, os custos são muito mais altos e a mesma quantidade de investimento representa avanço menor nos resultados. Isso, associado à falta de novidades vantajosas, começou a gerar insatisfação entre vários proprietários.
Eles haviam conseguido muito mais do que imaginaram, mas consideravam aquilo natural e queriam mais. Passaram a mostrar insatisfação, a reclamar sem motivos e a tentar criticar sem saber o que. Eu me colocava a disposição deles para esclarecer as dúvidas, mas não eram dúvidas o que eles tinham e, sim, necessidade de manifestar a insatisfação de não Ter suas aspirações irreais satisfeitas. Não tinham fatos para questionar, mas continuavam reclamando, o que me obrigou a usar a prerrogativa que eu impusera para aceitar dirigir a obra: que eles não teriam o direito de reclamar.
Isso me livrava que me dirigissem reclamações, mas, é claro, que não impediam que continuassem insatisfeitos e continuassem reclamando entre sí e para outros. A Ariete sabia que aquilo não tinha sentido e apoiava meu trabalho, mas a pressão foi aumentando e já no final da obra, pressionada, principalmente pelo marido, que sempre apoiara os outros, começou a fraquejar.
Quando faltavam poucos meses para o término da obra e só faltavam detalhes de acabamento, decidi deixá-la e me livrar do que considerei uma injustiça. Infelizmente a minha previsão se cumprira.
As inovações implementadas naquela obra foram significativas, mas não impediram muitos problemas crônicos quanto a materiais, prestadores de serviços e com o próprio pessoal da obra. A maior reclamação dos proprietários se referia a uma condição a que me propús desde o início: de que a economia propiciada pelas inovações, seriam revertidas em benefício dos trabalhadores. Eles haviam concordado com isso, mas o egoísmo fez com que pretendessem se apropriar dessas vantagens e eu impedi, mantendo a decisão inicial.
A Ariete havia feito um projeto para um prédio na vizinhança e me convidara para dirigir as obras. O prédio para cuja comissão de obras eu prestara assessoria, também fora concluído e eu decidira abandonar a engenharia, por isso recusei o convite da Ariete.

Durante os oito anos em que estive envolvido com essas obras, aconteceram muitas coisas. Fui indicado pelo sindicato dos tecnólogos para ser seu representante na câmara de engenharia civil, junto ao CREA-SP e o fiz durante quatro anos. Fiz parte de comissões, participei de semanas nacionais de engenharia e, principalmente, fui um crítico vorás daquele sistema, acusando distorções crônicas como: corporativismo, dificultando o progresso de profissionais não tradicionais e a deficiência no seu objetivo principal que é o de proteger a sociedade contra maus profissionais. O conselho funciona mais como sindicato ou associação de engenheiros do que como orgão de proteção da sociedade.
Viajei duas vezes para a Flórida, nos Estados Unidos, com amigos; uma vez para a Europa, onde conheci o lugar que nasci e muitos parentes. Estive em Cuba, onde pude conhecer um pouco do regime político vigente ali, em contato com pessoas do povo. Voltei a Madrid, na Espanha, para participar de um congresso profissional.
Não consegui sanar os problemas que deterioravam meu casamento e o fim foi inevitável. Continuei morando na mesma casa que a mulher, para evitar o aumento de despesas e continuar sendo um parâmetro para minhas filhas, tentando evitar que ela as influenciasse totalmente.
A relação com a Bia continuava tumultuada, com altos e baixos, idas e vindas. Ficou claro que ela não era a musa que eu considerara, embora continuasse a amá-la. Ela continuava tentando me desvalorizar para se considerar superior. Aquela relação estava chegando ao fim, também.
A Ainos continuou me ligando depois que deixei a construtora, mas no decorrer dos anos, diante de minhas recusas em atender seus desejos, foi espaçando os contatos e só raramente nos falávamos por telefone.
O Vitor que foi um de meus companheiros nas viagens aos Estados Unidos, Europa e Cuba, passou a viver com a Cristina. Quando decidi abandonar a engenharia, nos associamos para montar uma empresa de manutenção de luminosos, influenciados pelo sucesso de um amigo, que fazia isso, e que nos informara que a maior multinacional de refrigerantes iria tercerizar esse serviço em várias regiões do estado.
