quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Juca

JUCA

Juca era interno de um hospital psiquiátrico. Seu problema era a agressividade, embora fosse calmo, até demais. Não era autor e, sim, vítima da agressividade que provocava nos outros contra si.
Tinha pai, mãe, irmãos, tios, sobrinhos, em fim, uma família bem grande.
Concluiu o segundo grau depois de passar por várias escolas, de onde, invariavelmente, era convidado a se retirar e procurar outra.
Teve vários empregos, mas como nas escolas, parou pouco em cada um.
Não havia roda de amigos que não dispersasse menos de cinco minutos depois que ele chegasse. Nos últimos tempos, ao verificarem que ele se aproximava, os membros de qualquer grupo de conversa, dispersavam rapidamente.
Os irmãos se casaram, na primeira oportunidade, para fugir do convívio com ele.
Foi tratado por vários psicólogos e psiquiatras, foi analisado em um centro universitário de pesquisas, mas nenhum resultado positivo foi conseguido. Foi levado a várias religiões, mas o resultado esperado teimava em não acontecer, pelo contrário, a doença progredia.
Depois de tentar tudo que era possível, a família decidiu seguir o conselho que ouvira inúmeras vezes nos últimos anos e o internara naquele hospital psiquiátrico.

O PASTOR
Certa vez, um vizinho, evangélico, comentara o caso do Juca com o pastor de sua igreja e este se propusera a tentar ajuda-lo. Foi até sua casa e mantiveram uma longa conversa. Depois das apresentações e comprimentos usuais, o diálogo teve início.
P - Juca, você acredita em Deus?
J - Acredito.
P - Conhece a bíblia?
J - Um pouco
P - O que acha dela?
J - Muito confusa.
P - Por que?
J - É contraditória. Diz uma coisa numa parte, o contrário em outra e a gente fica sem saber o que é certo ou errado.
P - Por que? Me dê um exemplo.
J - Ela diz que Deus é poderoso, extremamente capacitado, bondoso, justo, infalível, etc.. Por outro lado, descreve falhas e fracassos que Ele teria cometido.
P - Como assim?
J - Depois de criar o universo, Ele teria criado o ser humano que, em pouco tempo, desobedeceu suas orientações e foram punidos por isso. Os filhos do primeiro casal foram protagonistas do primeiro fraticídio. O ser humano continuou errando, desafiando o Criador, tentando, inclusive, construir uma torre para chegar ao céu, pretendendo invadir a morada do todo poderoso. Ao que fez Deus para impedir que isso acontecesse?
P - Fez com que, os que trabalhavam nessa obra, falassem idiomas diferentes, impedindo que se comunicassem, impossibilitando a continuidade da mesma.
J - E o senhor acha que isso foi uma solução inteligente?
P - Acho. Ele poderia ter impedido essa construção por outros meios, mas optou por não usar de violência, nem impedir o livre arbítrio que atribuíra ao ser humano ao criá-lo. Permitindo que os homens tentassem construir essa torre, deu-lhes a oportunidade de aprender a construir torres e, depois, castigou-os por terem desobedecido suas orientações. Não te parece que foi uma atitude razoável?
J - Não. Ele não corrigiu o problema principal, que era a ambição do homem em desafiá-lo, e criou outro: a dificuldade de comunicação entre os homens.
P - Ele impediu que a obra continuasse.
J - Mas não impediu que o homem continuasse errando. Tanto é que, chegou o ponto em que ele verificou que a humanidade havia exagerado nos erros cometidos e decidiu acabar com tudo, permitindo que só a família de Noé e um casal de cada animal, continuassem vivendo, valendo-se da arca que mandara Noé construir. Criou o dilúvio e exterminou a vida da Terra, imaginando que os passageiros da arca promoveriam a repovoação, eliminando as distorções ocorridas desde a criação até ali. Não foi isso que aconteceu?
P - Foi. Ele quis dar mais uma oportunidade para que o homem percebesse os erros cometidos e construísse uma sociedade que respeitasse suas determinações.
J - Imagino o nível de deterioração que a humanidade atingira, para que Deus tivesse tomado atitude tão drástica, eliminando todos, salvando apenas uma família. A bíblia diz que ele fracassou, pois a sociedade que se formou a partir da família de Noé, insistiu em desobedecer as determinações de Deus, cometer uma enormidade de erros e provocar que, mais tarde, o criador enviasse seu filho para tentar modificar a maneira de ser dos homens. Foi ou não foi um fracasso?
P - Não considero assim. Deus deu mais uma oportunidade para o homem verificar que sua desobediência, seus erros, sua prepotência e seu egoísmo, eram geradores de grande sofrimento e infelicidade. Ele acusou o erro, castigou, mas permitiu que, mais uma vez, o homem tomasse consciência e se corrigisse.
J - Não senhor! Os únicos que tiveram chance de corrigir os erros cometidos, foram os familiares de Noé. Todos os outros foram aniquilados, morreram afogados.
Tem mais uma coisa imcompreensível nesse episódio do dilúvio: que mal haviam cometido os animais que também morreram em conseqüência da enchente?
P - O dilúvio tinha que ter proporções suficientes para exterminar totalmente a humanidade, a não ser a família escolhida; portanto, a morte dos animais foi um efeito colateral.
J - A capacidade que Deus demonstrou ao criar o universo e, principalmente os seres vivos, é mais que suficiente para que ele pudesse exterminar os homens, sem sacrificar ao coitados dos animais que, aparentemente, não tinham culpa nenhuma.
P - Bem, Juca, como você acabou de dizer, a capacidade de Deus é infinita, muito além do que podemos compreender. Com certeza ele tinha seus motivos para que as coisas tivessem sido assim e não de outra maneira.
J - Com isso eu estou de pleno acordo. É impossível ao ser humano compreender as intenções de Deus. Se ele quisesse que soubéssemos, permitiria que isso acontecesse, dando-nos o conhecimento necessário. Se mantém segredos é porque quer que assim seja. Isso mostra que a bíblia é fruto da imaginação do homem, especulando sobre as intenções de Deus.
P - Não! Não é assim. Ela foi escrita por homens escolhidos por Deus para fazê-lo. Ele os inspirou, revelou-lhes o que queria que fosse conhecido. Concordo que mantém muitos segredos, mas as revelações da bíblia foram ditadas por ele. Ela estabelece as normas que devem ser seguidas pelos homens para satisfazer o desejo do criador. É uma espécie de manual do ser humano.
J - Deus sabe que grande parte da humanidade tem grandes dificuldades de interpretar textos. A bíblia é um texto muito complicado, permitindo várias interpretações, o que dificulta que o indivíduo entenda quais os desígnios do criador. Teria sido muito mais fácil que ele fornecesse esse conhecimento diretamente ao indivíduo, capacitando-o a compreender, evitando que errasse por desconhecer.
P - É para isso que existem os pastores: para esclarecer dúvidas, levar a palavra de Deus aos cegos e analfabetos, evitar interpretações errôneas, em fim, evitar distorções sobre os desígnios do criador.
J - Os pastores de igrejas, diferentes da sua, dizem o mesmo e dão interpretações diferentes das suas, afirmando que a interpretação deles é a verdadeira. Os padres têm uma interpretação muito diferente da dos evangélicos e garantem que a sua é a verdadeira, mesmo porque, teria sido a igreja católica quem construíra a bíblia, cabendo-lhe a autoridade de difundir as verdadeiras intenções do criador.
P - O fato de eles terem reunido em livro os manuscritos dos escolhidos de Deus para divulgar seus desejos, não lhes dá autoridade para se jactarem de donos da verdade. Eles cometeram muitos erros no decorrer dos anos, causando desidências, provocando o aparecimento de novas religiões, por aqueles que abnegavam os erros e distorções cometidas. Foi isso que provocou interpretações diferentes da bíblia.
J - Como qualquer livro, é evidente que a bíblia está sujeita a interpretações. Esse é o principal problema, pois não parece razoável que Deus admitisse que seus desígnios pudessem ser modificados pelas mais variadas interpretações do ser humano.
Por outro lado, existem afirmações na bíblia que por mais que se queira interpreta-las de maneira diferente; é evidente o contra senso que está escrito. É o caso de a mulher ter que se afastar de casa durante o período da menstruação, pois ela era considerada uma impureza inaceitável. Ao que tudo indica, a menstruação foi criada por Deus, por que então ela teria que ser repudiada pelos homens, por orientação do criador?
P - Eu entendo que isso se deve ao pecado original. Eva teria sido condenada à menstruação como castigo por ter induzido Adão a comer o fruto proibido.
J - Não lhe parece injustiça condenar todas as mulheres, que não tiveram nada a ver com aquele episódio, a pagar por ele?
P - Bom, como já disse antes, existem determinações de Deus que não conseguimos compreender. Nós não sabemos o porquê, mas ele sabe; cabe-nos aceitar.
J - No entanto, hoje isso já não é considerado da mesma maneira; a mulher não tem que deixar seu lar nesse período e todas as religiões aceitam isso. Deus mandou alguma emenda à bíblia alterando o disposto anteriormente?
P - Não. Essas mudanças se devem à compreensão do homem de que a evolução dos tempos, as mudanças sociais, exigem alterações. Não é razoável que, com tantas e tamanhas alterações ocorridas no ser humano e na sociedade; as regras continuassem inalteradas.
J - Isso seria razoável se o formulador dessas leis e regulamentos não fosse Deus. Que autoridade tem o homem para modificar o que ele teria determinado, sem consulta-lo?
P - Para isso foi que ele deu o livre arbítrio ao homem; para que pudesse escolher, adaptar o que fosse necessário.
J - Então, por que tantas outras coisas, que me parecem verdadeiros absurdos na bíblia, continuam sendo seguidas fielmente, sem que se permita que o bom senso os modifique?
P - É que em algumas coisas as determinações de Deus são mais rígidas, em outras, mais maleáveis. Nestas, o homem pode interferir, adaptar, nas outras, não.
J - Onde isso está escrito?
P - Em lugar nenhum. É uma questão de bom senso.
J - Tenho a impressão de que é mais uma questão de interesses do que de bom senso. É o mesmo que acontece com o livre arbítrio: quando interessa à argumentação, ele existe; quando não, o que manda é a vontade de Deus.
P - O homem é dotado de livre arbítrio, ele pode escolher, mas terá que arcar com as conseqüências de suas escolhas.
J - O problema é que em grande parte das vezes, quem paga pelos erros são terceiros e não quem os cometeu. Pelo erro do homem paga a natureza, os animais, o meio ambiente e, principalmente, outros homens que não podem evitar os efeitos de erros que não cometeram.
P - Isso é conseqüência do livre arbítrio. Se Deus dotou o homem dessa liberdade, não pode restringi-la, impedindo-o de usá-la. As conseqüências são inevitáveis.
J - Vocês não afirmam que Deus sabe tudo do passado, do presente e do futuro?
P - É verdade.
J - Então, ele sabe os erros que o homem cometerá, suas conseqüências e os prejuízos que causará a quem não pode evitar que os cometa. Muitos homens que morrem nas guerras, não sabem a causa delas. A maior parte das vítimas do terrorismo, desconhece a motivação dele. O soldado foi obrigado a ir para a guerra; a vítima do terror não tinha a menor condição de saber que a bomba explodiria naquela hora, naquele lugar. No entanto, Deus saberia de tudo, sem interferir para evitar essas tragédias.
P - Volto a dizer que é impossível ao homem conhecer as intenções de Deus.. Ele tem seus motivos.
J - Nisso, estou de pleno acordo. Então, por que as religiões afirmam conhecer os desejos e designações de Deus?
P - Juca, você precisa deixar de questionar tanto e ter fé. A fé é fundamental para a vida. O questionamento tem limites; a fé, não. Entregue-se nas mãos de Deus e ele te conduzirá por caminhos seguros.
J - Como é que o senhor sabe disso?
P - Porque Deus o disse.
J - A quem?
P - Aos escritores da bíblia.
J - Num ponto ele diz que o homem deve usar o livre arbítrio; no outro, pede para segui-lo, abandonando essa liberdade. Qual dessas orientações deve ser seguida?
O pastor, demonstrando grande impaciência na expressão; olhou para o relógio de pulso, passou a mão pela cabeça e disse:
P - Juca, está ficando tarde e tenho um compromisso inadiável. Vá até a igreja, participe dos cultos, exercite a fé e, assim, muitas das suas questões serão respondidas diretamente por Deus, no seu interior. Os homens são falhos, enquanto Deus é perfeito. Entregue-se a ele e deixe-se conduzir e verificará o quanto sua vida melhorará.
O pastor levantou-se, despediu-se de Juca e caminhou para a saída. A mãe do Juca acompanhou-o até o portão, onde ele lhe disse:
P - O caso do Juca é grave e recomendo que procurem ajuda psiquiátrica, ou ele para com essas manias, ou vai deixar todo mundo louco. Se ele aceitasse freqüentar os cultos, poderíamos tratá-lo, mas não acredito que ele aceite. Sem isso, não poderemos fazer nada.

A AMANTE DO PAI
Juca era muito curioso, lia tudo que lhe caia nas mãos e não perdia oportunidade de escutar conversas.
Certa vez, quando Juca tinha sete ou oito anos de idade, sua mãe conversava com uma vizinha, enquanto ele parecia distraído com a montagem de um quebra-cabeças.
M - Ando injuriada com meu marido! De uns tempos pra cá, não tem semana que ele não chegue tarde duas ou três vezes na semana. Diz que tem muito trabalho e que precisa fazer horas extras pra que não fique acumulado. É pura desculpa, o que ele está fazendo mesmo, é tendo um caso com uma cirigaita que trabalha com ele. Ela não vale nada, veste roupas provocantes, toda maquiada e perfumada, com o único objetivo de conquistar homens. Tenho certeza que meu marido anda tendo um caso com ela.
V - Nossa! Nunca poderia imaginar uma coisa dessas, seu marido parece tão sério, respeitador, trabalhador, dedicado à família. Você tem certeza do que está dizendo? Não é o ciúmes te fazendo imaginar coisas?
M - Que nada! É pura safadeza, ela provocando e ele aproveitando pra curtir uma mulher diferente.
V - Você já pegou alguma coisa que evidenciasse que isso está acontecendo? Manchas de batão, perfume na roupa dele, ou algo parecido?
M - Não. Ele é esperto. Não iria cometer erros assim.
V - Já o sondou pra ver se pegava alguma coisa?
M - Já liguei pra lá, durante essas horas extras e ele sempre atende o telefone. Já cheguei lá de surpresa.
V - E ai? Flagrou alguma coisa?
M - Nada. Estava trabalhando. Na verdade estava fingindo trabalhar, enquanto a cirigaita deveria ter se escondido. Eles são espertos, não dão ponto sem nó. Fazem tudo direitinho, por isso é difícil flagra-los.
V - /tem certeza que não é sua imaginação que está criando essa possibilidade?
M - Absoluta. Mulher não se engana com coisas assim. A gente sente quando está sendo traída. O difícil é provar; mas isso não quer dizer que a traição não está acontecendo. Enquanto eu, aqui, cuido da casa, das crianças, lavo roupa, faço comida, dou chazinho e remedinho quando ele está doente; a cirigaita só aproveita o bom, sem trabalho nenhum, só desfrute. Isso me deixa louca!
V - Estou abismada! Nunca poderia imaginar uma coisa dessas do seu marido que parecia ser um homem modelo. É muita hipocrisia! Muita safadeza! Um homem assim, não merece o chão que pisa, muito menos uma mulher dedicada como você. É um safado, sem vergonha, mal caráter. Esse cara não vale nada!
M - Epa! Não fala assim do meu marido. Como você se atreve entrar na minha casa pra falar essas coisas do meu marido?
V - Foi você que falou o que ele anda fazendo. Que classificação merece um cara que faz coisas assim?
M - Isso não te dá o direito de vir na minha casa, falar coisas terríveis do meu marido. Você tem provas do que está dizendo?
V - Quem contou as safadezas que ele anda fazendo foi você. Estou me baseando no que você disse.
M - Isso não te dá o direito de chamar meu marido de safado, sem vergonha, mal caráter.
V - Mas, foi você quem falou tudo isso.
M - Eu posso, pois é o meu marido. Você é só uma vizinha, não o conhece direito e se atreve a falar gatos e sapatos dele. É muita cara de pau. Quer saber de uma coisa? Você é maluca e muito atrevida. Faça o favor de ir embora e nunca mais olhar na minha cara!
V - Era só o que me faltava! Você me chama aqui, fala que seu marido tem uma amante, que te engana com o maior cinismo, se lamenta e se mostra revoltada e, quando o classifico, em função do que você disse; se revolta contra mim? Só sendo maluca mesmo!
A vizinha saiu batendo a porta e a mãe do Juca ficou transtornada, resmungando contra o atrevimento da vizinha.
Juca, que ficara quietinho, ouvindo tudo, perguntou à mãe: Por que a senhora ficou brava, se foi a senhora que contou que o papai está namorando a cirigaita?
M - Cala a boca menino! Criança não entende dessas coisas. Fica ai se fingindo de morto, fingindo que está brincando, só pra ficar xeretando a conversa dos adultos. Não sabe que isso é muito feio? Vai já tomar banho e ficar no quarto até a hora da janta, pra aprender a não se intrometer na conversa de gente grande.

