quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Oficina

Eu estava entre os dezesseis e dezessete anos, por aí. Fui trabalhar na oficina de uma empresa de transportes de líquidos, principalmente combustíveis.
Desde criança eu era obcecado por caminhões, principalmente o Alfa Romeu, de cara chata, com as iniciais da Fábrica Nacional de motores (FNM) se destacando na grade do radiador.
Quando um amigo que trabalhava naquela empresa, me disse que iriam contratar um ajudante, não tive dúvida; comecei a trabalhar no dia seguinte.
Era um trabalho pesado e sujo, mas eu não me importava. Passava o dia em meio a carretas e reboques, engatados nos caminhões dos meus sonhos.
Na hora do almoço, me sentava ao volante de um deles e viajava por lugares e estradas imaginadas. Imaginava que, na volta de uma viagem, passava com o caminhão no ponto de ônibus onde todas as tardes eu embarcava em um para voltar para casa e dava carona a amigos e conhecidos que esperavam pelo ônibus. Sentia a admiração deles por eu estar dirigindo um caminhão daquele tamanho e contava histórias acontecidas durante as viagens.
Naquela oficina, como na maioria, o pessoal passava a maior parte do tempo pensando em alguma maneira de fazer uma brincadeira, na maioria das vezes com o objetivo de causar embaraços aos outros, provocando risadas e gozações. Grande oarte dessas brincadeiras, eram verdadeiras malvadezas.
A oficina funcionava em um grande terreno com piso de terra, onde havia um barracão com bancadas. Numa das laterais do terreno, havia uma pequena construção onde ficavam um escritório, banheiros e vestiário.
Um dia, enchi um galão com óleo queimado de motor, amarrei um barbante na alça e pendurei-o no teto do vestiário, próximo da porta. Amarrei outro barbante, enlaçando o galão junto ao fundo. Passei o barbante por uma madeira do telhado e prendi-o à porta. Quando, na hora do almoço, o Tonho foi pegar sua bolsa, empurrou a porta e tomou o maior banho de óleo, que a atingiu em cheio. Ele era muito sério e não gostava de brincadeiras, além de ser muito bravo. Saiu pela oficina procurando o culpado, xingando Deus e todo mundo, provocando as maiores gargalhadas ao expor sua figura toda lambuzada.
Nessa época, foi criada a lei da balança nas estradas, limitando a carga dos caminhões. Como os produtos transportados pela empresa fossem líquidos, os reservatórios dos caminhões eram tanques de aço. Para evitar o balanço exagerado do líquido nos tanques durante o transporte, o volume não pode ser menor do que a capacidade do tanque. Para diminuir o peso, adaptando-o à nova lei, era necessário diminuir o volume, obrigando a reduzir o tamanho do tanque. Para tanto, o tanque era cortado e tirada uma faixa no seu comprimento, reduzindo seu tamanho. Depois de retirada a faixa de metal, o tanque era novamente soldado, por dentro e por fora. Como eram muitos tanques a serem adaptados, houve uma sobrecarga de trabalhos e mandaram o Mané, um cearense que era lavador, para ajudar o soldador. Eles soldavam um dos tanques por dentro, quando o Birosca, que era o soldador, saiu para ir ao banheiro, deixando o Mané, baixinho e cabeçudo, no interior do tanque. Quando o Odair percebeu que o Mané estav sozinho no interior do tanque, fechou a boca do mesmo e desferiu um tremendo golpe com pesada marreta no aço, correndo para se esconder evitando que soubessem que fôra ele o autor as safadeza. Quando o Birosca voltou e abriu a tampa do tanque, o Mané saiu como uma barata que tivesse aspirado inseticida.
Eu tinha preguiça de levar o macacão de trabalho para ser lavado em casa, usando o mesmo por até duas semanas. Claro que ele ficava ensebado de óleo e graxa. Para limpar as mãos, usávamos estopa, que carregávamos no bolso de trás do macacão. Um dia, eu estava na bancada montando um câmbio. O Nelson se aproximou por trás e colocou fogo na estopa que eu tinha no bolso. Como ela estivesse ensebada e o macacão também, o fogo me envolveu por inteiro em segundos. Como eu usasse o macacão quase todo aberto, saí de dentro dele rapidamente, evitando maiores queimaduras, mas, mesmo assim, saí chamuscado e com um pouco de cabelo queimado.