Passei algum tempo trabalhando para esse amigo, para aprender as técnicas utilizadas.
Contratei meu sobrinho, David, e um amigo dele, que eram adolescentes, para me ajudar, e comecei a realizar trabalhos que o amigo me repassava. Ele estava no ramo há muitos anos e, como estava trabalhando exclusivamente para a multinacional de refrigerantes, me repassava os serviços de antigos clientes que o procuravam.
Era pouco trabalho e, sem ferramentas e equipamentos adequados, bastante difícil. A intenção era praticar e estar pronto para quando a multinacional abrisse o campo de trabalho desejado.
O tempo foi passando e a oportunidade esperada não surgia.

O filho do Vitor, que era meu afilhado, envolveu-se com drogas e se tornou dependente delas. Por causa disso, o Vitor passou a freqüentar um grupo de pais de dependentes, que se reunia em uma igreja e era comandado por ex-dependentes.
Como a maioria dos pdependentes de drogas, o filho do Vitor vivia se metendo em inúmeros problemas, que repercutiam na família, causando prejuízos e sofrimento. A certa altura, o Vitor internou-o em uma clínica para tratamento.
Vendo o quanto a estadia do filho na clínica lhe custava, o Vitor considerou a possibilidade de que aquilo poderia ser um negócio rentável. Comentou comigo o que tinha pensado, analisamos os dados que ele fornecia e julguei que, realmente poderia ser um bom negócio.
Eu já estava separado de corpo, da mulher, há bastante tempo. Estava desiludido com a engenharia e demais negócios urbanos. O negócio de manutenção de luminosos estava estacionado num nível muito baixo e a promessa de conseguir prestar serviço para uma grande empresa, não se realizava. Eu estava desiludido com a vida em sociedade e considerei que o trabalho em uma clínica, que deveria, segundo o Vitor, ficar afastada de centros urbanos, tratando de quem precisava de ajuda; poderia ser uma alternativa para minha situação, que era só desencanto.
Considerando os dados fornecidos pelo Vitor, fiz um estudo de viabilidade para a clínica, que demonstravam uma lucratividade razoável. Mesmo considerando as piores hipóteses, o negócio ainda se mostrava atrativo. Além do ganho monetário, havia a recompensa moral e emocional, possibilitadas por estar ajudando a combater um mal que assolava a sociedade.
O Vitor imaginava usar a chácara que os pais tinham em Bom Sucesso, para estabelecer a clínica. Argumentei que o espaço era pequeno e muito acidentado, além de ser muito próximo da cidade, o que, segundo o que ele havia me dito, não era aconselhável.
O cunhado da Bia, aquele amigo de infância, havia morrido há algum tempo, de um câncer no intestino, que lhe ocasionara muito sofrimento nos últimos meses de vida. Eu mantivera um contato muito estreito com ele durante todo esse período, desde a descoberta da doença. Ele sonhava em, como eu, abandonar a cidade e ir viver no sítio que tinha na Serra da Mantiqueira, no sul de Minas Gerais. Sabendo do pouco tempo de vida que lhe prognosticaram, incentivei-o e insisti para que realizasse seu sonho, passando o resto de vida que lhe restava, no lugar de que tanto gostava, fazendo o que imaginara. Ele, no entanto, permaneceu como sempre fora: sonhando, sem coragem para tentar a realização. Definhou até a morte, só raras vezes indo ao sítio que tanto amava.
Quando conversava com o Vitor a respeito do lugar para montar a clínica, ocorreu-me que o sítio ficara abandonado depois da morte dele. Que tinha uma área bastante grande, duas casas que poderiam acomodar, sem maiores investimentos, umas vinte e cinco pessoas; Tinha uma boa represa, um gramado amplo, espaço suficiente para uma boa horta, criação de galinhas e porcos e algumas cabeças de gado; morros com mata nativa; clima excelente, paisagem deslumbrante e, ficava a duzentos quilômetros de São Paulo e a vinte da cidadezinha mais próxima. Considerando os dados fornecidos pelo Vitor, esse sítio seria o lugar ideal para uma clínica com os objetivos pretendidos. Ele relutou um pouco, porque pretendia dar uitilidade à chácara dos pais, que também estava meio abandonada; mas acabou concordando que aquele sítio oferecia muitas vantagens.