NAMORADO DA PRIMA
Nas férias, Juca foi passar uns dias na casa de uma tia. Moita, como sempre, ouviu a conversa entre as primas Vera e Sandra, a respeito do namorado da primeira.
S - Como vai o seu namoro com o Paulo?
V - Vou ter que terminar com ele. É muito safado.
S - Mas ele é um gato!
V - Gato e safadp. Ontem à noite, quando eu voltava da escola, ele estava dando uns amassos na Ritinha, no portão da casa dela.
S - E ai, o que você fez?
V - Quando viram que eu me aproximava, correram pra dentro, antes que eu chegasse até eles. Não é a primeira vez, já os peguei juntos outras vezes.
S - E o que ele diz?
V - Que ela é uma galinha, que só se diverte com ela, mas que é de mim que ele gosta mesmo. Quando tentei terminar com ele, alegou que era só farra, que eu não deveria dar mais valor praquilo do que pro nosso amor. Eu até entendo que ela seja só diversão, mas é difícil aceitar uma coisa dessas.
S - E as drogas, ele parou?
V - Que nada. Todo dinheiro que consegue é pra comprar pó. Depois de ter vendido um bujão de gás, o processador de alimentos e um aparelho de som, da casa, o pai colocou-o pra fora quando ele vendeu o vídeo cassete. Passou duas noites na casa do Pedrinho, mas depois de tanto a mãe insistir, o pai deixou que voltasse.
S - E trabalho, ele arrumou?
V - Que nada. Depois que foi mandado embora daquele escritório de um amigo do pai dele, que o contratara a pedido dele; por chegar sempre atrasado e, principalmente, por ter roubado uns pacotes de papel sulfite; não conseguiu mais nada.
S - E como ele consegue dinheiro pra comprar droga?
V - A mãe e a avó, sempre que podem, dão algum, escondido do pai. Elas fazem isso com medo de que roube pra comprar a droga. Não adianta nada, pois ele vive roubando rádios de carro e outros objetos que encontra dando sopa.
S - E a você, como ele trata?
V - Todo carinhoso. Vive me elogiando, dizendo que sou inteligente, bonita, gostosa, gente fina. Quando brigo com ele, pede desculpas, promete que vai mudar, me acaricia e beija. Acaba me envolvendo e me fazendo desistir de abandoná-lo. Mas, ta difícil de segurar a onda. Ele apronta uma atrás da outra. Sabe o que ele fez outro dia?
S - O que?
V - Ele me convidou pra visitar o Leleu na cadeia. Eu tinha comentado com ele, tempos atrás, que gostaria de visitar uma cadeia pra ver como era o ambiente lá dentro. Ele dizia que era um ambiente muito ruim, que não era pra gente como eu. Nesse dia, surpreendetemente ele me convidou pra essa visita. Fomos com o Tonho, no carro dele. Quando chegamos, o Tonho desceu do carro e ficou esperando do lado de fora. Ele me deu um rolinho, no formato de um absorvente OB e me pediu pra enfiá-lo na xoxota. Achei aquilo um absurdo, recusei e ia descer do carro, quando ele me segurou, disse que não havia perigo, que mesmo que me fizessem tirar a roupa, ninguém ia enfiar o dedo em mim pra descobrir se levava algo. Que ele havia prometido entregar aquele negócio em troca de uma dívida que tinha com a boca, que se não fizesse isso, corria o perigo de morte. Acabei cedendo, enfiei o rolinho e entramos. Na hora da revista, passei o maior medo. A mulher cismou comigo, me fez tirar toda a roupa, que virou do avesso procurando alguma coisa. Me fez tirar até a calcinha e fiquei apavorado pensando que o negócio pudesse aparecer. Foram minutos de verdadeiro terror. Quando a mulher me mandou vestir a roupa, senti como se tivessem tirado o mundo de minhas costas. Lá dentro, eles me levaram para um canto e ficaram na minha frente, formando uma espécie de biombo, enquanto eu tirava o rolinho. Entreguei a ele que o passou para o Leleu. Ele se afastou e vi quando lambia o plástico do rolinho. Senti nojo, como se ele estivesse passando a língua em mim. Foi uma experiência terrível, que espero nunca mais repetir.
S - Pode ter sido terrível, mas tem o lado bom, a adrenalina, a aventura. É uma experiência que poucas pessoas tem a chance de experimentar. Você deve isso a ele, poder ter vivido isso, sem maiores conseqüências.
V - Se quiser experimentar, deve ser fácil; é só se oferecer, o que não falta é gente querendo introduzir droga nos presídios.
S - Não. Não tenho coragem. Mas acho legal.
A mãe delas chegou do supermercado, onde fora fazer compras. Demonstrava mau humor e foi logo se dirigindo à Vera.
T - Aquele sem vergonha do Paulo estava com sua turminha perto do supermercado. Ainda teve a cara de pau de me cumprimentar, sorrindo, como se fosse a criatura mais pura do mundo. Até quando você pretende levar esse namoro com ele? Até que vá para a cadeia ou para o cemitério?
Afinal, esse é o único destino de gente como ele.
V - Vocês são só preconceitos! Se o cara não for cdf, passar o dia estudando em casa ou trabalhando, só tendo amizades como ele; é vagabundo, sem vergonha, bandido. Você não percebe que existe gente diferente e que, nem por isso, é ruim, muito pelo contrário. Quantos artistas famosos, não foram classificados de vagabundos e até marginais, antes de conseguir o sucesso?
T - E esse traste do Paulo, tem alguma pretensão artística?
V - Não. Ele está na fase de se definir, de encontrar seu rumo. Ao invés de compreender, as pessoas só sabem criticar. Ajudar ninguém quer, mas pra criticar sobra gente. Vocês vivem falando em respeito, no entanto, cadê o respeito que deveriam ter pelos que optam por uma vida diferente?
T - Diferente em que? É diferente dos que se sacrificam para estudar e trabalhar, respeitar os direitos dos outros. No entanto, é igual aos que se negam a estudar e trabalhar, vivem as custas dos pais, causando sofrimento e prejuízos, sendo uma fonte constante de problemas.
V - A senhora já fez alguma coisa pra ajudar pessoas assim, ao invés de só ficar criticando?
T - Você acha que está ajudando, namorando com ele? Ao invés de ajuda-lo, vai acabar sendo envolvida por ele e se desencaminhando também. É muito mais fácil ele te mudar do que você a ele. Já cansei de te avisar, seu pai também; você ainda vai chorar lágrimas de sangue por causa desse vagabundo.
V - Vocês não têm o direito de falar assim dele. Ele é bom, só não encontrou o seu caminho ainda. Se não querem ajudar, pelo menos não atrapalhem quem quer faze-lo. Eu sou maior de idade e sou capaz de decidir o que é melhor pra mim.
T - Tanto trabalho pra criar uma filha, fazendo os maiores sacrifícios para educa-la e prepara-la pra vida e olha no que dá: desconsideração, malcriação, desrespeito, em fim, o contrário do que aprendeu. Infelizmente só posso lamentar, mas fica esperta, pois um dia seu pai se enche e tem põe pra fora de casa. Ai quero ver como vai ficar.

Juca, que tudo escutara, ficou matutando: “Que diabo, enquanto a prima falava com a irmã, só criticou o namorado. Na frente da mãe, defendeu-o o tempo todo. Parece que estava se referindo a duas pessoas ao invés da mesma.” Quando disse isso à prima, ela respondeu que aquilo não era coisa pra criança.

ESPANHOL
O tio do Juca tinha uma oficina mecânica de automóveis, perto de sua casa. Durante os dias que passou ali, costumava ir até a oficina e ficava observando o trabalho e, principalmente as conversas.
Um dia, o seu Antonio, dono da padaria vizinha, foi levar o carro para arrumar o freio. Enquanto o tio do Juca mexia no carro, o espanhol falava de sua terra.
A - Aquilo é que é Terra pra se viver. Não tem roubo, todo mundo é trabalhador, não tem esse exagero de impostos que tem aqui, nem a bandalheira destes políticos. Ali, você pode andar sossegado na rua, sem medo de ser assaltado ou seqüestrado. Pode deixar a casa aberta sem o risco de ser roubado. O pedestre é respeitado e os carros param pra que ele atravesse a rua.
T - Em que o senhor trabalhava lá?
A - Na terra. A gente plantava batatas, trigo, erva pro gado, pimentão, verdura, criava cabras, porcos, vacas, galinhas. Colhíamos uvas, maçãs e castanhas. Fazíamos jamom, chorizo, pão e vinho. Havia fartura e comida de qualidade.
T - Todo mundo trabalhava na terra?
A - Não. Tinha quem trabalhava na estrada de ferro, outros trabalhavam nas pedreiras, na fábrica de cimento, na construção.
T - Quer dizer que a vida lá era muito boa?
A - Era. Trabalhava-se bastante, mas comia-se bem, tomava-se bom vinho, ia-se a festas e dançava-se. Era uma vida bastante boa, principalmente, quando comparada com a que vivemos aqui.
J - Se a vida era tão boa lá, por que o senhor veio pro Brasil? – Perguntou o Juca.
A - A esperança de ganhar dinheiro
T - Não teve o problema da guerra, também?
A - Teve. Não da guerra mundial, mas da guerra civil, que já tinha acabado há dez anos, quando vim pra cá. O problema foi a ditadura de Franco. Havia muita perseguição, matavam as pessoas por nada. Eram os falangistas (partidários da ditadura) e os roxos (comunistas, do lado da república, que os falangistas derrotaram). A guerra acabou, mas as disputas e perseguições continuaram. Teve gente que foi arrancada de casa, pra ser assassinada. Outros eram assassinados em emboscadas, nas estradas ou nos locais de trabalho.
J - Mas, o senhor não falou que lá era muito mais seguro do que aqui?
T - Menino! Já te falei pra não se meter na conversa de gente grande. Mas, seu Antonio, o senhor ouvia falar dessas coisas, ou conheceu alguém que foi morto assim?
A - Tinha vizinhos da gente que foram assassinados e, muitos assassinos eram da vizinhança, também.
T - Mas, eram do lado do governo ou dos comunistas?
A - Dos dois lados. Tinha gente que se aproveitava da situação e matava por vingança, pra tomar o que o outro tinha. No fim das contas, tudo ficava por conta da richa entre falangistas e roxos.
T - Nesse caso, naquela época, aqui no Brasil era muito mais seguro do que lá, não era?
A - Era. Naquela época, aqui, só tinha ladrão de galinha. Não se ouvia falar de assalto, seqüestro, essa violência toda que tem agora.
J - Então, por que o senhor fala que lá era melhor que aqui?
T - Já te falei pra calar a boca, moleque! Não liga não seu Antonio, esse moleque é meio destrambelhado. Mas, pelo que o senhor ta falando, naquela época, era mais seguro aqui do que lá e a chance de ganhar dinheiro, também, era maior aqui.
A - A vida aqui não era fácil. Era só trabalho, sem amigos, sem diversão, com saudade dos que ficaram lá. Era sair de madrugada para o trabalho e voltar pra casa, tarde da noite. Lá se trabalhava bastante também, mas estávamos com os parentes e amigos, íamos às festas, que dizer, havia divertimento.
T - O senhor veio sozinho, sem parentes ou amigos? Não conhecia ninguém aqui?
A - Vim com a mulher e o filho mais velho, que era de colo. Tinha uns parentes de minha mulher que já estavam morando aqui. Mas moravam longe e era difícil visita-los.
T - Mas o senhor acabou ganhando dinheiro aqui. Se tivesse ficado lá, talvez fosse um lavrador até hoje.
A - Que nada. Logo depois que vim pra cá, as coisas lá começaram a melhorar e as oportunidades de ganhar dinheiro aumentaram bastante. Os que ficaram lá, hoje, estão bem, com casas boas, carro, segurança, bom sistema de saúde, benefícios para os velhos e boa educação para as crianças. Todo mundo passeia, tira férias e viaja todos os anos. Lá está muito melhor que aqui.
J - E por que o senhor não volta para morar lá?
T - Será que vou ter que cortar tua língua pra você parar de falar, moleque? O bicho parece que tem formigas na língua. Não consegue ficar de boca fechada! O senhor já voltou lá algumas vezes, não foi?
A - Já, e cada vez que chego lá, as coisas estão melhores.
T - O senhor não pensa em voltar pra lá definitivamente?
A - Se dependesse de mim, já teria voltado. O problema é que os filhos e netos estão aqui. Se fossem todos pra lá, eu não teria dúvidas em ir definitivamente. Mas eles não querem. Preferem continuar aqui.
J - Quer dizer que eles preferem ficar aqui, mesmo o senhor achando que é tãp ruim, do que mudar pra lá, que é tão melhor? E, pro senhor, é melhor ficar no ruim com eles, do que ir pro bom sozinho, né?
T - Dá licença seu Antonio, vou levar esse moleque em casa, senão vou acabar dando-lhe uma porrada. Moleque encapetado que não consegue ficar de boca calada!
O tio levou Juca até em casa, chamou a mulher no portão, entregou o menino e voltou para a oficina. A tia quis saber o que havia acontecido e Juca explicou:
J - Sabe o que é tia? O seu Antonio, da padaria, tava falando que o Brasil é ruim e que a Espanha é muito boa. Que ele gostaria de morar lá, mas que prefere ficar aqui. Eu só queria saber por que o ruim é melhor que o bom?
T - Eu não sei. Só sei que você tem que parar com essa mania de ficar se metendo na conversa dos outros.

A TIA AVÓ
Uma tia avó de Juca, que morava no interior e era uma beata convicta; ofereceu-se para hospedá-lo por um tempo e tentar influenciá-lo, acreditando que sua fé poderia redirecioná-lo na vida.
Depois de muitos percalços, ele concluíra o segundo grau e, para descanso dos que ficavam, viajou para a cidadezinha onde morava a velhinha que tinha fé na sua recuperação.
Depois de alojá-lo, servir-lhe café com passoca, bolo de milho e broa; perguntar da família; a velhinha deu início à sua empreitada. Começou falando-lhe de Cristo, do quanto sofrera para salvar a humanidade e do quanto era injusto que seus conselhos não fossem seguidos, o que representava um grande desrespeito ao martírio que ele sofrera por nós. Continuou falando por mais de uma hora, citando passagens do evangelho, detalhes do calvário, do sofrimento da virgem Maria, dos cristãos sacrificados pelos romanos e coisas do tipo.
Juca ouvia, mas não abriu a boca para dizer uma única palavra. A velhinha incitou-o:
V - O que você acha disso Juca?
J - Acho bom.
V - Que bom! O que você gosta mais dessa história?
J - Tudo.
V - Cite algum detalhe que você ache mais importante.
J - Tudo é importante.
V - É que eu gostaria de saber sua opinião, o que você pensa sobre isso.
J - Olha tia, a senhora me desculpe, mas acho melhor a senhora não saber.
V - Não vá me dizer que você não acredita em Cristo!
J - Não é isso. É que as pessoas querem que a gente aceite o que elas dizem. Se a gente não aceitar, elas discordam e insistem pra que a gente aceite. Se a gente insistir em não aceitar, elas ficam bravas. Não adianta a gente dizer que não concorda com elas, porque elas não vão concordar com a gente e vai ficar tudo do mesmo tamanho. A única coisa que muda, é que elas ficam com raiva da gente,
V - Que confusão, meu filho!
J - Pois é. Pra evitar confusão, eu concordo com tudo que a senhora disse.
V - Mas não pode ser assim, meu filho. A gente precisa Ter opinião a respeito das coisas, foi pra isso que Deus nos deu o livre arbítrio.
J - As pessoas querem que a gente tenha opinião, desde que seja igual as delas.
V - Não, meu filho! Cada um deve Ter a sua e respeitar a opinião dos outros.
J - Eu respeito.
V - Mas, e a sua?
J - É um pouco diferente.
V - Diferente como?
J - Deixa pra lá tia. É melhor.
V - Não, meu filho. Eu gostaria de saber. Pode se abrir comigo. Confie em mim.
J - Eu não tenho uma opinião, do tipo: isso é assim ou assado. O que eu tenho são dúvidas.
V - Me conta. Que dúvidas são essas.
J - Tá bom. Por que Deus criou Cristo?
V - Para mostrar para a humanidade o quanto errava e o que deveria fazer para se corrigir.
J - E, a senhora acha que deu certo, que funcionou?
V - Claro! Veja quanta gente o seguiu e passou a viver segundo os ensinamentos de Cristo.
J - Não parece que era tanta gente assim. No ápice da sua popularidade, quando ele foi julgado e condenado ao martírio, a grande maioria dos que estavam na praça era contra ele. Os seguidores dele nem apareciam. Onde eles estavam?
V - Eles não poderiam fazer nada. Aquilo já estava determinado para acontecer.
J - Se eles já sabiam disso e, por isso, não tentaram defender Cristo, por acreditar que era o desejo de Deus; Por que sofreram tanto com sua morte, uma vez que ela representava o sucesso do desejo de Deus?
V - Quem é que não sofre ao assistir ou saber do martírio de uma pessoa?
J - Mas, eles não acreditavam que Cristo era filho de Deus e que tinha a vida eterna garantida pelo pai?
V - Claro.
J - Sabendo disso, e que aquele martírio coroava de êxito a vontade de Deus, a senhora não acha que eles deveriam ficar muito contentes, ao invés de sofrer daquele jeito?
V - Não, porque o sacrifício de Cristo serviria para mostrar que Deus permitiu o martírio de seu próprio filho para salvar a humanidade. Aquele martírio era um exemplo da crueldade humana, que não poupara nem o filho de Deus.
J - Mas, os que o condenaram, acreditavam que ele era filho de Deus?
V - Não.
J - Isso quer dizer que eles não condenaram o filho de Deus, uma vez que não acreditavam nisso. Eles condenaram e martirizaram o que acreditavam ser um homem comum, como já faziam com tantos outros. Então, isso adiantou de que?
V - Os que acreditavam em Cristo, souberam que ele havia sofrido por eles e se dedicaram a divulgar que isso tinha acontecido..
J - Pra que?
V - Pra que soubessem que o filho de Deus havia morrido na cruz para salvá-los.
J - Mas, isso salvou quem?
V - Todos os que acreditaram e passaram a viver de acordo com os mandamentos de Deus.
J - Mas, se era isso que Deus queria, não era mais fácil entrar na consciência de cada um e convencê-los a agir assim, uma vez que tudo pode?
V - Não, meu filho! Deus não quer obrigar ninguém a fazer o que ele quer; ele quer que as pessoas compreendam que isso é necessário, mas que eles é que devem decidir o que fazer. É o livre arbítrio.
J - Mas, o livre arbítrio já não foi dado na criação do homem?
V - Sim.
J - E ele explicou o que gostaria que fizesse e o que não?
V - Claro. Tanto é que Adão e Eva foram expulsos do paraíso como castigo por não terem obedecido a orientação do criador.
J - E, os descendentes de Adão e Eva continuaram errando?
V - Sim. Inclusive Caim matou seu irmão Abel. Eles eram filhos de Adão e Eva.
J - Então, Deus sabia que castigo não era suficiente para evitar que o homem errasse?
V - Sim.
J - E ele fez alguma coisa para mudar o homem e evitar que cometesse tantos erros?
V - Ele inundou a Terra com o dilúvio, acabou com tudo e reiniciou a população humana com a família de Noé.
J - E resolveu o problema?
V - Não.
J - Então o plano dele fracassou?
V - Não. Não foi ele quem fracassou; foi o ser humano que não soube aproveitar a oportunidade que recebeu.
J - É verdade que Deus sabe tudo, do passado, do presente e do futuro?
V - É.
J - Então, ele já sabia que a tentativa de mudar o homem, provocando o dilúvio, não iria dar certo, não é?
V - Nossa, meu filho! Que dificuldade você tem pra entender as coisas! É tão simples, pra que fazer tantas perguntas? Por que não aceitar as coisas como elas são?
J - Eu aceito. A senhora é que não me deixou aceitar.
V - Tá bem. Vá tomar um banho, depois jantamos e vamos no terço. Vamos rezar para clarear sua cabeça.