O Mané, cearense, disse para o Nelson que precisava tirar fotos para a carteira profissional, uma vez que a empresa iria registrá-lo. Ele pediu ao Nelson para ajudá-lo pois não sabia como fazer. Ao final do expediente, fomos todos com o Mané ao studio do japonês. Ao chegar, o japonês entregou uma gravata ao Mané. Era uma gravata antiga e bem larga. O Mané pediu ao Nelson que o ajudasse com a gravata. O Nelson disse que o nó da gravata estava mal feito, desmanchou-o e fez outro, deixando só um pedacinho de gravata saindo do nó. Como a gravata era bem larga e o nó foi feito perto da ponta, este ficou parecendo um pacote de tão grande. O Nelson colocou a gravata no Mané e penteou-lhe o cabelo, repartindo-o ao meio, dizendo que, assim, ele ficava muito mais bonito. O Mané era daqueles cearenses sem pescoço. Portanto, o nó da gravata parecia um tijolo entre o peito e o queixo do Mané. Não teve uma pessoa que tenha visto a foto e não tenha caido na gargalhada.

Em um final de tarde, Tonho e Guido, depoios do trabalho, se dirigiram ao ponto de ônibus, onde embarcariam para suas casas.
Embarcaram no ônibus durante uma forte chuva. Quando este atingiu uma avenida ao lado de um rio, a enchurrada muito forte fez com que o motorista perdesse o controle e o ônibus foi arrastado para o leito do rio.
A correnteza muito forte arrastou o ônibus, enquanto ele afundava na água barrenta. Guido e outros passageiros conseguiram sair do ônibus e foram resgatados, Tonho, no entanto, não teve a mesma sorte.
Quando o Tonho não chegou em casa naquela noite, a família procurou os amigos em busca de notícias. As buscas começaram em hospitais, pronto socorros e delegacias de polícia. Dois dias depois chegou a informação de que ele estava no ônibus que caíra no rio.
Eu fui ao instituto médico legal, pela primeira vez na vida, cumprir a desagradável tarefa de tentar identificar, entre os cadáveres sem identificação, o meu amigo Tonho. Foi uma experiência muito desagradável e sofrida. O Tonho não estava entre os cadáveres que verifiquei.
Depois de quatro dias, um cadáver foi encontrado boiando no rio, oito quilômetros abaixo do ponto onde o ônibus caíra. Embora o Tonho fosse magro, o cadáver encontrado estava tão inchado e negro, parecendo um balão inflado. O reconhecimento só foi possível pela análise da arcada dentária, por uma restauração num dos dentes, feita com ouro. A deformação era tão grande que, os parentes e amigos que o olhavam através do visor de vidro no caixão lacrado, não acreditavam que pudesse ser ele.
Além dos pais, irmãos, cunhadas, cunhado e sobrinhos; Tonho deixou a mulher com quem pretendia se casar em breve e um filho recém nascido.

Fui trabalhar em uma oficina de caminhões, no Tatuapé. Era uma verdadeira “boca de porco”, denominação para oficinas sujas e desorganizadas.
Me mandaram ir tirar o motor de um caminhão que havia quebrado na via Dutra, no município de Santa Izabel. Ele estava em um terreno que havia sido terraplenado para a construção de um posto de gasolina.
Levei dois amigos, Bê e Feijão, que estavam desempregados. Começamos a desmontagem do caminhão para a retirada do motor. Depois de algum tempo, o Bê notou que havia um barraco numa das extremidades do terreno.
Fomos até lá e verificamos que era um bar de um japonês. No interior do barraco havia um balcão de madeira, sobre o qual havia queijos frescos sobre folhas verdes de bananeira. Junto às paredes internas, havia prateleiras com muitas garrafas sem rótulos. Observando mais atentamente as garrafas, verificamos que continham cobras. Perguntamos ao japonês para que serviam aquelas cobras nas garrafas.
Ele disse que as cobras estavam mergulhadas em pinga e que, cada uma servia para um tipo de doença. Eram remédios.
Conversamos um pouco com o japonês, tomamos pinga pura, por falta de coragem para ingerir aquelas em que as cobras estavam mergulhadas.