Fui conversar com a viúva, informando-a sobre nossas pretensões, propondo-lhe alugar o sítio. Ela considerou que era possível, mas que pretendia conversar com o Vitor, deixando claro que não confiava em mim, por ser pobre; preferindo negociar com tinha dinheiro e poderia garantir os termos do contrato e o pagamento. Ela desprezou, totalmente, minha dignidade, amizade, história e moral. O dinheiro do Vitor valia muito mais do que eu.
Levei o Vitor para conhecer o sítio. Ele ficou encantado com a região que, realmente, era deslumbrante. O síto ficava a vinte quilômetros da sede do município de Sapucai Mirim, em Minas Gerais, e a vinte e seis de Monteiro Lobato, cidadezinha de São Paulo; por uma estradinha de terra, sem movimento regular de veículos. A única condução para ligar o sítio a Sapucai Mirim, era o caminhão que transportava a produção de leite da região.
De muitos pontos dessa estradinha, era possível visualizar grandes trechos da Serra, numa mistura de vales profundos e altas montanhas, onde grandes áreas de pasto se entremeavam com capões de mata nativa. Eram abundantes as nascentes de água, formando pequenos riachos que se juntavam formando cachoeiras. Eram imagens que, por si só, bastavam para deslumbrar o mais céptico espírito.
O sítio mostrava evidentes sinais de abandono. Tinha um cavalo e três ou quatro cabeças de gado. Quando andávamos, verificando as condições e as obras necessárias para instalar a clínica, deparamos com uma vaca morta que, coitada, não contara com a menor assistência. O único cuidado que o sítio recebia, era do Chico, caseiro de um sítio próximo e que fora muito amigo do falecido. Quando fomos embora, deixei recado com a esposa do Chico, avisando-o da morte da vaca.
De volta a São Paulo, fui com o Vitor conversar com a viúva. Ele, empolgado pelo que vira, temendo Ter a proposta recusada, propôs, a pedido a viúva, um arrendamento por dois mil reais mensais, quando eu havia avaliado que mil e quinhentos seriam justos e que essa deveria ser a proposta. Ela aceitou, claro, pois era um valor que ela nem imaginara conseguir por aquele negócio.
Eu havia combinado com o Vitor que ele seria o capitalista, porque eu não tinha disponibilidade de dinheiro. Que eu me encarregaria da reforma do sítio, da administração da clínica, de seu suprimento, em fim, de tudo que fosse necessário lá. Ele conseguiria um coordenador e monitores para ministrar o tratamento, indicados pelos dirigentes do grupo de pais de dependentes que o Vitor freqüentava. Os dois cabeças desse grupo nos assessorariam no tratamento propriamente dito. Todos eles eram ex-dependentes de drogas.
O coordenador e os monitores seriam contratados como funcionários e os outros dois como consultores. O lucro líquido seria dividido em partes iguais entre o Vitor e eu, sendo que, parte do que me coubesse, seria usado para amortizar metade do investimento inicial que, em princípio, seria arcado pelo Vitor.
Depois de tudo acertado, o Vitor partiu para Portugal, com os pais, para uma viagem que fora programada anteriormente. Eu me mudei para o sítio dedicando-me a reformá-lo e construir o que fosse necessário. Contratei o Chico, aquele amigo do falecido, que morava em um sítio vizinho, onde era caseiro, mas que conseguira junto ao patrão, poder trabalhar fora durante o dia. Contratei dois ajudantes e começamos a trabalhar.
Eu me sentia recomeçando a vida, realizando um velho sonho de viver no interior, junto de gente simples e longe do turbilhão das metrópoles. Envolto na natureza e longe dos prédios, asfalto, trânsito, poluição, barulho, em fim, o que tanto mal me fazia. Estaria longe de negociatas, corrupção, hipocrisia, exploração, verdadeiros canceres da sociedade. Ficaria afastado da mulher que tanto mal me fizera e da que tripudiara do meu amor. O único porém, era o afastamento das filhas, mas considerava que já lhes havia dado o que podia, principalmente valores a serem considerados. As três primeiras já tinham idade suficiente para assumir suas vidas, o maior pesar era em relação à mais nova, mas ela estava tão influenciada pela mãe, que me era impossível influenciá-la mais fortemente. O afastamento delas me fez titubear na decisão, no entanto, me senti impotente para influenciá-las mais do que já fizera e considerei que o sacrifício do meu sonho seria inútil. Optei pelo que me pareceu menos ruim e parti para a nova empreitada.
