quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Camarada

CAMARADA
E aí meu camarada! Saudade.
Tenho pensado muito em você nesses anos todos. Quantos faz? Cinco, seis, sei lá. Não sou bom de memória, principalmente no que se refere a tempo, datas, dias, meses, anos, coisas do tipo.
Você tava com cara de bundão, deitado naquele caixão, com aquela parafernália em volta, gente cochichando, conversando, lembrando; o que todo mundo faz, em todo velório.
Fiquei um tempão olhando pra tua cara, lembrando de conversas que tivemos, de fatos que vivemos, de concordâncias e discordâncias, de sentimentos e de razões. Você já era pra quem ficou. Não tentaria mais impor sua vontade, convencido de que seria aceita, mesmo sabendo que não. Não criaria mais projetos mirabolantes, acreditando que os obstáculos identificados seriam ultrapassados e que o impossível seria realizado. O que acabou de me convencer que você tinha morrido, mesmo, foi você não Ter acendido um cigarro naquele tempo todo. Não restava dúvida: tava morto mesmo!
Pois é; durante esse tempo todo, tenho pensado muito em você, no que vivemos, sentimos e pensamos. Tenho comentado com várias pessoas a teu respeito. Agora, porém, me deu vontade de te escrever.
Não sei se onde você está chegam informações daqui. Se não chegam, você não está perdendo nada. Como a gente comentou muitas vezes, mudam as moscas, mas a merda continua a mesma.
O presidente do senado tá sendo acusado de tanta coisa, com tantas evidências de que as acusações procedem, que fico em dúvida se não é armação pra prejudicar o cara. O negócio começou por causa de uma amante, jornalista, com teve uma filha. Ele confessou o fato e disse já Ter sido perdoado pela mulher e pelos filhos.
O que propiciou a publicidade dos fatos, é que o acusaram de Ter pago pensão para a filha estraconjugal, com dinheiro que teria vindo de uma grande construtora de obras públicas e que o lobysta dessa empresa junto ao congresso, é que teria efetuado os pagamentos, em dinheiro.
O senador se defendeu dizendo que o lobysta só fora intermediário, mas que o dinheiro era dele e, pra provar, apresentou documentos de venda de gado, que demonstrariam que ele tinha recursos pra pagar o devido, desnecessitando de dinheiro oriundo de safadeza.
Foram atrás dos compradores desse gado e descobriram que um deles, era um açougue meketrefe, que não venderia a quantidade de carne declarada nem em dois séculos e meio.
Constataram, também, que a produção de gado, do senador, era de uma eficiência extraordinária: as despesas quase não existiam, enquanto o preço que ele conseguia com a venda dos bois era assutadoramente bom. Altas receitas e insignificantes despesas, mostravam a alta eficiência do senador pecuarista.
Se não bastasse a sujeira que já empregnava o pau de galinheiro do senador, acusam-no de ser sócio de rádios e jornais, comprados em nome de laranjas e, em nome deles, Ter concedido concessão de uma rádio, em sessão do senado que ele presidiu.
Quem acredita que as acusações podem ser verdadeiras, pedem que o senador se licencie da presidência da casa, para evitar possíveis interferências no processo em que é acusado. Claro que a esses, se juntam todos seus adversários e, principalmente, inimigos.
Ah, meu camarada! Me lembrei de você, que argumentaria que isso não seria motivo pra licença e, sim, pra prisão preventiva, quando não perpétua e, quem sabe, execução sumária.
Calma meu camarada! As coisas não são assim. Estamos em pleno estado de direito e o acusado tem o direito de se defender até a última instância. Por enquanto, nem réu ele é ainda, não passa de acusado. Por isso continua presidindo o senado, acusando seus acusadores e livre, livre, livre, livre.
Quem está preso sou eu! Preso de uma raiva desgraçada, do descrédito no ser humano, da desesperança de que as coisas possam mudar. Não há advogado que possa conseguir habeas corpus que me livre dessa prisão. Não há quem possa destrancá-la. A prisão sou eu, o prisioneiro também e o carcereiro nem desconfio quem seja.
Pois é camarada! Não preciso de ninguém pra mi fudê, sou auto-suficiente. Bastaria não dar bola pra isso, considerar que é só mais uma safadeza entre tantas que já aconteceram e outras tantas que ainda acontecerão e pronto! No entanto, não consigo e uso a minha raiva, a minha revolta, a minha desesperança, pra mi fudê as idéias e tumultuar o pensamento.
Ah meu camarada! Como gostaria de ser você nesta hora: apontar o dedo pra alguém e acusá-lo de responsável pelo que me atazana as idéias e me deixa de saco cheio.
Dias atrás, um air bus aproximou de Congonhas, tocou a pista numa boa, mas ao invés de descarregar os passageiros na área de desembarque, assou-os em fogo alto, no interior de um prédio, ao lado de um posto de gasolina, que fazem frente para a avenida que passa no final da pista do aeroporto.
A passagem do avião pela pista foi filmada pelas câmaras do circuito do aeroporto. A velocidade era bem maior que a que seria normal para a frenagem, diminuição e taxiamento. Embora correndo na pista, o avião tinha sustentação o que, não conseguindo parar, planou sobre a avenida e se enterrou no prédio destinado a despacho de cargas aéreas. Todos os que estavam no avião e mais alguns que estavam no prédio ou perto dele, morreram, num total de cento e noventa e nove. Por que teria faltado só um pra duzentos? Vai saber!
De cara, choveram acusações à pista do aeroporto, novinha em folha, mas sem um tal de gruving, ranhuras transversais pro escoamento da água da chuva. A pista estava molhada e, segundo declaração de alguns pilotos que tinham pousado nela, estava escorregadia.
Na hora da tragédia, todos sob forte emoção e a tendência natural de acusar culpados, não seria de estranhar que a pista merecesse esse destaque, carregando para o pódium os responsáveis (ou irresponsáveis) pela sua liberação para uso, sem que tivesse as condições necessárias.
Quando foram apresentadas as imagens das câmaras do aeroporto, mostrando aquele avião correndo na pista, e de outros que conseguiram parar; ficou evidente a diferença entre velocidades. Mesmo que a pista oferecesse o maior atrito possível, aquele avião não pararia nem que as rodas tivessem travado. Ficou evidente que não houve aquaplanagem e, sim, aeroplanagem, tanto é que o avião voou sobre a avenida e não caiu sobre ela, portanto, embora no chão, ele tinha sustentação aerodinâmica.
A leitura das caixas pretas mostraram que o reverso da direita estava desativado, que a manete da esquerda estava na posição reverso, enquanto a outra estava na posição acelerado o que, segundo os especialistas, impediu a ação dos freios aerodinâmicos que, além de ajudar a freiar o avião, aumentam sua pressão sobre o solo.
Pois é meu camarada! Mesmo com tudo isso, com todas essas evidências, ainda tem muita gente, inclusive jornalistas e especialistas, acusando a pista de Congonhas como a culpada pelo trágico espetáculo que livrou de tais absurdos as cento e noventa e nove pessoas que partiram para o além.
Lembrei do cara que, quando pegou a mulher transando com outro, no sofá da sala, não teve dúvida em tomar atitude saneadora: vendeu o sofá!

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