Continuamos o trabalho e meia hora depois voltamos ao bar. Como a primeira pinga já começara a fazer efeito, arriscamos tomar uma das que continham cobra. Quando o japonês fechou o bar, por volta das dez horas da noite, nós já estávamos bêbados de tanto tomar pinga com cobra. O motor teve que esperar até a manhã seguinte para deixar o caminhão.
Já se vão quarenta anos desde aquele dia. Como nunca tive problemas de saúde e continuo assim; chego a pensar se não fui imunizado pelos medicamentos do japonês: pinga com cobra.

Depois de poucos meses, pedi demissão daquela oficina e com o dinheiro recebido, comprei dois sacos vazios de farinha, numa padaria, e enchi-os de frigideiras que comprei numa fabriqueta em Guarulhos, para revendê-las na rua, de casa em casa.
Desde criança, sempre sonhei em ser caminhoneiro e viajar. Peguei os sacos com a frigideiras, peguei um ônibus e fui para uma cidade do interior tentar vendê-las.
Entre os inúmeros talentos que não tenho, está o de comerciante. Andava muito mas só oferecia as frigideiras nas casas onde houvesse alguém do lado de fora. Passava pela maioria sem chamar, justificando, para mim mesmo, que naquelas casas não haveria alguém interessado em comprar frigideiras. Claro que, agindo dessa maneira, as vendas eram mínimas e mal cobriam as despesas.
Depois de várias viagens, para cidades diferentes, fiquei sabendo que haveria uma grande exposição de gado em Londrina, no Paraná, onde se vendia de tudo e com facilidade, devido ao grande público que comparecia. Peguei as frigideiras, embarquei no ônibus e fui pra lá.
A exposição era realizada em um parque especializado para esse tipo de evento. Eles cobravam uma taxa para que vendedores ambulantes ocupassem um espaço para expor as mercadorias.
Depois da taxa paga, em que gastei o último dinheiro que tinha; me destinaram um lugar na calçada da rua principal do parque, a do portão de entrada, uns duzentos metros para dentro dele.
Arrumei as frigideiras no chão, ao lado do espaço ocupado por um rapaz que vendia estátuas de bois, feitas de porcelana. Enquanto ele vendia vários bois, as minhas frigideiras continuavam no mesmo lugar, sem que ninguém se interessasse por elas.
Era Sexta-feira e eu havia chegado no parque no meio da manhã. No final da tarde, um grupo parou para examinar os bois do meu vizinho e uma senhora mostrou interesse pelas frigideiras. Comentou com outra senhora do grupo que há tempo procurava uma frigideira como aquelas, fundas e boas para fritar peixes. Vendi três frigideiras para senhoras daquele grupo. Até a hora em que o parque fechou, não vendi mais nada.
Acompanhei o vendedor de estátuas de boi até uma pensão que ele conhecia. Depois de tomar um banho, encontrei-o na sala me esperando para o jantar. Aleguei estar sem fome e, por isso, não iria jantar. Na verdade, fome era o que não me faltava, o problema é que eu não tinha dinheiro para pagá-la. O dinheiro da venda das três frigideiras só dava para pagar o pernoite.
No dia seguinte, fomos cedo para a exposição. No meio da manhã chegou um rapaz com um saco de prendedores para cabelo de mulher. Eram duas bolinhas ligadas por um elástico, chamadas de Maria Chiquinha. Ele colocou um caixão daqueles usados para embalar maçãs, em pé sobre a calçcada e, com a tampa do caixão, improvisou uma mesinha sobre ele. Colocou um monte de marias chiquinhas sobre a tampa. Começaram a chegar ônibus trazendo estudantes para visitar a exposição. Não passava uma menina ou moça que não comprasse marias chiquinhas. A cada ônibus que chegava, o monte de maias chiquinhas sumia e o rapaz renovava o monte.
O meu vizinho continuava vendendo suas estátuas de bois, não tanto quanto o outro vendia marias chiquinha, mas vendia razoavelmente bem. As minha frigideiras é que continuavam sem merecer atenção dos visitantes.
Depois do almoço chegou outro rapaz. Este vendia una carrinhos de brinquedo, que tinham uma bexiga colocada em um tubinho na traseira. Quando a bexiga era inflada, o carrinho colocado no chão e o furo destampado, ele corria até que o ar da bexiga terminasse. Outro sucesso de vendas.