Comecei por levar energia elétrica desde um transformador particular, junto da casa principal, até onde construiria um barracão de madeira para guardar materiais e ferramentas que atulhavam um barracão de alvenaria que o falecido havia começado a construir e onde eu pretendia instalar um refeitório com cozinha, banheiros coletivos e vestiários. Foi feita uma tubulação subterrânea por onde passaram os fios que transportavam essa energia.
Como não consegui nenhum pedreiro no início, o Chico, os ajudantes e eu, juntamos pedras, carregamo-las com a carreta e um trator que pertencia ao sítio, fizemos muros de arrimo, cortes e aterros, construindo um platô onde ergui o primeiro barracão.
Era mês de agosto e o frio era intenso. Durante o dia não era tanto e o trabalho braçal muitas vezes me obrigava a ficar sem camisa, suando como se estivesse em pleno verão. À noite, no entanto, a temperatura costumava ficar dois ou três graus a baixo de zero e a sensação de frio era intensa.
Não havia rádio nem televisão e não me sentia atraído a fazer como os vizinhos que, no final do dia, iam para a venda para beber, conversar e jogar truco. Depois do trabalho, tomava banho, jantava e dormia. A comida era sempre sopa de ervilha, que eu preparava em um caldeirão de mais ou menos dois litros, colocando grãos de ervilha com lingüiça, bacon e carne seca. Comia menos da metade e guardava o resto para a próxima refeição, quando acrescentava água na massa que se solidifacara do que sobrara, deixava ferver e voltava a comer menos da metade. Isso se repetia até que o caldo ficasse tão ralo que obrigava a cozinhar outra sopa.
Não tendo o que fazer à noite, não sendo muito dado à leitura, cansado pelo dia de trabalho e fugindo do frio; dormia cedo, antes das oito horas da noite. Isso fazia com que acordasse muito cedo, muitas vezes, antes das quatro da manhã. Não tendo o que fazer por causa da escuridão e do frio, passava muito tempo pedindo para o falecido que aparecesse e viesse me contar como era o lugar em que estivesse. Acreditava que aquela solidão poderia propiciar que isso acontecesse, no entanto, nunca aconteceu. Eu pedia com fervor, embora sentisse medo de que o pedido se concretizasse, mas não era medo de que algo ruim pudesse me acontecer e, sim, da aparição. Acreditava que esse medo se dissiparia nos primeiros instantes depois de que aparecesse e começássemos a conversar.
Depois de um mês consegui um pedreiro e, depois, outro. As obras do refeitório, cozinha, banheiros e vestiários andavam em bom rítmo. O Vitor voltou de Portugal e começou a reclamar das despesas. Disse-lhe que eu estava acompanhando tudo de perto, empregando a maior racionalização possível, portanto, o custo era o menor possível. O único argumento dele era a quantidade de dinheiro gasto, sem considerar o que estava sendo feito.
O Chico era bom de conversa, conhecia todo mundo nas redondezas e batia ponto todo dia na venda para saber das novidades. Logo nos primeiros dias, ele me perguntou se eu não conseguiria voar de algum daqueles morros, alegando que o que ficava na frente do sítio, do outro lado da estrada, pertencia ao dono da venda e que, há pouco tempo, ele mandara fazer uma estrada que chegava até o alto. Naquela tarde, depois do trabalho, fomos de carro até o topo desse morro. Seria possível decolar de lá e pousar no sítio. O problema era que a proximidade de montanhas, provocava rotores no vento, que provocavam colápsos no velame, tornando o vôo perigoso. Comentei que o lugar era bom para a decolagem, embora uma árvore que lá existia, causasse alguma dificuldade. Do alto daquele morro se via o sítio inteiro, a casa principal na extremidades esquerda, perto da cerca do sítio vizinho e a uns cinqüenta metros da estrada; a outra perto da divisa oposta, um pouco mais próxima da estrada; entre elas a represa junto à estrada e o gramado até o pé do morro que subia do outro lado. O gramado era um belo campo de pouso com mais de duzentos metros de comprimento. Se não fosse pelos rotores, seria um lugar maravilhoso para voar.