SEMINARISTA
Depois do terço, a velhinha foi conversar com um seminarista, sobrinho do padre e que estava passando uns dias ali. Contou-lhe que estava hospedando um sobrinho-neto, que era problemático e pediu-lhe que conversasse com ele, tentando ajudá-lo. Ele assentiu e combinaram de que fosse à casa dela na manhã seguinte.
Na manhã seguinte, quando o seminarista chegou, a velhinha serviu-lhe café e descreveu-lhe o que achava do sobrinho. Chamou o Juca, apresentou-os e sugeriu que conversassem na varanda onde havia cadeiras espreguiçadeiras de palha.
O seminarista começou perguntando se ele estava gostando da cidade, o que fazia, se estudava e coisas assim. Juca usava monossílabos ou orações reduzidas como resposta. Já que o Juca se mostrava retraído, o seminarista decidiu falar um pouco de si.
Disse que na adolescência havia se metido com drogas, sofrera muitos problemas e criara muitos mais para a família. Fora internado algumas vezes, passava algum tempo bem, mas acabava recaindo.
Um dia, seu tio, aquele que era padre naquela cidade, recomendou a seu pai uma clínica administrada por um grupo de católicos e que vinha obtendo bons resultados na recuperação de dependentes de drogas e álcool.
Na verdade não era uma clínica como as outras pelas quais havia passado, com médicos, enfermeiros e medicamentos. Aquela funcionava em uma chácara, onde os internos trabalhavam, rezavam, estudavam o evangelho e conversavam em reuniões, onde expunham seus sentimentos, analisavam suas situações e as possibilidades de recuperação.
Estudando o evangelho, ele se sentira atraído pelo sacerdócio, o que foi aumentando com o passar do tempo. Num dia de visitas, seu tio foi até lá e ele lhe confessou o que estava sentindo. O tio lhe conseguiu vaga em um seminário e, no final do tratamento, ele foi pra lá, onde estava até então. Ainda faltavam dois anos para sua ordenação.
Juca ouvira tudo com muita atenção. O seminarista se mostrava emocionado com aquelas lembranças. Depois de um tempo, em que parecia refletir sobre o que ouvira, Juca perguntou:
J - Como foi aquele negócio que você sentiu, a vontade de ser padre?
S - Não foi vontade de ser padre. Eu comecei a sentir uma paz alegre quando lia o evangelho. Com o passar do tempo, percebi que eu estava amando, amando Cristo.
J - Amando... como?
S - Amando. Você nunca amou?
J - Acho que não. Pelo que vi em novelas, filmes e livros, quando a pessoa ama, ela quer ficar junto da pessoa amada, acha a pessoa bonita, por mais feia que seja; sente prazer no menor contato físico, deseja a felicidade da pessoa amada e coisas assim.
S - É assim mesmo. A gente sente uma felicidade infinita estando perto de quem se ama, de Ter contato com ela, de falar e ouvir, de sentir seu apoio, seu carinho.
J - Bom.... Mas ele não pode ser visto, tocado, ouvido; como é possível amar alguém assim?
S - Você deve Ter visto, ouvido e lido, sobre amores entre pessoas que, por algum motivo, têm que permanecer afastados por algum tempo. Nem por isso eles deixam de sentir aquele amor tão grande. Sentem emoção e prazer em pensar no outro, nas lembranças e esperam com ansiedade o dia que se reencontrarão.
J - Sim, mas eles se conheceram, confessaram seu amor, se relacionaram, antes de se separar. O afastamento a que você se referiu, é temporário e eles têm esperança de voltar a viver o relacionamento que tiveram que interromper. O teu caso é diferente, né?
S - Nem tanto. Eu conheci Cristo no evangelho, percebi sua grandiosidade, seu amor, o quanto ele me ama. Eu o vejo com a imaginação, mas isso não é o mais importante e, sim, o senti-lo no meu coração. Sinto seu carinho, sua proteção, seu amparo; converso com ele e ele me responde. Sinto seu amor infinito e o amo infinitamente, também.
J - Não é uma fantasia? A interpretação que você faz do que foi criado por sua imaginação?
S - Não. É um sentimento, uma emoção. Amor é isso, não depende das características físicas, da cor, da idade, do tamanho; é um sentimento. Você sente amor, independente das condições físicas de quem se ama. É comum que vejamos o que queremos ver na pessoa amada e, não, o que ela realmente é. É a emoção que nos liga e não o corpo ou qualquer outra coisa física.
J - Mas...Que certeza você tem de que ele existe e é do jeito que está descrito no evangelho?
S - A certeza do sentimento, da emoção. Nós somos o que sentimos e é isso que importa. A dependência de drogas é isso, a gente sente vontade de usar e, mesmo sabendo dos perigos que corre, dos problemas que ela causa, faz o possível para consegui-la e usá-la. A gente sabe que tem que parar, caso contrário, será preso ou morto. No entanto, a vontade é mais forte do que qualquer risco, físico ou moral, te domina e te obriga a satisfaze-la. O amor é assim. A gente sente vontade de estar com a pessoa amada, uma força muito grande te empurra pra ela e, estar junto te deixa feliz.
J - Então, você deve Ter muita pressa de morrer, pra ficar junto dele, né?
S - Não. Ele está comigo, no meu coração, no meu pensamento; não há como estar mais perto dele. Ele está dentro de mim.
J - Bom...Se você sente isso, tudo bem, bom pra você.
S - Você também pode sentir isso.
J - Como?
S - Deixando-se tocar por ele, permitindo que esse sentimento aconteça em você, sentindo que ele te ama.
J - Como é que se cria um sentimento?
S - Não criando obstáculos, abrindo-nos para ele, buscando o que possa facilitá-lo. Para amar Cristo é necessário crer nele, procurar conhecê-lo. O conhecimento da sua grandiosidade causará admiração, respeito e, conseqüentemente, amor. Quando a gente ama, fica mais fácil suportar sacrifícios, lutar por nossos objetivos, resolver problemas. O amor propicia a solidariedade e a humildade, o que aumenta a felicidade. Esse é o caminho.
J - Eu já li um pouco do evangelho, já ouvi bastante sobre ele, já pensei muito sobre tudo isso; mas não consigo acreditar, tenho muitas dúvidas. O que eu sinto é isso: muitas dúvidas. Como se pode acreditar no que se duvida?
S - Que tipo de dúvidas você tem?
J - Deixa pra lá. São muitas.
S - Diz alguma, quem sabe eu possa te ajudar.
J - Por que o casamento é indossolúvel?
S - Porque o que Deus uniu, o homem não pode separar.
J - Mas, ele não deu o livre arbítrio ao homem? Então por que não lhe permite usá-lo para decidir se continua casado ou não?
S - Porque a família é a base da sociedade e a desintegração dela causa problemas sociais.
J - Mas, o roubo, a corrupção, o tráfico de drogas e outros crimes cometidos pelo ser humano, não são considerados tão graves, pela igreja, quanto o divórcio. Por que?
S - Porque a dissolução do casamento é uma das causas de tudo isso.
J - Tá cheio de bandidos, principalmente os do colarinho branco, que os pais continuam casados, o que não impede que eles façam o que fazem.
S - Muitos marginais são filhos fora do casamento, de mães solteiras.
J - Se elas pudessem Ter abortado, esses marginais não existiriam, não é verdade?
S - O aborto é um crime, e dos piores, porque cometido contra alguém que não pode se defender.
J - Como você mesmo disse, a vida é o que a gente sente. O feto ainda não teve oportunidade de sentir, portanto, pode-se dizer que ainda não viveu. Se ainda não viveu, não pode ser assassinado, não se tira uma vida que ainda não existiu. Mas, de qualquer jeito, não seria melhor impedir que uma criança nascesse do que permitir que nasça um bandido?
S - O problema é que não temos como saber se uma criança vai ser marginal ou gênio.
J - Nesses casos, nascem muito mais marginais do que gênios. Os marginais causam grande sofrimento e prejuízos aos que não o são. Isso é justo?
S - Nós não temos como saber o que uma criança vai ser no futuro.
J - Mas, Deus sabendo de tudo, sabe quem vai ser bom ou ruim, não é?
S - Sim. Mas ele nos deu livre arbítrio e nós devemos saber usá-lo.
J - A inteligência nos mostra que a gravidez indesejada ou irresponsável, é grande geradora de problemas, portanto, sua interrupção ajudaria a diminuir os problemas. No entanto, Deus nos impede de fazer o que seria lógico. Que livre arbítrio é esse, que é prisioneiro da vontade de Deus?
S - Ele não impede que usemos o livre arbítrio, tanto é que muitas mulheres abortam, desobedecendo o desejo de Deus. É como a lei dos homens, ela diz o que não pode ser feito, mas não impede que o seja. Se você transgredir a lei, será punido. É o que Deus faz: castiga quem age em desacordo com seus desejos.
J - Acho que são coisas totalmente diferentes. O homem não tem como saber que alguém vai cometer um crime. A lei prevê castigos para amedrontar e tentar evitar que as pessoas os cometam. Se a polícia ou qualquer pessoa souber que um crime poderá ser cometido, agirá para tentar impedir que isso aconteça. No caso de Deus é diferente. Ele sabe o que vai acontecer, tem poder para evitar e não faz nada para impedir. Por que?
S - É o respeito ao livre arbítrio.
J - Mas, não te parece que é irresponsabilidade dar poder de decisão a quem não tem capacidade para isso? Permitir que isso cause sofrimento e prejuízos a quem não tem culpa nenhuma?
S - No entanto, seria injusto que ele desse livre arbítrio a uns e o negasse a outros.
J - Eu, que sou um coitado, com pouco conhecimento; juntando o pouco conhecimento que tenho; faria algumas modificações que, acho, poderiam diminuir muito os problemas.
S - Me dê alguns exemplos.
J - No caso da concepção, para que ela aconteça, não é necessário um óvulo da mulher, um espermatozoide do homem e o período fértil da mulher?
S - Sim.
J - Então. Bastaria que fossem acrescentadas mais duas condições a essas três: que tanto a mulher como o homem quisessem que a concepção acontecesse e que eles tivessem capacidade para decidir isso. Se essas condições não fossem satisfeitas, a concepção não aconteceria e se evitaria grande número de problemas.
S - E quanto ao casamento, você teria alguma sugestão?
J - Pelo que eu sei, não é a pessoa que escolhe a quem vai amar, nem quem vai amá-la, não é?
S - Todo mundo procura a quem amar e que o ame.
J - Mas, isso não é suficiente para o amor acontecer. Existem pessoas que se apaixonam, mas não têm reciprocidade, embora elas façam o máximo esforço para que isso aconteça. Outros, depois de grande empenho em conseguir um amor, acabam encontrando-o onde nunca imaginaram que pudesse acontecer. Isso é verdade, ou estou falando bobagem?
S - É verdade. Mas, e ai? O que poderia ser feito para evitar que casais se separassem?
J - Só permitindo que se casassem pessoas que realmente se amassem e impedindo que esse amor se extinguisse e que, qualquer um deles pudesse se apaixonar por outra pessoa, que parece, são as maiores causas das separações.
S - O problemas é que essas suas soluções, implicam no desrespeito ao livre arbítrio.
J - E, escolher a pessoa que vai amar e ser amada, sem permitir que o indivíduo escolha, não é desconsiderar o livre arbítrio?
S - O amor é uma coisa maravilhosa e acontece sem que possamos explicar como, nem porquê. Seu término, na maioria das vezes, é causado pelos próprios indivíduos, que não o valorizam suficientemente, não se respeitam, vivem construindo problemas ao invés de solucionar os inevitáveis e aproveitar toda a felicidade que o amor pode propiciar. Ao invés de carinho, respeito, admiração, acontecem agressões, desrespeito, egoísmo e tantas outras coisas ruins. É isso que causa o rompimento dos casamentos.
J - Mas, em muitos casos, o motivo é o aparecimento de um novo amor, forçando o indivíduo a desfrutá-lo, impedindo-o de resistir. Já ouvi casos em que o indivíduo passa a amar outra pessoa, sem deixar de amar a primeira. Se mantiver as duas relações, cometerá adultério, se deixar o primeiro amor, pecará por desfazer o matrimônio; se repelir o segundo amor, sofrerá o diabo. É justo que pague pelo que não causou?
S - Acredito que isso sejam provações a que o indivíduo é sub-metido. Alguns resistem, outros se deixam levar.
J - Mas, se Deus sabe tudo, para que submeter o indivíduo a provação, se ele já saberia o resultado? Ouvi dizer que ele pediu a Abraão que sacrificasse o próprio filho, para prová-lo, impedindo que o fizesse na última hora. Pra que isso?
S - Talvez, para que o homem saiba do que é capaz e do que não. A capacidade de Deus é infinita, veja a complexidade do corpo humano, você já imaginou a capacidade necessária para projetar e construir esse corpo, tão cheio de detalhes,, interagindo uma parte com as outras, harmonicamente, com tamanha complexidade? Isso não te demonstra a infinita capacidade criadora?
J - Sem dúvida. Mais espetacular que criar o corpo humano, é fazer com que duas coisas tão pequeninas, um óvulo e um espermatozóide, carreguem todas as informações necessárias para gerar um outro corpo, misturando características do pai e da mãe. Eu nem imagino a capacidade necessária para criar algo assim. Por isso que acho estranho que, alguém com tamanha capacidade, tivesse permitido que essa criação fosse tão problemática e geradora de tantos problemas. Como algo que teve a capacidade de criar o organismo e, principalmente sua reprodução, com tamanha eficiência, poderia Ter permitido que seu comportamento fosse tão idiota?
S - No que você acabou de dizer, se referiu a alguém e, depois a algo, como o criador. O que você acha: foi alguém ou foi algo, que criou o universo?
J - Não sei. Acredito que existiu um criador, com uma capacidade muito além de nossa capacidade de compreender. Mas, não sei o que é. Dizem que o criador teria criado o homem a sua imagem e semelhança, mas não existem comprovações disso. Isso pode Ter sido uma pretenção do homem em querer se parecer com o criador, pretendendo ser a parte mais importante da criação. Isso não me incomoda, o importante é que não posso duvidar da grandiosidade da criação, muito mais ampla do que o homem, que me parece só um detalhe. Ela está na minha frente, infinita. Quem ou o que era, não tem importância. O importante é sua grandiosidade. Será que estou errado?
S - O problema é que você não acredita nas escrituras, no que elas explicam a respeito de tudo isso. Elas nos informam o que o criador quis que soubéssemos. Não acreditando nelas, não temos um ponto de partida para nos apoiarmos e, sem isso, é praticamente impossível qualquer entendimento. Por que você teima em não acreditar na bíblia, nos seus ensinamentos?
J - Por causa das contradições em que ela incorre, mas, principalmente, porque ela dá a entender que o criador tenha cometido uma série de erros que, não consigo acreditar que ele os tenha cometido. É difícil acreditar em algo com tantas incoerências, com tantas contradições.
S - Não acho que sejam incoerências e contradições. Nós é que temos dificuldade de entender o que ela quer dizer.
J - E você acha que Deus não previria isso? E, prevendo, faria com que as informações nos chegassem de maneira mais aceitável? Na verdade, considerando sua extrema capacidade, bastaria que ele colocasse diretamente em nós, o que pretendia que soubéssemos, evitando distorções de interpretação. Isso não seria novidade, já temos informações assim. É o caso da dor e do medo, que nos informam do que devemos evitar. Bastaria ele nos abastecer com as informações que quisesse, evitando distorções de interpretações. Você não acha?
S - Sim, mas, por algum motivo, ele preferiu passar essas informações através da bíblia. Por isso é tão importante Ter fé.
J - O problema é que fé, a gente tem que sentir, não dá pra fabricar. Eu, por exemplo, já tentei Ter fé, mas não consegui.
S - Esse é um problema sério. A fé é um dos componentes da vida, sem ela, a gente é incompleto, falta um pedaço e a vida é incompleta. A fé é fundamental para que consigamos conviver com o que não podemos compreender. A falta da fé me levou a consumir drogas, a contestar as leis, a reagir contra regras, em fim, ao inconformismo e à reação. A fé me trouxe a paz e a aceitação do que não conseguia compreender. É preciso Ter fé.
J - Mas, como consegui-la?
S - Eliminando barreiras que a impedem, o excesso de questionamentos, por exemplo. Você percebe o quanto você questiona e a insatisfação gerada por não aceitar as respostas?
J - Eu não pergunto porque quero, é uma força maior que eu que me força a perguntar. Não consigo aceitar respostas inconsistentes, sem lógica, sem racionalidade. Não consigo deixar de perguntar e me é impossível aceitar explicações que não explicam as dúvidas. Não é só uma força interna que me faz perguntar, as pessoas me forçam a isso. Olha o que está acontecendo agora: eu não fui te procurar, mas você me provocou a questionar. Ontem, minha tia fez a mesma coisa. Eu procuro ficar quieto, sei que perguntar cria muitos problemas pra mim, mas não consigo, sou provocado pela força interna e pelas pessoas.
S - A minha vida, antes da fé, era terrível. Me sentia perdido, procurando não sabendo o quê, querendo sem disposição para conseguir. Era muito ruim! A fé me deu um objetivo e o caminho a seguir. A partir dela, tudo ficou mais fácil e, quando algo me perturba, me apego com Cristo e ele me conforta e me permite ver que a causa da perturbação não era tão importante quanto eu imaginava. Você precisa se esforçar para conseguir a fé, acreditar e conseguir a paz.
J - Acho que só vou Ter fé, se um dia ela se apossar de mim. Tenho conhecido verdadeiras aberrações que só me tem afastado da crença. Uma vez, assistindo uma novela, vi um padre que procurara uma mulher pedindo-lhe que fosse até um hospital, para declarar seu perdão à atual mulher de seu ex-marido. Anos atrás, o marido havia se apaixonado por uma moça e, não resistindo à emoção, deixou a família original e foi viver com seu novo amor. A ex-mulher, inconformada, acusava a outra por Ter sido abandonada e não perdia oportunidade de maldize-la e rogar-lhe pragas, que estendia aos filhos da Segunda relação. A Segunda mulher acreditava que maldições e pragas surtiam efeito e, vendo-se enferma, acreditou que era resultado do que a outra lhe desejava. Acreditando que morreria e que o desejo da outra a afetaria na eternidade, pediu ao padre que intercedesse, para que conseguisse o perdão. A mulher perguntou ao padre se ele daria a extremaunção à enferma. O padre disse que não poderia faze-lo, porque ela desobedecera a lei da igreja, vivendo com um homem que já fora casado. A mulher alegou que, se Deus que era tão misericordioso não podia perdoá-la, como ela, simples mortal, poderia faze-lo? Isso aconteceu em uma novela, no entanto, coisas assim estão por toda parte. É difícil Ter fé percebendo coisas assim.
S - Realmente existem muitos fatos incoerentes, e não são poucos. As religiões tem o compromisso de divulgar a fé e usam argumentos que acreditam convencer as pessoas e, isso, tem acontecido. Grande parte das pessoas não tem capacidade para entender muitas coisas, obrigando os religiosos a usar uma linguagem mais próxima deles. Essas pessoas não acreditariam em algo que não tem explicação, por isso foram criadas muitas estórias e parábolas simplistas, tentando satisfazer a necessidade delas.
J - Pra mim, tudo é um grande mistério. Essas estórias, em mim, produzem efeito contrário, impedindo, ao invés de me atrair para a fé.
S - O importante é a fé. É ela que nos ampara, conforta e motiva. Como já te disse, sou testemunha disso, me livrei do sofrimento e encontrei a felicidade, através dela. Portanto, insisto em que você encontre um caminho que te leve a ela. Se os argumentos não te convencem, considere o mistério, sua grandiosidade e no que está por trás dele. É provável que isso te leve à fé.
O seminarista foi embora e Juca ficou matutando: Como é que essa gente consegue Ter fé, quando quem esteve ao lado de Cristo duvidou? Judas o traiu, Pedro o negou, Tomé só acreditou depois de ver. Não seria muito mais fácil Deus colocar a fé dentro de cada um, do que se servir desse tremendo quebra-cabeças? Esse seminarista parece que tem fé, mesmo. Essa minha tia, também. No entanto, a maioria diz Ter fé, mas demonstram, na primeira oportunidade, que é mentira, fraquejando diante da primeira dificuldade. Parece que fé é um negócio muito raro, como essas jóias famosas. A maioria não passa de bijuteria.
A cabeça do Juca fervilhava, idéias se chocavam em contradições. Não enxergava lógica nos ensinamentos que recebera dos pais. Pregavam humildade, enquanto eram prepotentes. Defendiam a solidariedade e praticavam o egoísmo. Apregoavam a virtude da verdade e viviam sendo hipócritas. Os professores estavam mais preocupados com obedecer planejamentos e ministrar conteúdos do que com o aproveitamento dos alunos. A polícia e a justiça não conseguiam dominar o crime. Os políticos se colocavam a serviço dos poderosos para obter vantagens pessoais. Deus castigava os bons e permitia que os maus agissem impunemente. Ele se perguntava: “Que mundo é esse?”