O vendedor de carrinhos me aconselhou a arrumar as frigideiras, colocando uma de boca para cima e outra, sobre ela, com a boca para baixo. O arranjo dava a impressão de discos voadores, com dois cabos. Até que o visual ficou interessante e chamava a atenção, o que me possibilitou vender umas poucas, o suficiente para pagar o pernoite e a janta. Na noite anterior comi um pão e tomei um café com leite em uma padaria, era só o que o dinheiro podia comprar. Naquela manhã nem café pudera tomar. Depois de vender as primeiras frigideiras, comprei um saquinho de pipocas nem carrinho que ficava junto ao portão.
Naquela noite, quando o parque fechou, fomos para a pensão. Os vendedores de maria chiquinha e o de carrinhos, foram junto. Depois do banho, o vendedor de estátuas e eu fomos até o quarto dos outros dois, chamá-los para jantar. Eles estavam arrumando o dinheiro da féria do dia. Havia um monte de dinheiro sobre a cama de cada um. Notas amarrotadas que eles desamassavam e arrumavam em maços. O meu dinheiro estava todo arrumado, no bolso da calça e, se sobrasse alguma nota depois do jantar, eu já ficaria bem satisfeito.
No Domingo, quando chegamos ao parque, nos avisaram que deveríamos mudar de lugar, para uma rua transversal, porque o presidente da república viria visitar a exposição e a comitiva passaria pela rua que ocupávamos, onde haveria um cordão de isolamento.
Arrumamos as coisas no local indicado. As pessoas se amontoavam junto a rua por onde a comitiva passaria e muito poucos circulavam pelas outras ruas. Os alto falantes do parque anunciavam que o presidente desembarcara no aeroporto local e se dirigia para a exposição.
A comitiva chegou ao portão do parque, desembarcou dos carros e seguiram a pé. Seguranças e soldados correram na frente, estabelecendo cordão de segurança num trajeto diferente do previamente estabelecido. A comitiva passaria pela rua onde estávamos instalados. Ao saber da alteração, o público correu para o novo trajeto, como uma boiada estourada. Minhas frigideiras foram chutadas para o meio da rua. Acho que nunca dei tantos murros e pontapés como naquele dia. Fiquei louco de raiva vendo minhas frigideiras sendo chutadas, espalhando-se pela rua. Quando entrei na rua para juntá-las, os seguranças que vinham à frente da comitiva, me jogaram para trás do cordão de isolamento e chutaram as frigideiras para as laterais da rua.
Eu não gostava muito daquele governo. A partir daquele dia, passei a odiá-lo.
Ainda bem que consegui vender frigideiras suficientes para pagar a passagem de volta Embarquei de volta naquela noite, para economizar o dinheiro da pensão.


Um amigo que fôra motorista na empresa de transportes em que eu trabalhara, me apresentou a um amigo dele que tinha uma oficina mecânica de automóveis. Comecei a trabalhar lá.
Só trabalhávamos eu e o Mané, que era o proprietário. Era uma oficina pequena, na frente da casa em que ele morava. Ele era casado e, junto com a esposa, se empenhavam para que ela engravidasse, o que estava difícil de acontecer.
A freguesia não era grande e os preços que ele cobrava eram pequenos, o que nos levava a viver em constante dificuldade financeira.
Quando terminávamos o trabalho em um carro, saíamos para experimentá-lo. Aproveitávamos para paquerar e tentar conseguir alguma mulher. Nunca conseguimos nenhuma.
Numa Sexta-feira, terminamos de arrumar o câmbio de uma camionete. Ela era de um amigo e vizinho. O Mané propôs que, à noite, fôssemos pegar umas prostitutas que faziam ponto em uma praça, não muito longe da oficina.
Ele disse para a esposa que iria comigo a uma sauna. Saímos e fomos direto para a praça. Como era cedo, por volta das sete horas da noite. Só havia uma puta ali. Como ela concordou em fazer sexo com os dois, entrou na camionete e fomos para um lugar ermo, não muito longe dali. Era um loteamento novo, onde não havia casas.
Estacionei a camionete numa das ruas desertas e desci, deixando o Mané fazer sexo primeiro.