No dia seguinte, eu trabalhava na construção do barracão de madeira, quando ouvi o barulho de algo que me pareceu uma motoserra. Quando comentei com o Chico, ele apontou o alto do morro, onde estivéramos no dia anterior, e disse que era o dono da venda cortando a árvore que eu acusara de atrapalhar a decolagem. Era verdade. Senti-me mal, considerando que aquela árvore estava sendo derrubada por minha causa. Ela nem era um obstáculo tão grande assim. Não seria difícil decolar dali, passando ao lado dela.
Na noite anterior, quando o Chico foi na venda, comentou que eu dissera que era possível decolar daquele morro, mas que a árvore criava uma dificuldade. O dono da venda e do morro, não teve dúvidas e decidiu eliminar o obstáculo, o que fez logo no dia seguinte.
Depois do sacrifício da árvore eu não poderia me negar a voar naquele lugar. Naquela mesma tarde, depois do trabalho, fui até lá com o Chico, levando o equipamento, e decolei. Foi um vôo curto e trurbulento, mas mesmo assim, muito gostoso. Aquilo causou verdadeira admiração em quem viu e serviu para aumentar a fama de aventureiro maluco com quem vinham me rotulando. Isso começara com o Chico, contando na venda, o que considerava façanhas. O fato de eu morar sozinho num sítio em que o dono havia morrido, o qual eu chamava durante a noite para conversar. Eu havia comentado isso com ele, mas não imaginara que ele daria tanta importância. Considerava que o fato de eu construir o barracão sozinho, sem ajuda de carpinteiros ou pedreiros, montando a estrutura sozinho, me movimentando no alto sem ajuda, uma vez que ele e os ajudantes não tinham coragem de subir naquela altura, era um fato extraordinário. Outro fato que chamava a atenção era o fato de eu ser engenheiro e tratar a todos como iguais, demonstrando o que, para eles, era uma simplicidade exagerada. Isso criou uma alegoria mental naquela gente e passei a ser visto como uma espécie de mito e não um cara normal, como realmente era. A diferença entre mim e os outros era pequena e não justificava toda aquela alegoria. O fato era que aquilo me incomodava, eu queria ser visto como era e não como um mito que não existia. Claro que eu era diferente e me orgulhava disso. Por isso eu estava ali e não dirigindo obras, que era minha especialidade. Eu optara por aquele retiro por não suportar a pressão do mundo empresarial e de uma sociedade que me era agressiva.
Eu me esforcei para mudar aquele estado de coisas, conversando com as pessoas, demonstrando que era eu mesmo e não um mito, mas não adiantou, eles continuavam vendo o que queriam, desprezando a realidade. Qualquer coisa que eu fazia era distorcida para ser considerada excepcional. Minhas tentativas, só serviram para aumentar a fantasia deles.
Vira e mexe, quando o vento estava favorável, eu decolava e voava, sentindo o prazer daquela paisagem, a adrenalina de estar voando em turbulência, mas, principalmente, pela alegria que o Chico demonstrava ao me ver voar, como se ele é que estivesse lá em cima. Ele falava sobre meus vôos com uma espécie de orgulho, como se ele fosse o responsável por aquilo. Na verdade era, só voei a primeira vez pela sua insistência e, na maioria das outras, para satisfazer sua vontade de ver-me voar.

“Teu futuro está no teu passado. Relembre-o e, quando chegar no ponto certo, terá certeza de Ter encontrado o caminho.”
Ao que tudo indica, ainda não passei pelo ponto do meu passado a que a cigana se referiu. Não tive nenhum sentimento que indicasse isso. Será que existe mesmo um ponto no meu passado que indique o que será meu futuro?
Eu já estava naquele sítio há dois meses, quando o Vitor chegou trazendo o rapaz que seria o coordenador do tratamento, um monitor e os três primeiros internos.