O LIVRO
No final da tarde a tia do Juca pediu-lhe que fosse no barracão buscar lenha para acender o fogão. Ao lado da pilha de lenha, havia um monte de jornais velhos, revistas e alguns livros, que a tia usava para acender o fogo.
Depois de levar a lenha, Juca voltou ao barracão e pegou um dos livros que esperavam sua vez de ir para o fogo. Pegou o único que estava inteiro, embora sem capa. Era uma coletânea de contos.
Sem Ter o que fazer, Juca dedicou-se a ler o livro.
O primeiro conto relatava a estória de um rapaz, filho de um sitiante que, sem ser rico, não chegava a ser tão pobre quanto seus vizinhos. O rapaz era o mais novo dos cinco irmãos e recebera a educação tradicional, propiciada pelos pais, pelo convívio e pelos quatro anos que freqüentou a escola rural.
Os pais deveriam merecer respeito incondicional, o pai como o chefe supremo e a mãe como a santa protetora, cuidadora do bem estar da família, pura e intocável.
Era o que se chama de filho “temporão”, nascido vários anos depois do que havia sido considerado o último. Dezesseis anos o separavam do irmão mais novo.
Os irmãos estavam casados e cada um levava sua vida, trabalhando na terra e realizando negócios esporádicos com animais de criação: vacas, porcos, galinhas e cavalos.
O Chico, aos vinte e três anos, continuava vivendo com o pai que já contava setenta e três anos e a mãe com sessenta e oito. O pai estava com a saúde debilitada e não podia prescindir de tratamento médico. A mãe ainda estava bastante forte e cuidava da casa, da família e da pouca criação, sem maiores problemas.
O Chico não se sentia nem um pouco atraído pela terra e se limitava a cuidar de arrendamentos parciais da terra, manutenção de cercas e cuidado de alguns animais. Viviam da aposentadoria do pai, do rendimento de algumas economias e do arrendamento.
Embora se sentisse na obrigação de cuidar dos pais, sentia-se oprimido, desejando algo diferente que, na verdade, não sabia o quê. Sabia que não queria uma vida como a dos irmãos, nem como a que os pais tiveram ou como a de qualquer vizinho. Achava que seu futuro não estava ligado à terra e considerava que não poderia ser feliz nem com o sucesso como o de alguns vizinhos, conseguido com produção agrícola ou pecuária. Também não se sentia atraído pelo comércio. Não sabia o que queria, mas acreditava saber o que não queria.
Sentia admiração e respeito por alguns vizinhos de final de semana, que moravam na cidade e mantinham sítios de lazer ali. Achava-os muito inteligentes e possuidores de grande conhecimento. Visitava-os sempre e vivia sendo aconselhado a continuar estudando. No entanto, considerava-se incapaz de progredir nos estudos e relutava em tentar.
Esses vizinhos tinham costumes muito diferentes dos da roça e transparecia o quanto se julgavam superiores aos vizinhos nativos, criticando sua inércia e falta de atrevimento na busca por melhoras. Ele achava que eles tinham razão, mas não se incluía entre os criticados, embora a carapuça lhe servisse plenamente.
Chico gostava de ouvir as conversas, do ritmo festivo em que esses vizinhos viviam, da alegria que demonstravam, no entanto, algo neles o desagradava, embora não conseguisse definir o quê. Considerava que tinham um nível cultural e, principalmente, econômico, muito acima do pessoal da região. Não percebia que, alguns deles, eram mais pobres que seu pai e o quanto as aparências enganam.
Os insistentes conselhos para que continuasse estudando, levaram-no a freqüentar o curso supletivo, concluindo os primeiro e segundo graus. No entanto, o aproveitamento não foi proporcional aos certificados e o conhecimento adquirido não acrescentou muito ao que já tinha.
As conversas com os vizinhos que admirava, a leitura de alguns livros de auto-ajuda e seus pensamentos, não se completavam; ao contrário, seus pensamentos eram confusos, sem objetivo nem clareza. Sentia-se socialmente isolado, também. Considerava que os vizinhos nativos estavam muito aquém da capacidade intelectual dele que, por outro lado, se considerava muito aquém dos vizinhos de final de semana. Sua mente era um emaranhado confuso e ele se sentia perdido, sem atinar com algum caminho a seguir.
Tinha âncoras muito pesadas prendendo-o a valores tradicionais, principalmente no que se refere à família, à religião e à sexualidade. Achava um absurdo o que considerava promiscuidade, o relacionamento entre jovens, a gravidez de meninas e moças solteiras, o uso de drogas, o desrespeito pelos pais e a falta de compromisso com a religião. Tentava esconder seus desejos sexuais, vontade de experimentar drogas, de não comparecer a rituais religiosos e, principalmente, abandonar os pais e buscar satisfação pessoal. Escondia isso dos outros, mas, principalmente, de si mesmo. Sentia-se culpado e fazia penitências para perdoar-se, sem coragem de confessar seus pecados nem ao padre.
Por falar em padre, houve um tempo em que o Chico pensou ter encontrado seu caminho, ao visitar um seminário: seria padre. Acalentou essa vontade por um bom tempo, mas acabou se desinteressando. Não se sentia suficientemente puro para abraçar o sacerdócio. Nunca havia feito nada que pudesse ser considerado mácula da pureza, no entanto, vivia povoado de pensamentos que, pra ele, chegavam a ser escabrosos. Quando numa noite sonhou que trepava com a mãe e, ao acordar se lembrava do sonho com riqueza de detalhes; faltou pouco pra pirar! Rezava como um desesperado, como quem esfrega violentamente uma grande sujeira, tentando eliminá-la. Esbofeteou-se tanto que deixou a mãe preocupada quando o surpreendeu com a cara toda vermelha e alegou que deveria ser alguma alergia.
Seu maior problema era o não ter com quem conversar. Nem coragem de se confessar ao padre tinha. Com os pais não havia a menor possibilidade de conversas que não as convencionais. Amigos não tinha e só se relacionava superficialmente com conhecidos. O único irmão com quem conversava mais, era o imediatamente mais velho que ele, mas este era muito simplório e levava tudo na brincadeira. Vivia querendo saber se o Chico já havia conhecido mulher e ria a gargalhadas quando ele negava.
A cidade, sede do município, ficava a quinze quilômetros do sítio do pai do Chico. Não havia condução regular, o que dificultava as idas e vindas. Quando o Chico conseguiu habilitação de motorista, passou a usar o carro do pai e passou a ir à cidade com mais assiduidade.
Chico começou a freqüentar a cidade na esperança de encontrar alguma luz para seu caminho, procurava conversar com o máximo de pessoas o que, aliás, lhe era fácil; mas nada mudava. As conversas eram vazias, as pessoas demonstravam conhecer o que lhes era totalmente desconhecido. Era um amontoado de preconceitos e tabus que, mesmo sem saber, era do que ele queria se livrar, o dos outros e dos seus. Gostaria de chutar tudo pro alto, mas não conseguia, não tinha forças nem coragem pra isso.
Uma moça, que fora sua colega no curso supletivo e que se mostrara muito interessada nele, trabalhava em uma lanchonete que ele passou a freqüentar. Com o passar do tempo ele começou a vê-la com outros olhos e considerou a possibilidade de tentar um relacionamento com ela.
Quando pensou nessa possibilidade, não perdeu tempo e disse à moça que precisava conversar com ela. Ela concordou e marcaram um encontro para depois do expediente.
Nas duas horas entre o convite e o encontro, ele pensou no que deveria dizer e o que fazer. Deveria pedir para namorar? Nada indicava que ela não aceitaria. E depois, o que fazer? Abraçá-la? Beijá-la? Onde por as mãos?
A hora do encontro chegou e o Chico ainda não sabia o que fazer. Ela perguntou o que ele queria e, num impulso, ele disse: namorar. Para sua surpresa, ela alegou que o considerava muito novo, o que a impedia de aceitar.
Ele tivera dúvida sobre o que dizer e fazer, no entanto, não considerara a possibilidade de ser rejeitado. Ela se insinuara tanto e por tanto tempo, que ele considerara que ela estaria ansiosa para satisfazer o que demonstrara querer.
A surpresa foi tão grande que ele “cristalizou”, ficou imóvel e mudo. Quando ela perguntou se estava tudo bem, ele só conseguiu balançar a cabeça. Ela disse tchau e foi embora, deixando-o ali, como uma estátua muda.
Se a cabeça do Chico já era um verdadeiro balaio de gatos, essa experiência serviu pra atiçar os bichos! Uma das únicas coisas de que ele tinha certeza, se mostrara totalmente falsa! O que era verdade? Será que existia uma verdade?
Os dias passavam e o Chico sentia uma angústia, o peito cheio de um vazio que o comprimia. Uma apatia enorme, vontade de nada, sem ânimo, sem a menor motivação. Melhor morrer! Será?
O repúdio da garçonete foi um golpe duro, não porque ele a desejasse, afinal, ele decidira tentar um relacionamento com ela porque achara que um relacionamento poderia mudar alguma coisa. Ela se insinuara tão claramente e por tanto tempo, que ele chegou a temer que ela o abordasse e dissesse diretamente que queria ficar com ele. Quando ele passou a freqüentar a lanchonete em que ela trabalhava, ela continuou a se insinuar, por isso ele decidiu experimentar o relacionamento. Não considerou a mínima possibilidade de que ela não aceitasse o que demonstrara, claramente, querer. Se ele já andava confuso, esse fato contribuiu muito para tumultuar a confusão.

Numa sexta-feira, no final da tarde, Chico concluiu que se não fizesse alguma coisa, iria pirar de vez. Juntou as forças que lhe restavam, tomou banho, vestiu-se, pegou o carro e foi pra cidade. Ia, embora desejasse não chegar, mas acabou chegando.
A única coisa que não queria era ir à lanchonete. Chegou lá. A garçonete parecia mais alegre que de costume e pareceu não ter percebido a chegada dele. As poucas mesas estavam todas ocupadas. Ele tinha vontade de ir embora, mas continuava ali. O pensamento dizia que ele queria ir embora, mas uma força maior o segurava ali. A maioria das pessoas, ali, conversava e parecia feliz, sem problemas. Parecia que só ele tinha problemas.
Uma mulher, que ele não conhecia, ofereceu-lhe um lugar à mesa que ela ocupava sozinha. Ele estranhou, titubeou, mas acabou aceitando.
A mulher aparentava ter mais de quarenta anos, não era bonita, embora não lhe parecesse feia. Disse que seu nome era Marina e declarou que não achava justo ocupar uma mesa sozinha enquanto outros esperavam um lugar. Disse que estava de passagem e que resolvera entrar na cidade para tomar um lanche. Falava com naturalidade, como quem o faz a um conhecido.
Ele se apresentou, mas não encontrava palavras pára continuar a conversa. Estava amedrontado, sentia-se inferiorizado em relação à mulher.
Ela tomou a iniciativa, novamente, perguntando se ele morava na região. Ele disse que sim e perguntou de onde ela era. Ela disse que era da capital, mas que estava morando em uma cidade há uns cinqüenta quilômetros dali.
Contrastando com a naturalidade dela, ele se sentia constrangido, com uma espécie de medo, sentindo-se inferior, temendo dizer algo que pudesse desagradá-la.
Ela sugeriu que ele pedisse algo pra beber ou comer. Ele disse que tomaria um refrigerante e ela levantou o braço chamando a garçonete.
A garçonete dirigiu-se até eles e demonstrou surpresa ao ver o Chico em companhia daquela mulher. Cumprimentou-o, recebeu o pedido e foi buscar o refrigerante, trazendo-o logo depois.
A aparente surpresa da garçonete provocou o Chico e entabular conversa com a mulher e, vencendo o acanhamento, perguntou-lhe se trabalhava e em quê. Ela disse que era filósofa, mas que vinha se dedicando a paisagismo, cultivando plantas, fazendo projetos e executando jardins.
Ela quis saber o que ele fazia. Ele contou e, logo, a conversa rolava fácil, como se se conhecessem há tempo.
O Chico confessou sua ignorância sobre as atividades do filósofo e Marina fez uma explanação esclarecedora. Depois disso, o Chico quis saber o que a levara a mudar de atividade, dedicando-se a algo tão diferente.
Marina declarou que o motivo fora a insatisfação causada por uma somatória de problemas. A agitação da cidade grande, poluição, congestionamentos no trânsito e decepções no trabalho, desencadearam a insatisfação. O desmoronamento do casamento foi a gota de água que causou o transbordamento. Aceitou o convite de uma amiga para se dedicar ao paisagismo, abandonou a vida que levara até então, mudara-se para um sítio e se dedicara integralmente à nova atividade.
O Chico quis saber se ela tinha filhos, e ela disse ter um casal, que cursavam faculdade e que optaram por morar com o pai. Disse que a separação fora conscienciosa, que ambos concordaram que não havia mais amor, que a rotina os prejudicava e que o relacionamento causava mais prejuízos que benefícios a ambos e aos filhos.
Chegou a hora do Chico falar de sua angústia, da insegurança, da falta de rumo, em fim; de como se sentia perdido, sem saber o que fazer. Ela lhe inspirara confiança e ele falava com total liberdade, expondo-se abertamente. Ela demonstrara compreender o drama que ele vivia, aconselhando-o a dominar a ansiedade e ter paciência para pensar com lógica na busca de uma solução. Citou o seu exemplo, o que sofrera até decidir dar uma guinada em sua vida. Falou sobre as angústias e medos que a acometeram e o quanto foi difícil deixar as raízes, mudar de rumo e enveredar por um caminho novo e desconhecido.
Tão envoltos estavam na conversa que esqueceram que estavam em um lugar público e não perceberam a passagem do tempo. O tilintar de copos, sendo lavados, despertou Marina para a realidade, que percebeu os preparativos para o fechamento do estabelecimento, onde eles eram os últimos fregueses. Pediu à garçonete que trouxesse a conta e comentou com o Chico o quanto haviam se esquecido do mundo que os rodeava. Riram sentindo o bem que aquela conversa lhes fizera.
Saíram e andaram até o carro dela, onde Marina lhe entregou um cartão com seu endereço e telefone, pedindo-lhe que lhe ligasse. Abraçaram-se, beijaram-se no rosto e se despediram. Ela pediu-lhe que lhe ligasse e ele prometeu fazê-lo. Ela foi embora e ele ficou ali, olhando as luzes do carro até desaparecerem. Sentia-se estranho, diferente, como nunca se sentira antes. Algo vibrava dentro dele, a angústia desaparecera e se sentia cheio de algo novo..., bom..., muito bom!
Pensou em ir até um restaurante, onde havia baile e que permanecia aberto a noite toda. Considerou as pessoas que encontraria, as conversas que aconteceriam e sentiu uma espécie de repulsa. Desistiu. Entrou no carro e foi pra casa tentando identificar o que sentia.
Percebeu que sentia grande admiração por aquela mulher, que tivera coragem de abandonar uma carreira, família, amigos e se aventurar num recomeço. Sentiu vergonha de sua fraqueza, de sua incapacidade para encontrar um caminho. Ao mesmo tempo, sentia-se encorajado a enfrentar o problema e buscar uma saída. Estava feliz!
Que mulher admirável! Quanto conhecimento ela tinha! Compreendera seu problema e, ao invés de criticá-lo, confortara-o, aconselhara e incentivara. Não o considerara fraco, nem incapaz; mas vítima de forças que o impeliam a algo que ele não conseguia identificar. Mostrara-lhe que não temos todo o poder necessário para dirigir nossa vida e que estamos sujeitos a forças misteriosas que nos afetam. Aconselhara-o a buscar conhecimento e ter paciência, dizendo que não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe. Era uma mulher excepcional!