Quando ele terminou, saiu da camionete e eu entrei. Abaixei as calças até os pés e me posicionei sobre a puta, que estava deitada no banco. Nisso, apareceu uma luz de farois de um carro. Me abaixei, espremendo-me sobre a mulher. Era um carro particular, de passagem. Quando me preparava para reiniciar, apareceu outra luz de automóvel, vindo no sentido contrário ao que passara há pouco. Pensei que era o mesmo que voltava.
Não era. Era um carro da polícia, que parou ao lado da camionete. Os policiais desceram e um deles enfiou o cano de uma carabina pela janela da camionete, ordenando que descêssemos.
Um dos policiais foi atrás do Mané que, quando percebeu que era um carro de polícia, saiu andando como se estivesse ali de passagem. O policial trouxe-o até onde estávamos.
O policial me perguntou se o conhecia e eu neguei. Perguntou para a puta e ela também negou.
Os policiais dispensaram o Mané e me colocaram, junto com a puta, na parte de trás do carro deles. Um dos policiais foi dirigindo a camionete e nos levaram para a delegacia.
Chegando na delegacia, me colocaram em uma cela, onde havia várias outras pessoas. Ninguém falou comigo.
Algum tempo depois, abriram a porta da cela e mandaram que todos acompanhassem um policial, que nos conduziu até a porta da rua, mandando-nos entrar em uma viatura estacionada ali.
Fomos levados para a casa de detenção, um prédio muito antigo, no centro da cidade.
Durante a viagem, éramos dez, espremidos num espaço onde, cinco já se sentiriam apertados. Foi um sufoco.
Ao chegar na casa de detenção, nos colocaram em uma cela onde já havia quinze pessoas. Portanto, agora, éramos vinte e cinco a ocupá-la.
Entre os que já estavam na cela quando chegamos, um assumira a liderança; era o chefe. Entre os que chegaram comigo, havia havia um homem grande e forte que, logo que fomos encerrados, quis assumir a liderança da cela. Logo se iniciou uma discussão entre os dois.
Enquanto os dois discutiam, um bêbado que fora levado conosco para lá, vendo uma espécie de cordinha pendurada num prego na parede, com a ponta inferior em brasa, tirou-a do prego, jogou-a no chão e pisou em cima, apagando a brasa. Ouvi vários palavrões e um dos presos deu um forte tapa na orelha do bêbado, jogando contra a parede. A brasa daquela cordinha era o acendedor de cigarros, uma vez que não havia isqueiro nem fósforos na cela.
A discussão pela liderança da cela continuou, com os presos se posicionando a favor de um ou de outro. Era um clima de terror, indicando que uma violenta briga acabaria acontecendo ali. Depois de algumas horas de tensão, os dois se acertaram e dividiram a liderança.
Durante a discussão a tensão era enorme. Uma briga ali poderia Ter sérias conseqüências. Mesmo depois do acerto, a tensão não me permitia relaxar.
Por volta do meio dia do Sábado, me soltaram. Simplesmente me devolveram os documentos e me mandaram embora. Nem na delegacia, nem ali me perguntaram qualquer coisa, nem me disseram nada.
Quando me vi na rua, corri desesperadamente, explulsando a tensão por que havia passado durante o tempo em que ficara encarcerado.
Peguei um ônibus e fui direto para a oficina. Ao descer do ônibus, em frente ao bar que freqüentávamos, vários amigos vieram me perguntar o que havia acontecido. Disseram que havia várias pessoas tentando me encontrar desde a noite passada, quando o Mané dissera que eu fôra preso. Ele disse que, na saida da sauna, ouve uma briga, que fomos envolvidos sem querer e que a polícia havia prendido alguns dos briguentos, eu entre eles.
Várias pessoas passaram o resto da noite e a manhã de Sábado me procurando em várias delegacias mas não haviam encontrado nenhuma pista de onde eu estivesse. Vivíamos numa ditadura e a polícia não se dignava a dar satisfações. Tanto é que me prenderam por mais de quinze horas, sem me acusar de absolutamente nada.

Lendo o classificado de empregos de um jornal, verifiquei uma oferta de emprego para motorista de caminhão.
Era uma fábrica de colchões e estofados. Na porta da indústria, uma dezena de homens esperavam para serem entrevistados. Preenchi um formulário que o porteiro me entregou e devolvi-o .
Todos os candidatos que esperavam eram motoristas experientes e com idades acima de trinta e cinco anos. O único moleque era eu, com menos de um ano de habilitação e sem experiência.