O coordenador tinha mais ou menos trinta anos; o monitor uns vinte e cinco; ambos eram ex-dependentes de drogas. Ambos se mostraram gentis, mas era visível a prepotência, deixando claro que eles é que entendiam do tratamento e que, por isso, não aceitariam interferência em seu trabalho.
Fui até a cidade comprar alimentos, pois o que eu tinha não era suficiente para mais cinco pessoas. Quando voltei, eles haviam retirado tudo de dentro da casa principal e a estavam lavando, de uma maneira que parecia que a estavam desinfetando de algo muito contagioso. Dedicavam-se a esse trabalho com tal disposição que, aquilo, mais parecia um campo de batalha.
O monitor preparou o jantar, enquanto os outros recolocavam os móveis, que haviam retirado, no lugar.
Depois do jantar, aconteceu a primeira reunião do grupo. O coordenador ditou as regras: Acordar as seis horas da manhã, fazer a higiene pessoal e participar do estudo bíblico. Tomar o café da manhã e iniciar a terapia ocupacional, trabalhando sob minhas ordens. Almoço, descanso para reflexão, cuidado com as roupas pessoais, lavando-as e arrumando-as, reunião da tarde onde cada um fazia um depoimento e discutiam pontos considerados importantes. Depois da reunião, cada um deveria escrever sua biografia que, no devido tempo, seria analisada pelos encarregados do tratamento, que a discutiriam com o autor. Antes do jantar, tomariam banho, jantariam, participariam da reunião da noite e, por volta das oito horas, iriam dormir. Cada semana, uma dupla de internos seria reponsável pela cozinha. Todas as reuniões começavam e terminavam com rezas. A religião adotada era a católica. A disciplina era rígida, mais que em um quartel, onde os internos não tinham direitos e deviam obedecer sem questionar.
Durante o período da terapia ocupacional, eles me ajudavam nos trabalhos de reforma e construção. Como primeira tarefa, esvaziamos a represa e construímos uma ilha no meio dela.
Um desses primeiros internos, além de dependente de drogas, era portador de HIV, por isso tomava um coquetel de comprimidos. Era um rapaz de uns vinte e oito anos e tinha a mente bastante perturbada. Os comprimidos que ele tomava, ficavam em poder do coordenador, que se encarregava de ministrá-los nos horários determinados. No terceiro dia, ao invés de faze-lo tomar os comprimidos na sua frente, entregou-os e ele saiu para tomá-los. Ao invés disso, trancou-se no banheiro da outra casa, moeu-os e misturou-os ao tabaco de um cigarro, fumando-o.
Esse rapaz era rebelde, relutava em cumprir o que lhe era determinado e falava pelos cotovelos.
No quarto dia, depopis do jantar, ele se recusou a participar da reunião. Quando quiseram forçá-lo a isso, ele saiu correndo da casa. O coordenador e o monitor foram atrás dele, que corria em volta da represa e não se deixava apanhar. Tentavam cercá-lo, mas ele desviava, corria e não havia quem o detivesse. O coordenador me havia alertado que eu não deveria interferir, por isso fiquei só observando. O coordenador e o monitor correram até não agüentar mais, voltando para a casa, sentando-se no degrau da varanda e, quase sem fôlego, olhavam para o maluco que ria e falava sozinho na escuridão. Era visível a contrariedade deles por não conseguir dominar o interno.
Fizeram nova tentativa, correram até se esfalfar e tiveram que desistir de novo, ouvindo a risada e o monólogo do maluco. Descansavam e tentavam de novo, sem sucesso.
Já passava das dez da noite, quando o coordenador me pediu ajuda. Num dos pontos, próximo da represa, havia um arbusto e eu reparei que o maluco sempre passava por ele. Sugeri aos dois que corressem atrás dele, afastando-o daquele ponto. Eu aproveitaria a escuridão e me esconderia sob o arbusto. Eles o dirigiriam para lá e eu o agarraria. Quando ele passou por ali, saltei sobre ele, derrubando-o e imobilizando-o. Levei-o para a casa e trancamos as portas.
Os dois o pegaram e o levaram para o quarto, deixando-o ali e trancando a porta pelo lado de fora. Quando percebi o que estavam fazendo, saí a tempo de segurar o rapaz quando pulava a janela. Quando entrei com ele na casa, o coordenador e o monitor mostraram a expressão de quem vira um fantasma.