Ao acordar, pela manhã, seu primeiro pensamento foi para Marina. Teria sido um sonho? A água fria no rosto, o despertar completamente e a certeza de que não fora sonho. Lembrava do seu perfume, do calor do seu abraço, da ternura do seu beijo. Era a realidade que extrapolara o sonho mais fantasioso.
Lembrou da garçonete, da sua demonstração de surpresa ao vê-lo em companhia daquela mulher, da recusa ao namoro, de tê-lo considerado muito novo. Considerou que ela poderia ter razão, que eles eram muito novos e que precisavam de alguém mais velho, mais experiente, com capacidade, que eles ainda não tinham, para compreender os mistérios da vida. É, ela poderia ter razão! Talvez não tivesse consciência, mas tinha razão.
O tempo passava, mas seu pensamento gravitava em torno da Marina. Lembrava trechos da conversa, de coisas que ela dissera, da segurança com que ela dizia não conhecer uma infinidade de coisas, de reconhecer que a vida é um mistério e da coragem demonstrada para enfrentá-la. De como se sentira fraco diante dela e da injeção de coragem que ela lhe injetara. Era difícil acreditar que tudo aquilo tivesse acontecido em poucas horas. Como ela teria conseguido aliviar sua carga e clarear sua visão em tão pouco tempo? Seria uma bruxa, uma fada ou um anjo?
Marina... o que estaria fazendo agora?
No final da tarde, decidiu ligar pra ela. Foi até a venda, onde havia o único telefone do povoado e ligou. O telefone tocou até cair a linha e ninguém atendeu. Tentou novamente e... nada. Sentiu uma enorme frustração!
Ficou fazendo hora ali na venda e, depois de algum tempo, tentou novamente. Nada, ninguém atendia. Tentou mais uma vez, na hora da venda fechar e nada. Voltou pra casa cabisbaixo, frustrado.
Percebeu que precisava dela... mais que isso; não poderia viver sem ela!
Como era possível? Algumas horas de conversa, um abraço, um beijo no rosto e... Não poderia viver sem ela? Absurdo!
Banho, jantar, a mãe acusando que ele estava diferente, perguntando sobre o motivo, ele desconversando e a lembrança de Marina permeando tudo.
A frustração, por não ter conseguido falar com Marina, afastou o sono até o começo da madrugada. Finalmente Chico considerou que era final de semana e que ela deveria ter viajado. No dia seguinte, tentaria novamente e, se não conseguisse, tentaria novamente na segunda-feira.

Ele só conseguiu falar com ela no final da manhã de segunda-feira. Ela demonstrou alegria por ouvi-lo e disse ter passado o final de semana com os filhos. Ele não sabia o que dizer. Queria dizer um monte de coisas, mas não encontrava palavras para expressar o que sentia. Na verdade, ele não sabia definir o que sentia e tinha medo de ser mal interpretado. As palavras se embaralhavam na sua cabeça como se girassem num violento rodamoinho.
Ela quis saber se a conversa que tiveram não havia piorado o estado dele, aumentado a confusão. Que temia que isso tivesse acontecido. Ele se apressou em dizer que não, que ela fora como uma luz a clarear a escuridão em que ele estava. Que tinha a impressão de haver saído de um buraco escuro e descortinado um imenso mundo iluminado.
De onde saíram aquelas palavras? Chico não acreditava que ele as tivesse dito!
Ela disse achar que ele estava exagerando, mas que ficava feliz por ele estar se sentindo melhor. Perguntou se ele tivera alguma idéia sobre o que fazer. Ele disse que, ainda, não, mas que sentia que algo estava para acontecer. Que sua cabeça fervilhava, não parava de pensar no que conversaram, na coragem dela em mudar de vida, na sua lucidez e na esperança que transmitia. Que ansiava pela oportunidade de novo encontro.
Ela convidou-o a visitá-la e conhecer o trabalho que estava fazendo. Ele perguntou quando e se arrependeu, de imediato, de ter sido tão impulsivo. Sentia que não dominava as palavras, que elas eram colocadas em sua boca, que algo o movia a falar, fora de seu controle.
Ela disse que poderia ir quando quisesse. Que se pudesse, poderia ser, até, no dia seguinte. Quando ele se deu conta, já havia confirmado: iria no dia seguinte, mesmo. Novamente se condenou pela impulsividade, mas estava feito e ela não demonstrara contrariedade. Depois que ela lhe explicou como chegar, despediram-se e ele foi pra casa controlando-se para não saltitar, cantar e virar piruetas. Passou a tarde consertando um pedaço de cerca que havia caído e, no final do dia, caprichou na lavagem do carro.

As nove horas já estava na porteira do sítio. Havia acordado as cinco, tomara banho, fizera a barba, vestira a melhor roupa e olhara uma infinidade de vezes para o relógio, considerando que os minutos demoravam horas para passar. Foi recebido por um senhor que lhe abriu a porteira e indicou o caminho para a estufa, onde Marina estava cuidando de suas plantas.
Ao ver o sorriso com que ela o recebera e sentir o calor de seus lábios em sua face, o coração do Chico parecia querer saltar pela boca. Ela lhe mostrou a estufa, as plantas que cultivava ao ar livre, o depósito de vasos, a esterqueira onde o esterco depois de fermentado e tratado se transformava em adubo orgânico, em fim, tudo o que ela chamava de matéria prima para o desenvolvimento de seu trabalho.
Ao lado da estufa, havia um atelier onde ela e a sócia faziam os projetos. Ela disse que a sócia fora acompanhar a execução de um jardim, numa cidade próxima, mas que estaria de volta no meio da tarde. Mostrou-lhe alguns projetos e fotos de jardins que executaram. O Chico não conseguiu entender os projetos, mas admirou a beleza dos jardins retratados nas fotos. Marina, percebendo que ele não entendia os projetos, dedicou-se a mostrar-lhe como funcionavam, usando fotos dos jardins executados de acordo com os projetos e indicando o que representava o quê.
O Chico se sentia no paraíso e a cada toque entre partes de seus corpos, um simples roçar de braços, por exemplo, era suficiente para que ele sentisse um fogo invadi-lo, temendo que isso fosse denunciado por rubor em seu rosto.
Marina falou das experiências que vinha fazendo com plantas híbridas, com adubos, controles de pragas e coisas assim. O Chico se mostrava abismado por considerar que era muito conhecimento para caber em uma só cabeça. Como é que alguém, que até pouco tempo era professora universitária, poderia conhecer tanto sobre plantas, adubos e pragas? Ela disse que era uma simples questão de pesquisar, estudar e procurar compreender através da racionalidade. Que as experiências e o trabalho prático ensinavam muito, principalmente os erros. No entanto, tinha plena consciência do muito que tinha para aprender.
O Chico não se atrevia a discordar dela, mas considerava que só alguém com muita genialidade poderia saber e fazer o que ela fizera e continuava fazendo. Ela se agigantava tanto no seu conceito que ele considerava cada vez mais difícil uma aproximação maior.
Ela não podia deixar de perceber que ele estava se entregando a um fanatismo exagerado e começou a se preocupar, seriamente, com isso, ao mesmo tempo que se sentia envaidecida. Afinal, merecer a admiração de um rapaz bonito, vinte e cinco anos mais novo que ela, era considerável e não poderia ser desprezado. No entanto, ela era avessa a mitos, e a direção que aquilo tomava começava a preocupá-la.
A aversão por ser idolatrada não era uma questão de humildade e, sim, a consciência da responsabilidade do ídolo, a cobrança que isso gerava, principalmente, o ser considerado infalível. O fã desconsidera os erros e defeitos do ídolo, no entanto, quando os considerar, os verá como verdadeiras aberrações, descabidos em alguém que tanto admirou, por desconsiderar que era uma pessoa falível como qualquer outra. É comum que a admiração se transforme em repulsa, transportando o ídolo de perfeito para inaceitavelmente defeituoso. Portanto, Marina considerava a idolatria um fardo muito pesado e faria o possível para se livrar dele.
Começou por confessar que trocar a cidade pelo campo, a universidade pelo viveiro de plantas e a vida familiar pela solidão; não foi conseqüência de coragem, de capacidade, muito menos de força. Ao contrário, o que causou isso foi a covardia, incapacidade para mudar o que estava errado e fraqueza para enfrentar as dificuldades. Ela não trocara, simplesmente fugira!
O Chico discordou e justificou com seu próprio exemplo, que vivia infeliz, sem saber o que fazer e sem forças para reagir. Ela se atrevera a recomeçar, enquanto, ele, não tivera coragem nem de começar. Vivia a vida que lhe traçaram, insatisfeito, sem coragem para buscar caminhos alternativos.
Ela argumentou que, ao contrário do que ele estava querendo demonstrar, ela não era mais capacitada, forte e corajosa. Tanto um, como o outro, estavam tentando fugir dos problemas, buscando facilidades, evitando enfrentar as dificuldades e tentar solucioná-las. Ele, pelo menos, tinha a desculpa da falta de conhecimento. Ela era um exemplo vivo de que o conhecimento é necessário, mas não suficiente, para resolver problemas. É necessário querer enfrentá-los, lutar para resolvê-los. Ela fugira, abandonara o campo de batalha, escondera-se. Não via como isso poderia ser admirado!
A cabeça do Chico parecia dar piruetas sobre o pescoço. Não conseguia argumentos para contradizê-la, mas não podia concordar com ela. Emanava segurança e força. Quanto ao conhecimento, era evidente que tinha muito. No entanto, não conseguia argumentar contra o que ela dizia, se auto-acusando. Disse isso a ela.
Ela olhava para algum ponto distante e seu semblante refletia tristeza. Falou sobre a tendência que temos de acreditar no que queremos, desprezando as evidências que demonstram o contrário. Ela fora derrotada pelo sistema educacional, não conseguira qualquer mudança das que considerava necessárias. Não conseguira manter o amor que a unira ao marido. Os filhos optaram por acompanhar o sistema, desprezando os conceitos dela, que pregava a necessidade de mudanças. Cedeu à pressão da cidade grande, ficando impossibilitada de suportar os sacrifícios que ela impunha. Não conseguira mudar as pessoas e não tivera capacidade de conviver com elas, aceitando-as como são. Fugira para o mato, acreditando que o contato com a natureza e com gente simples a livraria dos problemas. Estava constatando que isso era ilusão.
Na noite em que se encontraram na lanchonete, ela saíra para tentar aliviar a angústia que a acometia. A conversa com ele lhe reavivara a esperança de que poderia fazer alguma coisa por alguém. O final de semana passado na cidade, em contato com parentes e amigos, confirmou que aquela convivência lhe era insuportável. Rejeitava a vida que levara e estava insatisfeita com a que estava levando. Portanto, a admiração que ele estava sentindo por ela, era ilusória, resultado de querer achar alguém em quem se apoiar, que lhe oferecesse o que ele precisava. Ele estava errado, buscando facilidade, eximindo-se da responsabilidade de lutar pelo que precisava.
O Chico se sentiu achatado, com sua pequenez espalhada pelo chão.. Ela acertara, ele era incapaz, fraco e covarde. Sua aparência demonstrava como ele se sentia.. Ela percebeu o estrago que causara, condenou-se por isso e, tomada de imensa ternura, foi até ele e abraçou-o, apertando-o contra o peito.
Ele ficou surpreso, estático, sem ação. O calor do corpo dela, sua cabeça encostada no seu peito, a mão lhe acariciando a nuca, despertaram-no. Lentamente ele foi levantando os braços, temendo tocá-la, mas acabou abraçando-a com força. Encostou o rosto no dela, sentiu-lhe a maciez e, num impulso, beijou-lhe a boca. Timidamente e, ao sentir retribuição, com sofreguidão, impulsionado pelo sangue fervendo que lhe percorria as veias.
Extenuados, deitados lado a lado no tapete, ele a olhava como quem admira uma preciosidade, enquanto ela era tomada por um sentimento de culpa. Estava apaixonada! Isso poderia causar problemas para os dois. Era evidente que ele também estava apaixonado, mas provavelmente a causa da paixão dele fosse a cabeça dela ou, melhor dizendo, o que ele imaginava que ela fosse. Previa ventos e trovoadas pela frente e culpava-se por não ter resistido, por ter cedido à emoção.

Como ela não tivera tempo para preparar o almoço, comeram lanche, que o Chico adorou. Aliás, ele teria adorado qualquer coisa por pior que fosse.
O ambiente era de pura ternura e os dois só desejavam trocar carinhos. No entanto, Marina, por uma questão de consciência e para se livrar do sentimento de culpa; convidou o Chico para esclarecer a situação através de uma conversa racional, tentando evitar as armadilhas da emoção.
Começou confessando que estava apaixonada e que isso lhe propiciava enorme felicidade. Que acreditava que ele sentisse o mesmo. A expressão dele e, principalmente o olhar, não deixavam dúvidas.
Ela disse acreditar que a felicidade é o objetivo da vida e que nada pode propiciá-la com mais intensidade que a paixão correspondida. Que, como não temos o poder de escolher quando e a quem amar, precisamos aproveitar ao máximo a felicidade que nos é oferecida; cultivando-a e evitando o que possa diminuí-la ou, até, acabar com ela. Que o ideal seria desprezar todo o resto e dedicar-se com exclusividade a curtir a felicidade propiciada pelo amor. No entanto, um par de apaixonados não pode viver isolado da sociedade. Eles, isoladamente, mantinham relações com várias outras pessoas como: parentes, amigos, conhecidos, etc. Em conjunto, poderão compartilhar os relacionamentos que tinham, minimizar ou eliminar alguns e criar outros.
Que a convivência entre indivíduos exige respeito a direitos e deveres, obrigando-nos a fazer coisas que não gostaríamos e a deixar de fazer muitas que gostaríamos de realizar. Algumas dessas obrigações ou impedimentos afetam o relacionamento amoroso, impedindo-nos de fazer tudo o que gostaríamos e obrigando-nos a fazer coisas que gostaríamos de evitar.
Que o próprio casal é composto por dois indivíduos que, naturalmente, são diferentes e que, algumas dessas diferenças poderão causar problemas ao relacionamento. Que, no começo, essas diferenças costumam ser relevadas, mas que, com o passar do tempo, elas vão se tornando significativas, causando problemas, acentuando-os e podendo levar ao rompimento definitivo.
Ela disse que gostaria de desconsiderar tudo isso, atirar-se de cabeça no relacionamento, sorvendo cada gota do que ele pudesse propiciar. No entanto, a experiência indicava que, se não forem tomados alguns cuidados, o relacionamento pode ser abreviado, impedindo o desfrute da felicidade que pode propiciar. Que uma das características principais, causadora de grandes problemas, é o ciúmes. Ele costuma destruir o que, em princípio, pretende manter. Ele é causado pelo medo de perder a pessoa amada, no entanto, não é raro que provoque essa perda, sem que qualquer outro motivo contribua para isso.
Ela concluiu sua explanação dizendo que, o amor, assim como surge misteriosamente, pode desaparecer sem motivos aparentes. Que se, ao surgir, ele causa tremenda felicidade; ao terminar, unilateralmente, causa enorme sofrimento e conseqüente infelicidade.
O Chico ouvia admirado, a facilidade e clareza com que ela expunha suas idéias; no entanto, achava que ela exagerava nas preocupações. Ele a amaria até a morte e nada poderia impedir que fossem felizes. Disse que ela o fizera renascer, que viveria para fazê-la feliz e que nada, absolutamente nada, faria com que ele contribuísse para o final daquele relacionamento.
Ela confessou que, naquele momento, sentia a mesma coisa, no entanto, por experiência própria e pelo grande número de experiências alheias que conhecia, sabia que essa certeza inicial teria grandes possibilidades de se desmanchar e transformar em repulsa o que hoje os atraia com tanta força. Que, de imediato, enfrentariam um grande problema: a diferença de idade. A facilidade que as pessoas têm para criticar, as levaria a considerá-la um “papa anjo”, enquanto o acusariam de pretender obter vantagens econômicas com esse relacionamento. Fechariam os olhos para a inexorabilidade do amor e para o fato de que ela não poderia oferecer mais bens materiais do que os que ele dispunha. O fato é que enfrentariam críticas e desaprovações inevitáveis. Portanto, tendo consciência de que aquela paixão poderia não passar disso para cada um deles ou para os dois; deveriam manter o relacionamento em segredo até que, se confirmado o amor, pudessem optar por publicá-lo ou não.
Ela disse ter consciência de que poderia pagar muito caro pelo atrevimento de desfrutar o que aquele relacionamento poderia oferecer. Que a probabilidade dela ser abandonada era enorme, por causa da juventude dele que, naturalmente, teria mais oportunidades de ser provocado a outros relacionamentos. Como não é possível prever o que acontecerá com cada um, não seria impossível que o abandonado fosse ele, embora com probabilidade muito menor. Que ela procuraria desfrutar ao máximo, sabendo que o sofrimento, caso aconteça, será inevitável.
O Chico repetiu que nunca a abandonaria e que nenhuma ameaça de sofrimento futuro, o impediria de desfrutar o que estava sentindo. Com essa afirmação ele demonstrava sua imaturidade e fragilidade para enfrentar problemas. Ela tinha plena consciência disso e estava disposta a esforçar-se para amadurecê-lo e possibilitar-lhe compreender que a vida é como é e, não, como gostaríamos que fosse.
Ela constatou que, embora tudo que dissera fosse racional, embasado na experiência de inúmeros casos, parecia-lhe irreal, sentindo que aquela paixão se prolongaria por toda a vida. Ela já passara por isso, acreditara que nunca deixaria de amar o marido e, agora, ele estava infinitamente distante da sua emoção, que se dirigia a outra pessoa, como se o anterior não tivesse existido. Sabia que aquilo era uma demonstração do quanto a emoção domina a razão e estremeceu ao considerar que a razão pouco poderia ajudá-la se perdesse aquele amor enquanto continuasse amando com intensidade.