Fui o último a ser entrevistado. O entrevistador era o mecânico dos caminhões. Ele, sabendo que eu também era mecânico, dedicou-me atenção especial. Disse-me que não poderia me preferir em detrimento dos outros candidatos que eram experientes, enquanto eu não tinha qualquer experiência, nem maturidade suficiente para a responsabilidade que era viajar com uma caminhão. No entanto, disse-me que também precisavam de um motorista para trabalhar com uma perua, fazendo o correio entre as três fábricas que compunham o conglomwerado; além de puxar uma carreta em que iam sendo depositados retalhos de madeira e serragem.
O correio era feita duas vezes por dia, transportando documentos entre as três fábricas. O transporte da carga da carreta, também, era feita duas vezes por dia, descarregando-a num lixão próximo. Como ele me prometesse que, se eu demonstrasse um bom trabalho com a perua, poderia Ter chance de ser transferido para um caminhão, aceitei o emprego e comecei a trabalhar no dia seguinte.
Depois de um mês, um dos motoristas de caminhão pediu demissão. O mecânico convenceu o chefe dos transportes de que deveria me dar uma oportunidade. Que eu demonstrara responsabilidade e dedicação ao trabalho no período em que estava trabalhando alí. O chefe acabou concordando em fazer um teste de volante comigo, fazendo-me dirigir um caminhão pelas ruas próximas à fábrica. De volta à fábrica, mandou-me fazer várias manobras e, ao final, concordou que eu ocupasse a vaga. Fiquei tão feliz que nem consegui dormir aquela noite, esperando realizar no dia seguinte, o maior sonho que tivera até ali, iniciado na infância.
No dia seguinte, o caminhão foi carregado e o destino da carga era o Rio de Janeiro. Foram carregados o meu e mais dois caminhões, para o mesmo destino. O chefe queria que eu fosse acompanhado por motoristas mais experientes. No final da tarde, terminada a carga dos caminhões; os outros dois motoristas combinaram comigo que, cada um passaria em sua casa para jantar e pegar roupas e que nos encontraríamos no primeiro posto de gasolina após a entrada de Jacarei.
Quando estacionei o caminhão na frente de casa, o barulho fez com que minha mãe viesse à janela verificar o que acontecia. Perguntou-me sobre o que eu estava fazendo com aquele caminhão. Quando lhe disse que estava trabalhando com ele e que iria viajar, ela quase teve um ataque. Disse que eu não poderia ir, que era muito novo para sair viajando pelo mundo, que eu não tinha experiência da vida e que acabaria me matando por esse mundo afora.
Jantei ouvindo seu sermão e tentando mostrar-lhe que não havia perigo, mas ela não se convencia. Terminando o jantar, peguei uma muda de roupa e uma blusa, dei um beijo em minha mãe e sai. Só parei de ouvir o seu sermão quando o barulho do motor abafou sua fala.
Eu vibrava ao volante daquele caminhão, era a realização de um sonho há muito acalentado. Saí da cidade e peguei a estrada. Maravilhoso!
O caminhão do Alemão estava estacionado em frente à borracharia do posto, em Jacarei. O Nelson ainda não havia chegado. Estacionei ao lado do caminhão do alemão e, como o borracheiro me dissesse que ele estava no restaurante, dirigi-me para lá.
O Alemão estava sentado em um banco alto, junto ao balcão, conversando com um garçom. Aproximei-me e ele sorriu ao me ver. Quando lhe perguntei porque chegara tão cedo, ele disse que não passara em casa, que viera direto. Não gostava de passar em casa com o caminhão, porque nas ruas do seu bairro havia muitos fios baixos e a carga alta do caminhão não lhe permitiam passar. Para ir em casa, tinha que deixar o caminhão a uns cinco quarteirões de distância e ir a pé. Como naquela noite não estava disposto a andar, decidira vir direto da fábrica para a estrada.
O Alemão era albino, com o cabelo de um amarelo muito claro e a pele bastante avermelhada. Ele me convidou para tomar uma pinga mas eu recusei, alegando que havia terminado de jantar. Ele tomou a pinga e eu, um café. Ficamos ali conversando até que o Nelson chegou. O Alemão tomou mais uma pinga, o Nelson e eu tomamos café, pagamos a despesa e nos dirigimos para os caminhões. Eles me avisaram que a prócima parada seria em Guaratinguetá.