Ele não parava de falar, repetindo que viajava para o Paraguai, comprava caixas isqueiros, que vendia com bom lucro. Dizia que ganhava muito dinheiro com atividade tão simples, quando grandes empresários se matavam de trabalhar para ganhar menos que ele. Ria e repetia a ladainha, infindavelmente.
Ele não se cansava, pelo contrário, parecia que as energias se renovavam, acentuando as risadas e o monólogo. O coordenador decidiu ficar vigiando-o. Ele ficaria até a uma hora da manhã, enquanto o monitor dormiria, substituindo-o depois. Eu me coloquei a disposição para que me chamassem em caso de necessidade e fui dormir.
Por volta das quatro horas, o monitor me chamou, pedindo que o substituísse, pois não agüentava mais de sono. Fiquei de plantão até a manhã, ouvindo detalhes das transações com os isqueiros, entremeados de risadas. A disposição dele era a de quem tivesse acabado de acordar de uma noite bem dormida.
Pela manhã, liguei para o Vitor, relatei-lhe o acontecido e pedi que viesse buscar o rapaz, que precisava de internamento em lugar que tivesse as condições que nós não tínhamos. Ele ficou de falar com a família do rapaz e providenciar a remoção.
No final da tarde, não tendo retorno do Vitor, voltei a ligar para ele, que me informou que não tivera condições de ir buscar o rapaz, o que só poderia fazer no dia seguinte. Argumentei que o rapaz precisava de tratamento, que continuava totalmente aceso e que não seria possível mantê-lo ali por mais uma noite. Como ele relutasse, decidi levá-lo, eu mesmo. Pedi que ele avisasse a família do rapaz de que eu o levaria e que informassem onde deveria deixá-lo. Logo depois a mãe dele me ligou e marcamos de nos encontrar em um posto de gasolina, na marginal do Tietê, em São Paulo, onde eles estariam a espera.
Coloquei o rapaz no carro e sai. A pouco mais de um quilômetro do sítio, numa descida, ao passar sobre uma pedra, ela bateu no trambulador do câmbio, soltando-o. Encostei na frente de uma igrejinha que havia ali e deitei sob o carro para verificar o que acontecera. Verifiquei o que havia acontecido, à luz de uma lanterna, pois já era noite. Desengatei o câmbio, por baixo e, foi a sorte, pois havia deixado a chave no contato e o maluco deu partida no motor.
Sai de baixo do carro, espumando de raiva; abri a porta do lado dele, agarrei-o pelo casaco e arrastei-o até uma vendinha que havia logo a frente. Quando entrei ali, arrastando o rapaz, o vendeiro, sua mulher e dois fregueses que ali estavam, olharam com expressões amedrontadas. Expliquei-lhes o que havia acontecido, pedi um alicate emprestado e que tomassem conta do maluco pra mim, enquanto eu tentava consertar o carro. O vendeiro mostrou que já me conhecia, me emprestou o alicate e se dispôs a tomar conta do rapaz.
Depois de arrumar o carro, voltei à venda e encontrei o maluco envolvendo as pessoas na conversa dos isqueiros. Devolvi o alicate, agradeci e, quando fui pegar o rapaz, ele correu em volta da mesa de bilhar que havia ali. Saltei sobre a mesa, agarrei-o e levei-o para o carro. Tempos mais tarde, o vendeiro me confessou que, naquela noite, ficara em dúvida se o maluco era o rapaz ou eu.
Seguimos viagem e o rapaz mudou a conversa. Agora, transmitia detalhes da viagem, como um locutor de rádio: “Olha a curva a direita. Estamos passando por uma árvore grande. Toma cuidado que tem uma subida ai na frente. Fica esperto que vem vindo um carro lá longe. Está vendo? Curva pra esquerda, outra pra direita.” E assim foi até chegarmos ao posto de gasolina onde o encontro fora combinado.