O relacionamento durou quatro anos, contrariando a expectativa de quantos tomaram conhecimento dele. Não chegaram a viver juntos, por decisão dela; mas protagonizaram um relacionamento invejável, pleno de amor, amizade, companheirismo, lealdade, respeito e admiração mútua. Ela se orgulhava de ter contribuído para o amadurecimento dele, que tinha consciência disso e não se cansava de agradecer a oportunidade que a vida lhe propiciara.
Enfrentaram grandes dificuldades, mas as superaram com a força que os unia. Nada era suficiente para abalá-los, por mais difícil que se apresentasse. Tinham consciência de que, juntos, eram mais que dois e que, separados, não chegavam a ser um.
Sem mais nem menos, sem qualquer indicativo de que isso pudesse acontecer, sem motivos identificáveis; o Chico disse que estava abandonando aquele relacionamento e que não estava disposto a discutir as causas, saindo como se Marina nunca tivesse existido.
O Chico se sentiu acordando ou chegando de algum lugar desconhecido. Era outra pessoa, querendo coisas e disposto a conquistá-las. Repudiava a vida que levara até ali e custava a creditar que a tivesse vivido. Aquela mulher o dominara, fizera-o perder um tempo precioso em troca de algo que ele não podia compreender. Ela o sufocara, impedira que se aventurasse buscando coisas novas, progredindo, curtindo os prazeres que a vida oferece. Usara alguma espécie de feitiço para dominá-lo como fizera. Agora estava livre, mas precisava cuidar para não ser apanhado novamente. Aquela mulher com ares de santa era uma espécie de bruxa, que só ele conhecia, que enganava a todos.
Era incrível, mas ele estava convencido disso! Desconsiderara tudo o que tinha aprendido, as emoções vividas, as quantas coisas que fizera e que, se não fosse por ela, não as teria feito por falta de coragem e motivação. Como ela havia previsto no começo, o ídolo se transformara em vilão. Se não houvera muitos motivos para a idolatria, com certeza não os havia para a repulsa.

Ele passou alguns dias pensando no que fazer. Acreditava ter capacidade para muitas coisas, o que lhe permitiria escolher o melhor. Analisaria as possibilidades e escolheria a melhor. Poderia demonstrar sua capacidade e independência, mostrando do que era capaz e que, ao contrário do que muitos pensavam, não precisava de ninguém para guiá-lo.
O tempo foi passando, mas o Chico não encontrava nada que pudesse fazer. O tempo continuou passando e o Chico continuou acreditando que conseguiria o que ainda não tinha a menor idéia do que seria.
Passou a freqüentar um baile nos finais de semana, onde reencontrou a garçonete da lanchonete onde conhecera a Marina e que, agora, se dispôs a ficar com ele. Tomou gosto pela bebida e aumentava as doses a cada final de semana.
Algum tempo depois, ele e a garçonete decidiram morar juntos. Alugaram uma casa e a mobiliaram. Pagaram o primeiro aluguel, mas não conseguiram pagar a primeira prestação dos móveis. O Chico conseguiu trabalho como balconista em um bar e a moça continuava trabalhando na lanchonete. Porém, as despesas superavam seus salários e, tanto o aluguel quanto as prestações seguiam sem serem pagas.
Poucos meses depois eles se separaram e o Chico foi passar uns dias na casa de um irmão, até que decidiu ir morar com uma mulher que havia se separado do marido. Ele continuava acreditando que superaria as dificuldades e encontraria o caminho do sucesso, embora tudo indicasse o contrário.
A previsão da Marina se cumpriu. Os quatro anos de indescritível felicidade apresentaram a conta. Era enorme! Pesadíssima! Ela nunca deixara de considerar que, um dia, o Chico a deixaria, principalmente se se apaixonasse por outra mulher. O que não imaginara é que acontecesse daquela maneira, sem motivos, sem nada que justificasse o término daquela relação tão feliz. Ela considerava natural que ele deixasse de amá-la e, assim, optasse por deixá-la e ter liberdade para esperar por outro amor. Porém, as atitudes dele deixavam claro que ele não tinha a menor idéia do que fazer, nem capacidade para encontrar um caminho. Fora trombando no que lhe aparecia, como o sedento que se atira ao charco, acreditando mergulhar numa fonte de águas cristalinas. Continuava com sede e cada vez mais enlameado. Se perder o amor do Chico era terrível para Marina, constatar que tanta felicidade fora destruída por nada, era enlouquecedor!
A comunicação dele de que a deixaria fora uma surpresa, verdadeiro choque. Mas ela considerara que teria sido uma espécie de surto psicótico. Decidira dar-lhe um tempo para que pudesse refletir e cair em si. Procurou-o alguns dias depois, sem cobranças, oferecendo-se para ajudar no que pudesse e dizendo que estava de braços abertos para recebê-lo. Ele alegou precisar de um tempo.
Ele continuava cometendo erros e repelindo a idéia de reconciliar-se com ela. Ela sofria terrivelmente, o que era aumentado pela incoerência dos acontecimentos. No entanto, continuava esperançosa de que ele recuperasse a lucidez, compreendesse o que estava acontecendo e tentasse se recuperar, quando ela faria tudo que pudesse para ajudá-lo. Claro que gostaria de tê-lo de volta, mas poder desfrutar de sua amizade e lealdade, já seria um lenitivo muito grande.
O sofrimento era terrível, o peito apertado identificando a enorme angústia, uma enorme apatia impedindo a mínima motivação para o que quer que fosse, o pensamento dominado pelas causas do sofrimento, dificultando a racionalidade, causando insônia, eliminando o apetite. O choro era constante, alternando soluços com choros convulsivos.
Ela se esforçava para que a racionalidade dominasse a situação. Esta lhe indicava que o melhor a fazer era esquecê-lo. Que ela fizera o possível para ajudar e mudar o rumo das coisas e que não poderia fazer mais nada. Portanto, o melhor seria esquecê-lo, tocar a vida e, se ele decidisse voltar, avaliar a situação de então e optar pelo melhor. Ela concordava que o melhor seria o esquecimento, mas como consegui-lo? Se pudesse ela o faria, mas não conseguia. O pensamento repetia incessantemente o quanto foram felizes, a incoerência da atitude dele, a imbecilidade de trocar tanta felicidade por tanta tristeza, tanto sofrimento. Outras vezes o pensamento era assaltado pela vingança exigindo satisfação. Ela reagia, esforçando-se para possibilitar a racionalidade, que indicava que tais pensamentos só serviam para alimentar e reforçar sentimentos ruins, sofrimento, e que o melhor seria expulsá-los. No entanto, os pensamentos indesejados dominavam e as recomendações da razão se perdiam na impossibilidade.
Ela se sentia fraca e apática, contrastando com a intensidade do sofrimento. Era como se um carrasco extremamente forte açoitasse uma criança desnutrida, doente e inválida. A medida que constatava sua impossibilidade de resolver o problema, a morte se apresentava como solução. Ela não considerava a possibilidade de suicídio, mas convencia-se, cada vez mais, que a morte poderia salvá-la daquele sofrimento.
Para se livrar daqueles pensamentos que tanto a maltratavam, ela analisava dados da memória e da atualidade, refletindo, buscando compreender. Percebeu que o Chico não tinha culpa pelo seu sofrimento. O problema estava na impossibilidade dela em esquecê-lo. Se conseguisse isso, nada do que ele fizesse a afetaria. Seu carrasco era ela mesma, sua mente, que tentava eximir-se atirando acusações a torto e a direito contra quem não passava de simples objeto daquele verdadeiro terror.
Nessas reflexões, a lembrança dos tempos felizes pareciam distantes, longínquos. Mostravam que houvera infinita emoção, felicidade transbordante recheada de prazer. No entanto, não passava de lembranças, sem sentimentos. O presente, ao contrário, parecia se alongar no tempo, intensificando sofrimento, reforçando-o, mostrando que continuaria a atuar indefinidamente.

Quase dois anos haviam passado quando Marina percebeu que o sofrimento não doía tanto como anteriormente. Ou ele diminuíra ou sua resistência aumentara, o fato é que já não chorava, o sofrimento não causava tanta dor. Continuava uma melancolia, um enorme vazio cheio de nada, uma total falta de motivação para qualquer coisa. Trabalhava e se relacionava com algumas pessoas, da mesma maneira que respirava, comia e dormia: por pura necessidade, por não poder evitar.
O tempo continuou se arrastando, arrastando-a naquele marasmo apático. Lia bastante e escrevia registrando seus sentimentos, análises e reflexões. Acumulava conhecimento e, principalmente, compreendia muitas coisas que durante muitos anos estiveram nebulosas. Chegara a conclusões tão simples sobre o que lhe parecera extremamente complicado, que chegava a duvidar delas, embora lhe parecessem claras e, nem ela, nem a quem as expunha conseguissem contradizê-las.
Compreendera que tudo que o indivíduo faz durante a vida, consciente ou inconscientemente, objetiva a felicidade, que nada mais é do que a satisfação de vontades. Que a vontade é autônoma e se impõe ao indivíduo, forçando-o a satisfazê-la, mesmo aquelas que a razão classifica de absurdas e cuja satisfação pode resultar em verdadeiros desastres.
Compreendera que o que importa ao indivíduo é o que ele sente, não importando que aquilo possa parecer absurdo à racionalidade ou na avaliação dos outros. Ela sentia falta do que vivera com o Chico e, embora a racionalidade indicasse que aquilo acabara, que ela fora feliz sem ele antes, que muitas outras coisas poderiam oferecer felicidade, continuava presa àquele sentimento, incapaz de livrar-se dele, de esquecê-lo, de curtir outros prazeres e viver novas felicidades. O Chico trocara a felicidade que vivera com ela por uma vida condenável, na opinião da maioria, causando prejuízos a outros e, principalmente, a ele próprio; no entanto ele optara por aquilo e, mesmo tendo a oportunidade de retomar o que abandonara, preferia continuar no caminho escolhido, mesmo que tudo indicasse o fracasso da pretensão.
Ela reconhecia a enorme capacidade do ser humano, tanto na racionalidade quanto na capacidade de suportar sofrimento. No entanto, era evidente o quanto ele era influenciado por forças misteriosas, impelindo-o, impulsionando-o a agir contra a racionalidade, desprezando a experiência, trombando em obstáculos intransponíveis. Buscara identificar a origem dessas forças na ciência, nas religiões e no esoterismo, mas só conseguira constatar o quanto a humanidade continuava ignorante quanto a isso.
Acreditava que as conclusões de suas análises e reflexões poderiam ajudar a corrigir distorções no comportamento dos indivíduos e da sociedade e, principalmente, provocar pesquisas e estudos na busca de melhorias. No entanto, embora quem as conhecesse não conseguisse contradizê-las, eram desprezadas, comprovando que o valor de qualquer coisa é proporcional ao quanto ela é desejada. Suas conclusões, embora aceitas como válidas, não eram desejadas, por isso não eram valorizadas.
O fato de sua racionalidade ser desprezada e de não conseguir se livrar de sentimentos e pensamentos que não queria; evidenciava o quanto o seu livre arbítrio era limitado, o quanto estava sujeita a forças que a impulsionavam para onde não queria. Como criticar as distorções alheias, se ela tendo consciência dos erros que cometia, não conseguia corrigi-los?

Quase três anos, que mais pareciam séculos. Marina recebeu o telefonema de um ex-aluno, que dissera ter “corrido uma maratona” para encontrá-la. Ele trabalhava em uma ONG dedicada a ajudar dependentes de drogas e seus familiares. Eles pretendiam contratar um filósofo para ampliar o leque de abordagem do problema. Ele se lembrara dela e acreditava que poderia contribuir muito para o objetivo pretendido. Ela quis saber o que ele fazia lá, uma vez que, se procuravam um filósofo era porque ele não desempenhava essa função. Ele esclareceu que, no meio do curso, trocara a filosofia pela sociologia e que desempenhava essa função na ONG.
Marina considerou que era a oportunidade de uma nova experiência, onde teria a oportunidade de aplicar seus novos conceitos e, quem sabe, tirá-la do martírio em que vivia. Conversou com a sócia que a animou a tentar, alegando que, se não desse certo, teria para onde voltar.
Depois de uma longa conversa com a diretoria e a equipe da ONG, aceitou o desafio e se dispôs a um período de experiência.
Um dos psicólogos da equipe ficou especialmente interessado pelos conceitos que ela defendia. Era um homem de trinta e cinco anos, fora dependente de drogas na juventude e, depois de se recuperar, casara-se com uma namorada, que fora fundamental para que deixasse as drogas. Voltara a estudar e se formara. Depois de algum tempo a mulher o abandonara e ele esteve a ponto de recair. Buscara ajuda naquela ONG e passara a trabalhar ali.
Foram tempos difíceis. O amor lhe dera forças para resistir à compulsão pelas drogas. Ao ser abandonado, o sofrimento causado pela perda empurrava-o para buscar alívio nas drogas. No passado, aquilo teria sido instantâneo, o recurso imediato frente ao mínimo problema que o atingisse. Frente ao maior sofrimento que já experimentara, embora a compulsão fosse bastante forte, conseguira resistir e buscar ajuda. Durante um bom tempo buscara compreender o porquê, como conseguira forças para resistir, por que não seguira o caminho que conhecia tão bem?
Descartara a fé religiosa. Durante os tratamentos porque passara para se livrar da dependência, chegara a ser fanático; no entanto, o estudo da doutrina lhe mostrara muitas incoerências, causando o término da fé.
Sua primeira reação ao desespero fora apegar-se à fé, mas foi um fracasso. Mesmo assim, alguma força lhe permitia resistir à compulsão. Depois de muitas análises e reflexões, concluíra que essa força vinha da esperança de recuperar a companhia da mulher, que era seu maior desejo. Mesmo quando a racionalidade mostrara que essa esperança tinha mínimas possibilidades de se concretizar, ela continuava resistindo e, até o presente momento, quando ele considerava que a reconciliação poderia trazer mais problemas que soluções; ela relutava em desaparecer.

Marina ficara impressionada com aquele relato. Considerara o seu sofrimento, o quanto desejara a própria morte e a desesperada busca por algo que lhe propiciasse algum alívio. Imaginara que, tendo um histórico de se refugiar nas drogas, frente a mínimas contrariedades; o quanto seria difícil resistir frente a um sofrimento tão grande. Teria sido só a força da esperança que permitira aquela resistência?
Tanto um como o outro não estavam dispostos a interromper aquela conversa, que começara quando ele a acompanhara na saída da reunião e a convidara para um café numa padaria das proximidades. Era final de tarde e, depois do café, caminharam até uma pracinha e, sentados em um dos bancos, a conversa continuara. Ele, pretendendo continuar a conversa, convidou-a para jantar e, ela, com o mesmo objetivo, aceitou.
Durante o jantar ele perguntou se ela pretendia voltar para casa ou ficar. Ela disse que havia programado voltar, mas que, agora, preferia pernoitar ali e viajar no dia seguinte. Que não estava disposta a viajar quase duzentos quilômetros, durante a noite, até sua casa. Se hospedaria em um hotel e viajaria no dia seguinte. Ele se ofereceu para hospedá-la em seu apartamento, argumentando que teria muito prazer em fazê-lo e que só aceitaria recusa, caso ela se sentisse incomodada em compartilhar um espaço com um homem solitário. Disse que era um apartamento de dois dormitórios e que ela disporia de toda privacidade.
Ela sorriu um sorriso que há muito não acontecia com tanta espontaneidade e disse que não tinha frescuras, nem medo de homem, nem de falatórios maldosos; portanto, não tinha porque recusar, desde que o convite fosse sincero e não causasse problemas para ele. Ele disse que seria um prazer hospedá-la, mas confessou que sentira receio em convidá-la, temendo constrangê-la. Riram da situação e gastaram um bom tempo conversando sobre como preconceitos, valores distorcidos, hipocrisia e vaidades, criam problemas sem causa. Que o fato de perguntas e oferecimentos com segundas intenções, inibem que as que buscam conhecimento e o desejo autêntico de oferecer, sejam reprimidos. Marina disse acreditar que a desconfiança causa tantos problemas, que provoca a super-valorização da confiança, da honestidade e da lealdade.
Marina fez um resumo de sua história e, provocada por ele, contou com mais detalhes o episódio da última separação e dos estragos que ela causara.
O compartilhamento dos problemas e, principalmente, dos sofrimentos vividos, aproximou-os sensivelmente, levando-os a um acariciar a mão do outro, sobre a mesa, depois do jantar, enquanto a conversa continuava. Saíram do restaurante de mãos dadas e caminharam pela praça, conversando, trocando olhares de ternura, respeito e admiração. Já era começo da madrugada quando se dirigiram para o apartamento dele e, com toda naturalidade, tomaram banho juntos e dividiram a mesma cama, desfrutando de uma relação como já não acreditavam que fosse possível.