Seguimos viagem e eu não cabia em mim de tanta felicidade. Já começava a me sentir um veterano do volante.
Paramos em Guaratinguetá, num posto de gasolina, onde parecia que o produto mais consumido ali eram as prostitutas, tamanha era a quantidade delas perambulando pelo páteo do posto e pelo acostamento da estrada.
O Nelson e o Alemão conheciam uma porção de motoristas que estavam por ali. Durante a noite o movimento de caminhões na Dutra era muito grande, transportando todo tipo de carga entre as duas maiores cidades do país. O Alemão tomou mais uma pinga, enquanto o Nelson e eu tomamos café com bagaceira.
Perambulamos um pouco pelo páteo, entre motoristas e putas. Pegamos os caminhões e partimos com destino à próxima parada, em Lorena, ali perto, onde cochilaríamos um pouco.
O posto que paramos em Lorena, ficava do lado da pista contrária. Estacionamos em um páteo de terra, em frente ao posto, atravessamos a estrada e chegamos ao páteo, onde circulavam outra porção de putas. Depois de cigarros e pinga, o sexo era o produto mais comercializado naqueles postos de gasolina.
O Alemão tomou mais uma pinga, enquanto o Nelson e eu tomamos mais café com bagaceira. Notei que o Alemão bebia bastante, mas não comia nada. Fomos para os caminhões e nos esticamos para cochilar um pouco.
Minha primeira noite na estrada na cabina de um caminhão. Estava tão excitado que demorei para dormir.
Saímos por volta das três e meia da manhã. Antes fomos ao posto, lavamos o rosto, o Alemão tomou mais uma pinga e o Nelson e eu mais café com bagaceira.
Na altura de Barra mansa, num longo trecho de estrada reta e plana, O Nelson puxava a fila, o Alemão ia no meio e eu atrás. Nessa reta, percebi que o caminhão do Alemão oscilava de um lado para o outro, levemente. Achei que ele poderia estar com algum problema, acelerei e emparelhei meu caminhão ao dele. Olhei para o Alemão e ele estava estático, não olhando para mim nem quando acionei a busina elétrica. Percebi que ele adormecera e fiquei com medo de assustá-lo e ele puxar seu caminhão para junto do meu, abalroando-me. Mesmo assim, acionei a buzina a ar, que era muito mais forte. Ele estremeceu, olhou pra mim e fixou o olhar no parabrisa, controlando a direção do caminhão. Voltou a olhar pra mim, levantou a mão com o polegar pra cima, deu um sorriso e voltei a ocupar o lugar atrás dele.
Chegamos ao Rio por volta das seis horas da manhã, estacionando no páteo do depósito de uma rede de lojas, onde iríamos descarregar, quando já passava das sete horas. Só fomos liberados no final da tarde.
Dois ajudantes que trabalhavam no depósito carregando e descarregando caminhões, me pediram carona até a baixada fluminense, onde moravam. Quando saímos do depósito, um deles me disse, em tom de gozação, pra eu tomar cuidado no trânsito porque carioca era meio louco no trânsito e um paulista novato como eu, poderia Ter problemas no trânsito. Como o caminhão estivesse vazio e tinha um motor V-8 a gasolina, andei no trânsito congestionado, como um moleque irresponsável fazia em um racha de rua. Não demorou para que o mesmo rapaz que quisera me gozar, pedisse pelo amor de Deus para que eu dirigisse mais tranqüilo, demonstrando estar morrendo de medo.
Parei em um posto de gasolina no pé da serra das Araras e esperei pelo Alemão e o Nelson. Quando eles chegaram, me disseram que pararíamos em Barra Mansa par jantar.
Estacionamos os caminhões no acostamento, atravessamos a estrada e subimos por um trilho morro acima. O reataurante do Ceará ficava mo meio de um morro, há uns cem metros da estrada. Era um barracão de madeira onde havia duas mesas compridas com bancos. Depois de tomar algumas pingas, comemos arroz, feijão e costelas de porco fritas. A comida era muito boa e barata, por isso valia a pena subir o morro.
Depois das paradas nos mesmos postos que paramos na ida, chegamos a São Paulo no começo da manha. Eu concluira minha primeira viagem. O sonho havia se tornado realidade.

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