Os familiares dele ainda não haviam chegado e esperamos por uns dez minutos, em que ele voltou a falar dos isqueiros. Quando chegaram, o irmão, mãe e cunhada, se aproximaram de nós. O irmão se dirigiu até ele, enquanto a mãe me cumprimentava. Ele saiu correndo pelo pátio do posto e o irmão atrás. Parecia que estavam brincando de pega-pega. Como corressem entre as bombas de gasolina, coloquei-me junto a uma delas e esperei. Quando ele passou próximo, agarrei-o e levei-o até o carro do irmão. Já transportei muitas coisas, mas esse, foi o mais difícil. Voltei para o sítio, com a voz dele ainda retinindo nos meus ouvidos, mas aliviado, como se tivesse me livrado do inferno.

Foram chegando mais internos e monitores, que me tratavam gentilmente, mas faziam de tudo para me manter afastado do tratamento. Minha única interferência nele, era através da terapia ocupacional que estava sob meu comando. Embora eu me esforçasse para ajudar no que fosse possível e no que me pediam, era evidente que se sentiam incomodados com minha presença, o que não conseguiam disfarçar com as gentilezas que me dedicavam.
Eu discordava de muitas coisas que aconteciam ali, principalmente, o autoritarísmo e o que me parecia excesso de religiosidade. Os internos eram levados da dependência de drogas para a dependência da religião e eram transformados em fanáticos. No entanto, não externava essa opinião a eles, nem aos encarregados do tratamento. Dizia isso ao Vitor, mas ele argumentava que esse sistema vinha dando certo em outras instituições e que, por isso, deveria ser seguido. Eu não concordava, mas não poderia fazer nada, uma vez que havia concordado que o tratamento ficaria por conta deles.

Num Sábado à tarde, quando ainda havia só cinco internos, o coordenador viajou para visitar sua família. Aproveitando que as tardes de Sábado eram livres, o monitor resolveu levar os internos para um passeio, contrariando as normas. Alertei-o para isso, mas ele argumentou que isso era normal, que ele estaria com eles e, portanto, não haveria perigo.
No final da tarde, como eles não tivessem voltado; peguei o trator e fui pela estrada na direção em que eles haviam saído. Andei um bom pedaço, fui até uma cachoeira que havia na região, mas não os encontrei. Voltei com o trator, peguei a camionete, passei na casa do Chico e percorremos um bom pedaço de estrada, perguntamos a quem encontrávamos, mas nem sinal deles. A noite caiu e resolvemos voltar para o sítio, esperando que tivessem voltado. Não voltaram.
Me dispus a continuar a busca, mas o Chico me aconselhou a não faze-lo. Já havíamos procurado onde fora possível e, à noite, não conseguiríamos nada. Sugeriu que esperássemos a manhã e retomássemos as buscas.
Não consegui dormir, preocupado com o que poderia Ter acontecido. Na manhã seguinte, peguei o Chico e saímos com a camionete percorrendo lugares que ainda não tínhamos ido. Procuramos e perguntamos em uma grande região, chegando a Monteiro Lobato. Eu já estava disposto a pedir ajuda da polícia, quando me ocorreu de ligar para o sítio. O monitor atendeu, informando que se haviam perdido na mata, mas que já estavam a salvo.
Eles haviam entrado na mata, sem conhecer absolutamente nada e se perderam. O desespero os dominou e ficaram dando voltas, sem achar o caminho de volta. Um dos internos teve a idéia de acender uma fogueira, passar a noite sem se movimentar e esperar o dia clarear para tentar sair. Na manhã seguinte, por sorte, pois não tinham a menor orientação de onde estavam; acabaram chegando na estrada. Os relatos mostravam o medo que haviam passado, chegando ao desespero e choro convulsivo. O monitor fora o mais desesperado, tendo que ser confortado pelos outros.
Quando fui conversar com ele, do alto de sua prepotência, não admitiu o erro, defendendo que não perdera a calma e que mantivera o grupo sob controle.

Consultei o Chico sobre o melhor lugar para fazer uma horta e ele indicou uma elevação no pé das montanhas, onde havia nascentes de água. O problema é que, embora em uma elevação, o terreno era pantanoso, por causa das nascentes. Durante os períodos de terapia ocupacional, laborterapia, fizemos valetas para drenar o terreno, preparamos os canteiros e plantamos uma boa horta, que fornecia legumes e vegetais em abundância, tanto para o consumo, como para distribuir às visitas, que aconteciam uma vez por mês.

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