Pela manhã ela acordou e pensou no sonho lindo que tivera. Era muito cedo. Sentia-se leve, descansada como há muito não acontecia. De repente, caiu em si: onde estava?
Encolheu-se instintivamente, enquanto percorria o ambiente com o olhar.
Não fora sonho! Acontecera mesmo. Levantou-se e como não encontrasse as roupas, enrolou-se no lençol e saiu do quarto.
O psicólogo estava na cozinha, sentado junto à mesa servida para o café da manhã, com o olhar perdido em algum ponto na parte superior da parede à sua frente. Ela parou no umbral da porta e ficou observando-o, até que ele, num susto, a percebesse. Levantou-se de um salto, correu pra ela, abraçou-a e cobriu-lhe o rosto de beijos.
Se ela tinha dúvidas a respeito de se fora sonho ou realidade, a atitude dele afastou de vez a possibilidade de sonho. Estava feliz e considerou que nunca estivera tanto. Afastou-o carinhosamente, dirigiu-se ao banheiro, entrou no chuveiro e sentiu que a água morna retirava dela os últimos resquícios de sofrimento de um passado recente.
Quando voltou para a cozinha, foi a vez dela agarrá-lo, apertá-lo e beijá-lo. Pareciam duas crianças que tivessem ganho o mais cobiçado presente. Sentaram-se à mesa e tomaram o desjejum que ele havia preparado. Queriam falar, abraçar, beijar, mas só se olhavam nos olhos, como quem busca um segredo escondido.
Ele quis saber sobre o que ela pensava. Ela disse pensar: se aquilo tivesse acontecido enquanto estavam com os antigos amores, o que teria acontecido?
Ele encarou-a, como quem fora surpreendido, demorando algum tempo pra falar. Opinou que seria complicado. Que seria difícil abrir mão de qualquer uma das duas, mas ficaria com a consciência pesada em relação à primeira porque estaria traindo sua confiança e expondo-a a uma grande decepção. Disse que não esconderia da segunda a existência da primeira e o quanto era importante.
Marina opinou que este relacionamento não teria acontecido. Melhor dizendo: seria difícil de acontecer. O primeiro relacionamento era muito forte, plenamente satisfatório e ela tinha consciência disso; portanto, dificilmente haveria oportunidade para outro. Provavelmente este relacionamento ficaria no nível da amizade. Contou que, quando era casada, se apaixonara por um rapaz que também se apaixonara por ela. Que esse relacionamento durara muito pouco, lhe causara grandes problemas de consciência e optara por abandoná-lo e preservar o casamento. Fora muito difícil abandonar alguém que lhe propiciava tanta felicidade e fora muito sofrível. No entanto, o marido lhe oferecia o suficiente. Não bastasse o problema de abandonar uma paixão, o sofrimento aumentava por saber do sofrimento impingido ao abandonado, mesmo sabendo que fora honesta, prevenindo-o de que, se tivesse que optar, escolheria o marido. Fora muito sofrível!
O psicólogo declarou sua estranheza por estar tão enormemente apaixonado em tão poucas horas. Há muito acreditava que a paixão pode acontecer muito rapidamente e sem empenho de quem se apaixona; mas não imaginara que poderia ser tão rápido e com tanta intensidade.
Ela concordou. Nunca imaginara que tanta intensidade pudesse acontecer com tanta rapidez. Passaram um tempo refletindo, em silêncio. De repente, Marina lembrou-se de suas reflexões sobre a relatividade das emoções e sentimentos. Antes de se conhecerem, ambos estavam sofrendo e desejando desesperadamente se livrar daquilo. O fim do sofrimento já seria um grande ganho. Agregar felicidade seria aumentar esse ganho. A intensidade da felicidade não era medida a partir do zero e, sim, a partir do sofrimento.
Ele deu um tapa na própria testa, levantou-se correndo, deu a volta à mesa, abraçou-a e beijou-a, como que agradecendo por um grande presente. Declarou que a questão da intensidade de sentimentos o intrigava há muito tempo, mas não conseguia defini-los. Que a colocação dela fora como um raio de luz sobre o problema. Claro! O zero era o ponto em que não há felicidade nem infelicidade, um ponto marcado sobre uma linha. Andando para a direita, se caminharia em direção da felicidade, que aumentava na medida em que se afastava do zero. Andando para a esquerda, caminhava-se para a infelicidade, que também aumentava quanto mais se afastasse do zero. Se, partindo do zero para a direita caminhássemos dez unidades, a intensidade da felicidade seria dez. Porém, se partíssemos de dez unidades de infelicidade, andaríamos dez unidades até chegar ao zero e mais dez para chegar na felicidade conseguida. O total da caminhada seria de vinte unidades. Portanto, nesse caso, a intensidade da felicidade seria vinte.
Ela confirmou o raciocínio dele. Para quem não estivesse feliz nem infeliz, a intensidade da felicidade conseguida seria dez. Para quem partisse de uma intensidade de infelicidade de intensidade dez, a intensidade de felicidade passaria a ser vinte. Para quem partisse de uma intensidade de infelicidade vinte, a intensidade da felicidade conseguida seria trinta. Da mesma maneira que, quem partisse de uma felicidade com intensidade cinco, só conseguiria mais cinco unidades de felicidade.
Ele declarou com entusiasmo que, além de se livrar do sofrimento, de ganhar uma paixão deliciosa, conseguira esclarecimento para algo que o perturbava há muito tempo. Apertou-a num abraço e cobriu-a de beijos, como uma criança que tivesse conseguido a coisa mais desejada.
Ela reforçou a idéia com o exemplo da paixão que tivera quando ainda era casada: amava muito o marido, com intensidade dez, por exemplo; a outra paixão atingira um nível onze. Era uma intensidade maior, mas a diferença era de só uma unidade. Agora ela partira de um sofrimento de intensidade vinte e chegara a uma felicidade de dez unidades de intensidade; portanto, a intensidade do que estava sentindo somava trinta unidades. Por isso, a sentia tão grande. Com ele, deveria estar acontecendo o mesmo.
Ele declarou compreender o porquê de que, se estivessem bem com seus antigos amores, dificilmente viveriam aquela experiência, pelo menos na intensidade que aconteceu. Olhou para o relógio e se surpreendeu, o tempo voara e ele estava atrasado para a reunião com um grupo de dependentes em tratamento. Ainda bem que a reunião seria numa entidade próxima dali, onde poderia chegar rapidamente. Pediu a ela que o acompanhasse, pois pretendia expor a questão da relatividade para o tratamento da dependência.
Ela aceitou com entusiasmo de menina, com uma motivação que há muito não sentia. Terminaram de se aprontar, rapidamente, e correram como duas crianças para o local da reunião.

O psicólogo cumprimentou os presentes, desculpou-se pelo atraso e apresentou Marina, dizendo que ela proferiria uma palestra muito interessante, de grande ajuda para a caminhada em direção a recuperação.
Marina cochichou-lhe que não conhecia a filosofia do tratamento e que temia criar conflitos. Ele lhe disse para não se preocupar, que confiava no seu conhecimento, racionalidade e bom senso. Que se surgissem conflitos, os discutiriam abertamente, acreditando que seriam construtivos.
Ela começou dizendo que gostaria que eles assimilassem o que ela dissesse como informações para serem analisadas e criticadas e, não, como verdades absolutas.
Defendeu que a dependência é fruto de características inatas do indivíduo. Por exemplo: a porcentagem de indivíduos dependentes de drogas é bastante pequena. Que pesquisas apontavam que só dois por cento dos usuários eram dependentes. Que a dependência era caracterizada por: experimentado o objeto da dependência, era difícil deixar de usá-lo. Que o deixar de usar, causava grande sofrimento. Que para o dependente de drogas, era um grande sacrifício deixar de usá-las e eles conheciam muito bem isso.
Disse que o objetivo da vida de qualquer indivíduo é a felicidade. Que ela é resultado de satisfação de vontades. Que quando uma vontade não é satisfeita, costuma causar sofrimento. Que a dependência é uma vontade compulsiva e continuada contra a qual o indivíduo não consegue reagir a não ser por um esforço muito grande e por outros motivos que auxiliem nessa reação. O motivo que mais ajuda na reação contra a dependência é uma outra vontade que motive o dependente a satisfazê-la. É o caso da fé, do amor, da vontade de se livrar do sofrimento causado pela dependência, do medo, etc. Que a fé desperta a vontade de obedecer e agradar a quem ou ao que ela se dirige. Obedecer e agradar a Deus, por exemplo. O amor desperta a vontade de desfrutar a pessoa amada, de evitar-lhe sofrimento e, se a dependência impedir isso, o dependente terá forças para reagir. A vontade de se livrar do medo, pode superar a dependência e motivar o dependente a enfrentá-la.
Marina abordou a importância da relatividade, principalmente, nos sentimentos. Pediu aos dependentes que imaginassem um poço bem profundo, com uma escada apoiada no fundo, passando pela boca e continuando para o alto. Da boca do poço para o alto, cada degrau representava um grau de felicidade. Quanto mais degraus se subisse, mais felicidade se obtinha. Da boca do poço para baixo, cada degrau representava o nível de infelicidade. Quanto mais degraus se descesse, maior a infelicidade. Quem estivesse na boca do poço e fosse levado a desfrutar a felicidade correspondente ao décimo degrau, sentiria a intensidade correspondente a dez degraus. Uma outra pessoa que pudesse desfrutar a mesma felicidade correspondente ao décimo degrau, mas que estava vinte degraus abaixo da boca do poço; teria subido trinta degraus para chegar àquele nível de felicidade e a intensidade da felicidade seria três vezes maior do que a conseguida pelo que saíra da boca do poço. Chamou a atenção para o fato de os dois terem atingido o mesmo nível de felicidade, no entanto, a intensidade do sentimento foi três vezes maior para quem partiu de dentro do poço, quando comparado com a sentida pelo que partiu da boca do poço.
Ela ressaltou que essa intensidade relativa é temporária. Que o indivíduo que partiu de vinte degraus abaixo da boca do poço e chegou dez degraus acima dessa boca; sentiu uma intensidade correspondente à subida de trinta degraus. Porém, depois de um tempo, ele só sentirá a felicidade correspondente ao nível dez. O perigo disso, é que o indivíduo tende a desvalorizar a felicidade, por compará-la à intensidade sentida no início. Essa desvalorização pode levá-lo a não aproveitar a felicidade e, não raro, destruí-la. Portanto, é muito importante aproveitar a maior intensidade inicial, tendo consciência de que essa intensidade poderá diminuir, mas que continuará existindo felicidade para ser desfrutada e merecedora de valorização.
Ressaltou que, a mesma relatividade que afeta a subida, afeta a descida. Ao perder felicidade, é como se a pessoa caísse da escada. Quanto mais alto estivesse, maior seria o tombo e, conseqüentemente, o sofrimento.
Marina alertou para o fato de outro fator importante que afeta o indivíduo: a relação custo/benefício. Nessa relação, se o benefício for grande e o custo, pequeno; o resultado será vantajoso, facilitando prazer e felicidade. Porém, se acontecer o contrário e o custo for grande em comparação com um benefício pequeno; o resultado será prejudicial, causando sofrimento e infelicidade. Ela citou o exemplo das drogas: no começo, pequenas doses propiciam um prazer novo e significativo. Com o passar do tempo, a quantidade de droga é cada vez maior para o mesmo prazer. Além disso, a paranóia que aparece depois do prazer, vai aumentando com o tempo, isto é: à medida que o prazer diminui, o sofrimento aumenta. O aumento do consumo obriga a uma maior despesa, causando problemas financeiros ao usuário que, se não tiver como pagar por meios lícitos, apelará para os ilícitos, começando por causar prejuízos à família e, quando isso não for possível, agindo criminosamente contra terceiros. O relacionamento com a família se torna sofrível para todos e o dependente perde a dignidade. A ação criminosa gera riscos cada vez maiores, aumentando o medo que afeta o indivíduo. Em resumo: no começo o benefício é grande em relação ao custo, que é relativamente pequeno. Com o passar do tempo, o benefício vai diminuindo e exigindo custos cada vez maiores. Chega o ponto em que o benefício é pequeno demais e o custo, altíssimo. O que demonstra isso é o tempo que o dependente demora para perceber que está no caminho errado, o quanto é difícil abandonar o uso e o prejuízo que está sofrendo.
Ela se referiu, também, o quanto a vontade e a emoção são autônomas e o quanto dificultam e, até impedem, a racionalidade. Elas tentam impor a prepotência e o egoísmo, dificultando a humildade e a solidariedade. Disse que a preguiça, o comodismo, a pouca resistência ao sofrimento e a tendência para a facilidade inicial; são características que acenam com atrativos e causam grande prejuízo e sofrimento.
Marina concluiu chamando a atenção para os pontos fundamentais que ela abordara:
- Felicidade é o objetivo da vida, que é a satisfação de vontades.
- A vontade costuma rejeitar a razão, pretendendo satisfação a qualquer custo.
- Há características, que podem ser inatas, que predispõe o indivíduo a dificuldades ou facilidades. Dependência e talento são exemplos.
- A influência da relatividade na intensidade dos sentimentos..
- A importância da relação custo/benefício.
Encerrou dizendo que: na vida, tudo tem um custo. Que é preciso ter coragem e força para mudar o que for possível; serenidade para aceitar o que não for possível mudar e, sabedoria para distinguir o que pode ser mudado e o que não. Que a felicidade conseguida, pode compensar o sofrimento para consegui-la.
Seguiu um profundo silêncio, quando Marina sentiu vários pares de olhos fitando-a, como perscrutando seu interior. Ela temeu ter cometido algum mal, mas logo depois, os aplausos explodiram, demoradamente. A demora se deveu à impressão que suas palavras causaram nos ouvintes.
Quando o psicólogo abriu espaço para perguntas, elas se sucederam, permitindo à Marina esclarecer dúvidas e mal entendidos, detalhando pontos que chamaram mais atenção. Devido ao adiantado da hora, o psicólogo interrompeu a reunião, esclarecendo que, como Marina iria trabalhar na ONG, eles teriam tempo para aproveitar sua capacidade.
Marina não cabia em si de felicidade! Durante o almoço, se referiu ao que chamava de mistério: como explicar que, depois de tanto tempo de sofrimento, encontrasse uma paixão tão prazerosa, a que se somara a satisfação de sentir que suas idéias se mostraram benéficas e lhe renderam admiração? Como poderia ter imaginado que a miséria anterior pudesse se transformar, tão rapidamente, na abundância que experimentava?
O psicólogo também estava radiante, mas demonstrando que uma nuvem ameaçava ofuscar a luz radiante, a claridade que os iluminava. Marina percebeu e quis saber o motivo. Ele disse que lhe ocorrera a possibilidade de que aquilo não passasse de ilusão, provocada pela necessidade que eles tinham de se livrar de tanto sofrimento. Da possibilidade de que aquela emoção fosse passageira e que, logo, voltariam ao sofrimento anterior, aumentado pela decepção.
Marina mostrou expressão de espanto, fez o sinal da cruz e riu gostosamente. Voltando a ficar séria, mas não tanto, concordou com ele. Não seria estranho que isso estivesse acontecendo, afinal eles estavam ansiosos para se livrar do sofrimento. Sabiam que a melhor solução seria uma paixão. Ambos admiravam pessoas inteligentes e sensíveis e desejavam encontrar alguém assim. Ambos tinham as características que o outro desejava, ansiavam por um amor e estavam livres; portanto, juntaram-se todos os ingredientes necessários para acontecer o que acontecera e sentirem o que estavam sentindo. Alegou que o tempo mostraria se realidade ou ilusão. Independente disso, ela tentaria aproveitar ao máximo, consciente de que pudesse terminar, mas sem permitir que isso impedisse o aproveitamento possível.
Ele concordou com ela e acrescentou: mesmo que a paixão seja ilusória e não resulte em amor, nada impede a continuidade de uma boa amizade, até para amparar o outro, caso o amor dele se confirme. No que depender de mim, vou me esforçar para continuar te amando e, mais ainda, para receber o teu amor. Se não for assim, prometo ser teu melhor amigo.
Ela sorriu denunciando a felicidade que a inundava e repetiu a promessa dele. Saíram do restaurante abraçados, saltitantes, rindo de felicidade. Como ele não tivesse nenhum compromisso para aquela tarde, foram para o apartamento dele.

Quando entravam no apartamento o telefone tocou. Era a irmã da ex-mulher do psicólogo avisando que ela morrera. A causa fora overdose de cocaína. Ele ficou chocado! Era uma moça saudável e ele não sabia que estava usando drogas. Nas poucas vezes que se falaram depois da separação, ele sempre se dispusera a ajudá-la, caso necessitasse, mas ela nunca acusou que precisasse. Há quase um ano não tinha notícias dela.
Marina chamou-lhe a atenção para o fato de que, as vezes, a morte propicia libertação. Eles eram testemunhas disso. Quantas vezes não a desejaram para livrar-se do que sofriam?
Ele perguntou se ela poderia acompanhá-lo no velório, que acontecia na casa da mãe da moça, numa cidadezinha a poucos quilômetros dali, no caminho para a casa dela. Ela concordou e combinaram que, depois do enterro, seguiriam até sua casa, onde ela pegaria o necessário para o período de experiência na ONG.
Durante a viagem, conversaram sobre o mistério da vida. A moça fora apaixonada por ele, sofrera bastante enquanto ele estivera escravo da dependência, ajudara-o a livrar-se dela e a reconstruir sua vida. Quando a situação melhorara e eles puderam aproveitar os prazeres, livres dos sacrifícios que os havia castigado; ela decidira abandoná-lo. Ela havia voltado a estudar, estava empolgada com o trabalho dele e ajudava-o muito, conversando, opinando, provocando ângulos diferentes para as análises. Ainda não haviam conseguido viajar o quanto gostariam, mas não perdiam oportunidade de fazê-lo quando podiam.
Ele alegava que se o motivo da separação tivesse sido uma paixão, seria compreensível, no entanto, não fora essa a causa. Ela fora para a casa da mãe e passara a trabalhar em um lacticínio, fazendo queijo. Alegara que se cansara da vida que levava e que pretendia encontrar algo diferente, embora não soubesse o quê. A única convicção é que queria liberdade, ausência de compromisso. Algum tempo depois, contrariando a convicção alegada, amasiou-se com um rapaz, motorista de um caminhão que transportava leite dos produtores até o lacticínio. Assumira o papel de dona de casa. Em pouco tempo, o rapaz que era muito ciumento, passou a agredi-la e impedi-la de sair de casa sem sua companhia.
Algum tempo depois, separara-se daquele rapaz e, pouco tempo depois, fora morar com outro, trabalhador braçal na prefeitura e que, há pouco tempo, se separara da mulher com quem tinha três filhos pequenos. Acusaram-na de ser a causadora da separação do casal, o que não era verdade. Foi alvo de recriminação, envolvida nos atritos entre o rapaz e sua ex-mulher, tentando ajudar, mas acabou sendo atacada pelos dois, que se reconciliaram e ela voltou a ficar sozinha. Depois disso, o psicólogo não tivera mais notícias dela.
Marina comentou que com o Chico as coisas não foram diferentes. Alegando necessidade de liberdade, se tornara escravo de situações sofríveis, não encontrava o caminho desejado, nem ao menos identificara o que pretendia. Ela acreditava que essas pessoas são vítimas da vontade, do querer, sem saber o quê, simplesmente, querer, atirando-se na vida como quem se atira em um precipício sem saber se cairá nas águas de um lago tranqüilo ou se arrebentará nas pedras.
Enquanto Marina expunha essas reflexões, o carro percorria um trecho montanhoso da estrada. Numa curva, um caminhão velho e desgovernado, atravessou a pista, bateu de frente no carro deles, destroçando-o e precipitando-se numa ribanceira.
Marina e o psicólogo tiveram morte instantânea, assim como os ocupantes do caminhão. Um deles era o Chico.

O Juca pousou o livro e ficou matutando. Sentia um certo inconformismo. A estória terminara como se tivesse caído em um abismo, de repente, como se o autor não tivesse conseguido continuá-la.
Ele queria saber o que levara o Chico a abandonar a Marina, o que ele fizera depois e porquê. O porquê, depois de tantos fracassos, ele se negar a retomar o relacionamento que fora tão feliz.
E a mulher do psicólogo? Sofrera as agruras de namorar um dependente de drogas, enfrentara críticas de familiares e amigos, sofrera com as trapalhadas que ele aprontava e com o medo do que pudesse lhe acontecer. Dedicara-se com empenho a ajudá-lo na recuperação, sem poupar esforços e sofrimento. Quando as coisas começaram a se arrumar, ele se recuperara, se formara, trabalhava e não precisavam mais passar necessidades nem humilhações; ela resolve abandonar tudo e se aventurar no desconhecido. Pior que isso: atirar-se em armadilhas facilmente identificáveis, sabendo que conseqüências danosas causariam e da quase impossibilidade de se dar bem. Será que era masoquista e precisava de sofrimento para se satisfazer?
E quanto as mulheres com quem o Chico viveu? Por que o autor não falou sobre elas? E os homens da mulher do psicólogo?
O Juca não se conformava! Havia assunto para escrever um livro maior que aquele e o autor se limitara a um conto, deixando um monte de coisas no ar. Era um desperdício inaceitável!

Durante o jantar, a tia-avó notou que ele estava diferente e pergunto se algo o incomodava, Ele negou. Ela insistiu. Ele disse que estava pensando sobre um conto que lera. Ela alertou sobre o perigo de certas leituras, que são obras do demônio e podem causar sérios danos às pessoas. O recomendável era ler a bíblia, livro santo, grande fonte de força, esperança e alívio para os males. O Juca não considerou recomendável esticar o assunto e se limitou a concordar.
Depois do jantar, saiu para dar uma volta pela cidade. Não se conformava que o autor tivesse desperdiçado a oportunidade de desenvolver aquele conto, explorando os personagens, detalhando suas vidas, características e influências. O que ele pretendera com aquele final tão abrupto? Indicar a ação de um mistério inescrutável? Um chamamento para um acerto de contas em outra dimensão? Ou pura incapacidade para desenvolver o enredo? Andava, pensava, repensava e não se conformava. Vagou um bom tempo pelas poucas ruas da cidade, até resolver voltar pra casa e dormir.
Deitou, mas demorou pra dormir. Os personagens do conto vagavam por seu pensamento, com seus mistérios, seus porquês inexplorados.
Depois de muito tempo e de muitas viradas pra um lado e pro outro; o Juca acabou dormindo. Sonhou que encontrara o Chico, que estava sentado na raiz de uma árvore frondosa, com um talo de capim entre os lábios e o olhar perdido no infinito. Ficou observando-o por algum tempo e, como não se mexesse, pensou que fosse uma estátua. Prestou mais atenção e percebeu um tênue movimento de respiração acusado pelo capim.
Aproximou-se devagar, cumprimentou e, como quem não quer nada, sentou-se ao lado do Chico, que continuou estático. Depois de algum tempo, corroído pela curiosidade ansiosa, perguntou, de supetão, que motivos o teriam levado a abandonar a Marina. O Chico continuou mais um instante parado, como se não estivesse ali, virou a cabeça pro lado do Juca, tirou o capim da boca e disse: “Acordei”.
O Juca disse ter percebido que ele havia acordado, mas queria saber o motivo que o levara a separar-se da Marina.
O Chico repetiu que, acordara. Quando o Juca ia reclamar da falta de compreensão, o Chico continuou, dizendo que o relacionamento com a Marina fora um sonho e que, ao acordar, ele fora obrigado a viver a sua realidade. Com ela, ele vivera uma vida que não era sua. Ela o tirara da sua vida e o levara a viver uma vida diferente, cheia de novidades, de prazeres, de conquistas, realizações; onde, até as frustrações, eram motivo pra mudar de rumo e partir pra consertos ou mudanças de caminhos em busca de novas conquistas.
O Juca demonstrou sua incompreensão e perguntou o que o Chico vira de ruim ou errado naquele tipo de vida.
O Chico disse que o ruim e errado, estava no fato de que aquela vida não era dele. Ao conhecer a Marina, se apaixonara e sentira que não poderia viver sem ela. No entanto, ela não o aceitaria como era, confuso, indeciso, ignorante, totalmente perdido. Pra não perdê-la, assumiu outra personalidade, moldada por ela, lapidada e lustrada. Ela construiu essa personalidade, deu-lhe vida e conduziu-a. Eu não era o eu que eu fora, era o eu que ela construíra.
O Juca voltou a perguntar se aquilo não era bom. O Chico disse que era, mas não era ele.
O Juca não entendia! Como ele não era ele, que porra de loucura era aquela? Tentando esclarecer, o Juca perguntou se ele acreditava que o ele, ele; era melhor que o ele dela.
O Chico disse não saber. No entanto, ele era ele e não poderia se o outro, não importando se o outro era melhor ou não.
O Juca não se conformava, aquilo era uma maluquice! O cara preferia ser uma personalidade defeituosa e problemática, ao invés de assumir as modificações conseguidas, buscando cultivar a melhora, procurando acentuá-la. Argumentou que o normal das pessoas é conseguir exatamente isso, quer dizer: acentuar oi que for bom na personalidade e tentar mudar o que for ruim. Por que ele se negava a aceitar isso?
O Chico disse que não era uma questão de aceitar ou não. Que não era ele que não aceitava essa mudança e, sim, a sua personalidade, que reagira contra as mudanças e exigira seu lugar. Ele pensara, e até tentara reassumir aquela personalidade, mas a dele não deixou e, ela, era muito mais forte que ele.
Quanto mais o Juca procurava entender, mais confuso ficava. O Chico dizia que sua personalidade original, incompetente para conseguir satisfação e felicidade; revoltara-se contra as mudanças que a Marina conseguira ajudá-lo a promover. Que essas mudanças não teriam sido simplesmente mudanças, mas, sim, a criação de uma nova personalidade, que substituíra a original que, no entanto, continuara a existir e permanecera hibernando durante o tempo em que o relacionamento durara. Num determinado momento, a personalidade original decidiu se rebelar e assumir o lugar que havia perdido; provocando a separação e reassumindo o controle da vida do Chico. Será que entendera bem, que era isso mesmo que o Chico alegava? Que coisa maluca!
O Juca, ainda sem entender aquele negócio, quis saber o que o Chico fizera, em termos de trabalho, durante o tempo que durou a relação com a Marina. O Chico disse que aprendera o trabalho de paisagismo, jardinagem, cultura de plantas, produção de adubos orgânicos. Que intercalava trabalhos no sítio em que a Marina morava, com outros que desenvolvia no sítio de seu pai, onde produzia adubos orgânicos e cultivava hortaliças sem agrotóxicos. Disse que o mais importante foi ter aprendido a aprender. Aprendeu a pesquisar, estudar, identificar problemas e buscar soluções.
Aquela revelação aumentou, mais ainda, a confusão na cabeça do Juca. Quis saber o porquê de ele ter abandonado tudo, dedicando-se a atividades inexpressivas, acumulando prejuízos e sofrimento, quando tinha capacidade para buscar alternativas, reconhecer erros e buscar soluções.
O Chico disse que era tudo uma questão de sentimento. O que o levou para a Marina foi a paixão, o amor. Sentiu que não poderia viver sem ela. Quando esse sentimento acabou, ela não era mais necessária, transformando-se num empecilho para novos sentimentos. Deixou-a para estar livre pra sentir novamente. Sentiu-se atraído pela garçonete e a paixão reacendeu. Foi feliz com ela, que lhe propiciara muito prazer.
Quando a paixão deu lugar a sentimentos ruins, causados por problemas de incompatibilidade e financeiros; deixou-a. Por que envolver-se em problemas quando se pode abandoná-los e obter sentimentos satisfatórios em outros lugares, com outras pessoas? O Chico alegou que era como chicletes: quando acaba o doce, por que continuar mastigando aquela massa sem gosto, quando se pode jogá-la fora e saborear um novo? Fora isso que o guiara: abandonar problemas e buscar novas satisfações.
O Juca lembrou-o da seqüência de fracassos, da perda da dignidade, dos prejuízos causados e sofridos. O que justificava tanta perda?
O Chico foi lacônico: “o prazer”.
O Juca questionou se o prazer conseguido compensava o sofrimento posterior.
O Chico disse que não sofria, simplesmente deixava de ter prazer. Abandonava o que estava vivendo e esperava a oportunidade de conseguir prazer novamente.
O Juca perguntou-lhe se não se sentia mal vivendo como um parasita, ou se sujeitando a trabalhos aquém de sua capacidade, que não lhe possibilitavam mais que uma sobrevivência sofrível.
O Chico disse que não se sentia mal. Quando isso começava a acontecer, ele abandonava. Que não precisava muito pra sobreviver, portanto não era um encargo muito pesado pra ninguém. Quando surgia a oportunidade de desfrutar um grande prazer, aproveitava-a até que acabasse.
O Juca quis saber se a impressão negativa que as pessoas tinham dele não o incomodava. Ele disse que não, que não se importava com a opinião alheia. O importante era o que ele sentia e a opinião alheia não lhe fazia qualquer mal. Quando a opinião era favorável ele sentia prazer, quando contrária, não o atingia. Em resumo, o que lhe dava prazer ele aproveitava; o que pudesse causar mal, ele abandonava. Era simples.
O Juca argumentou que ele acabara de confessar que as opiniões favoráveis lhe propiciavam prazer. Se isso era verdade, por que não se esforçava para merecê-la e, assim, angariá-la em maior quantidade, aumentando o prazer?
O Chico argumentou que isso exigia sacrifícios a que ele não estava disposto. Quer dizer: o custo para conseguir aprovação era muito maior que o benefício, portanto, não valia a pena.
O Juca estava confuso. Bota confuso nisso! Como é que um cara daquele, vivendo uma vida miserável, desacreditado; podia estar ali, tranqüilo, como se não tivesse qualquer problema?
Tanto podia, que estava! Aparentemente, ele não tinha problemas. Ou melhor, os problemas não o atingiam. Se não o atingiam, pra ele, não havia problemas. Parecia que, pra ele, só havia prazer e ausência de prazer; sem problemas, sem sofrimento. Será que era assim mesmo, ou ele estaria interpretando um papel, fugindo de encarar a realidade, de admitir que estava vivendo uma vida de merda? Será que não interpretava para não ter que admitir que cometera um grande erro, que não tinha coragem de voltar a traz e, por isso, não considerava os erros posteriores e não admitia estar sofrendo?
Por outro lado, era bem possível que estivesse dizendo a verdade, que não se deixasse afetar pelas dificuldades e que se contentasse com os prazeres conseguidos. Pensando bem, seria uma maravilha! Conseguir aproveitar a felicidade possível, sem ser afetado pelos problemas, pelo sofrimento, pelos prejuízos; sem se importar com as opiniões alheias, nem ter problemas de consciência pelos sofrimentos e prejuízos causados aos outros. Para o indivíduo, conseguir isso, seria uma verdadeira maravilha: aproveitar a felicidade e não sofrer a falta dela! Seria possível?
O Chico garantia que sim. O Juca pensou na Marina, que desfrutara quatro anos de felicidade maravilhosa, mas sofrera tremendamente pelo final do relacionamento. Se ela pudesse não ser afetada pelo sofrimento, pudesse descartá-lo; não teria o que lamentar. Não teria pago preço tão alto pela felicidade desfrutada.
Era difícil acreditar no que o Chico afirmava, no entanto, não era impossível que fosse verdade. Era difícil, mas impossível não era! O Juca chegou a sentir arrepios ao pensar no que seria da sociedade se houvesse uma porção de Chicos por ai. Será que não havia?
Considerou que gente egoísta, exigindo seus direitos e desconsiderando o dos outros, indiferentes aos prejuízos e sofrimentos causados; havia em abundância. O que achava difícil, era que, mesmo esses, fossem insensíveis ao sofrimento que lhes cabia. O Chico alegava que não sofria. Que o não ter, não conseguir, perder; não o afetavam, nem lhe causavam qualquer mal. Na conta corrente da sua vida, não havia coluna de débito, só a de crédito. O Juca, no meio da confusão em que estava, não conseguia admitir que aquilo pudesse ser verdade. Uma vida só com prazeres, sem sofrimento? Difícil!
O Juca quis saber como o Chico via as mulheres com que havia se relacionado, o que sentia ao pensar nelas. O Chico pensou um pouco, como quem procura a resposta adequada e declarou que as via como garrafas vazias de refrigerante. O Juca estranhou e ele explicou que, no começo do relacionamento, elas estavam cheias de refrigerante, gostoso, propiciando prazer. No final, estavam vazias, portanto, não ofereciam prazer nenhum.
O Juca quis saber se ele as considerava todas iguais. Ele disse que não. Era como se fossem refrigerantes de sabores diferentes.
O Juca perguntou sobre a intensidade e duração. O Chico disse que a Marina, por exemplo, por mais que ele bebesse, a garrafa continuava cheia e com o mesmo sabor até que acabou. Que só no finalzinho o gosto ficou ruim. As outras, embora saborosas, acabaram logo e, no final, eram enjoativas e difíceis de tragar.
O Juca considerou que aquela analogia era desumana, mas esclarecedora. Tomar o refrigerante, apreciar o sabor, saciar a sede e, depois, descartar a garrafa, como algo inútil, sem qualquer serventia, sem a menor consideração pelo que representou, tratada como simples entulho descartável. Ele continuava duvidando que aquele cara pudesse estar sendo autêntico. Era a demonstração de um egoísmo extremado, inadmissível em um ser humano.
Inconformado e tentando desmascará-lo, o Juca quis saber como o Chico via as outras pessoas: os pais, irmãos e patrões, por exemplo. O Chico os comparou a árvores frutíferas. Os parentes ofereciam frutos ao alcance da mão e estavam sempre disponíveis. Os patrões representavam árvores que disponibilizavam poucos frutos e que exigiam esforço para serem apanhados.
O Juca confessou ao Chico a sua incredulidade, a dificuldade de acreditar que ele estivesse sendo autêntico. A Marina o descrevera como uma pessoa muito sensível, que vivia atormentada, angustiada, em busca de um caminho que lhe propiciasse felicidade. Agora, era o oposto; insensível ao sofrimento, esperando que a felicidade o procurasse, sem se dispor ao menor sacrifício para consegui-la. Como seria possível tamanha transformação? Ele se lembrava de como tinha sido?
O Chico disse que sim. Lembrava que tinha sofrido muito, embora a lembrança não lhe causasse qualquer sofrimento. Lembrava que fora feliz com a Marina, mas também essa lembrança não lhe causava qualquer emoção. Tivera muito prazer com as outras mulheres, também, mas isso era passado e, agora, não provocavam qualquer tipo de sentimento, eram só lembranças. Disse que não via o porquê do Juca duvidar do que dizia. O que ele queria? Que sofresse? Era isso?
Essas questões pegaram o Juca de surpresa e aumentaram sua confusão. Claro que ele não defendia o sofrimento como uma necessidade, muito pelo contrário. No entanto, o considerava inexorável, conseqüência da própria vida, resultado da sensibilidade, da insatisfação. Mesmo que o Chico conseguisse ficar imune às próprias insatisfações, como não se sensibilizar com o sofrimento alheio, principalmente o causado por ele?
O Chico argumentou que, se podia ficar imune ao próprio sofrimento, por que deveria sofrer pelo sofrimento dos outros?
O Juca disse que isso é que lhe parecia impossível: ser imune ao sofrimento. Se ele fosse totalmente insensível, seria mais fácil aceitar, afinal, significaria ausência de emoção, nem boa , nem ruim. No entanto, ele declarava que sentia prazer e felicidade. Isso é que era difícil de entender! Como ele conseguia controlar a emoção, aproveitando a parte boa e descartando a ruim? Ele, por exemplo, há muito lutava, desesperadamente, para livrar-se do sofrimento, mas fracassara e continuava fracassando. Por mais que se esforçara, não conseguira deixar de ser afetado pela insatisfação e conseqüente sofrimento.
O Chico, como quem fizera uma descoberta importante, argumentou que, o problema estaria na satisfação. Que o Juca buscava satisfação e, ao não consegui-la, sofria. Ele, ao contrário, não buscava satisfação, esperava-a. Quando desejava alguma coisa e não a conseguia; simplesmente descartava o desejo. O Chico disse que não desejava, simplesmente aproveitava o que lhe era oferecido.
Maluquice! Aquilo era loucura! Não dava pra creditar que alguém conseguisse tal controle da emoção e da vontade. O Juca não conseguia acreditar que aquilo fosse possível.
O Juca acordou, confuso. A escuridão do quarto, o silêncio. Passou um instante situando-se, onde estava? O que acontecera? Passou a mão no rosto, apalpou o peito e, finalmente, percebeu que sonhara.
Diabo! Como era possível sonhar uma maluquice daquelas? Quem criara aqueles diálogos? O Chico não poderia ter sido. Ele também não, nunca imaginara que aquilo fosse possível. Como poderia ter criado aquelas idéias?
Se não fora ele quem criara aquelas idéias, não montara o diálogo; quem o teria feito? Afinal, o sonho acontecera nele. Quem poderia interferir no seu sonho?
O Juca tentou voltar a dormir, mas não conseguia. Era evidente que não fora o seu consciente quem criara aquele sonho. Ele nunca havia pensado em algo parecido!Teria sido o tal de inconsciente? Será que o inconsciente teria capacidade de criar coisas assim? Seria um outro ele, capaz de criar idéias como aquelas, sem que o consciente dele tivesse conhecimento?
Seria possível que algo, como o espírito do Chico, tivesse agido nele, contando o que acontecera? Seria alguma outra coisa que criara aquele sonho? O Juca não se conformava que algo acontecesse dentro dele e que não pudesse compreender o que, e como. Que porra! Ele não tinha controle nem sobre si mesmo!