quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Eu

EU
Nasci na Espanha, no final de 1948, no dia dois de dezembro e fui registrado como tendo nascido no dia quatro desse mesmo mês. Era uma época difícil para o povo humilde daquele pais, como para muitos outros de outros países da Europa. As dificuldades, associadas ao desejo de progresso, levaram meu pai a decidir pela emigração. Escolheu o Brasil porque aqui já viviam vários parentes de minha mãe.
Embarcamos em Vigo, porto do Noroeste da Espanha, num navio que havia sido cargueiro e que fôra adaptado para o transporte de passageiros. Foram treze dias de viagem. Minha mãe, que estava grávida, passou mal a viagem toda, segundo ela, pelo forte cheiro de tinta, conseqüência da recente reforma do navio. Eu tinha um ano de vida e ainda não andava.
Meus pais contam que um menino, galego, que também viajava no navio, me adotou como seu protegido e, quando alguma outra criança se aproximava de mim, ele ameaçava em galhego: -“Bai-te embora, xá que te becha chegar, xá te mordo!”- querendo dizer: Vá embora, se perceber que te aproximas de novo, já Te mordo.
Chegamos ao Rio de Janeiro no dia primeiro de janeiro de 1950 e, no dia seguinte, a Santos, onde desembarcamos e fomos recebidos por parentes que aqui moravam.
Fomos morar no porão de uma casa, na vila Mariana, perto das casas de vários parentes de minha mãe. Logo fiquei muito doente, dizem que tive sete doenças juntas, entre as quais, bronquite. Não sei quais foram as outras, nunca perguntei. Vou tentar descobrir. Um médico, que atendia a família de minha mãe, a pedido deles, foi me visitar e foi pessimista, considerando que eu tinha poucas chances de sobrevivência. Tanto é que, passava todos os dias para verificar se eu já havia morrido. Ele se enganara, ou eu o enganei, ou o mistério se encarregou de pregar uma peça na ciência. O fato é que sobrevivi e consegui chegar até aqui.
Meu irmão, David, nasceu em maio, na casa de uma tia de minha mãe, na Estrada do Vergueiro, no Ipiranga. Tudo isso fiquei sabendo através de ouvir conversas entre meus pais, parentes e amigos. Não tenho a menor lembrança dessa época. A primeira lembrança é de um portão, que dava acesso a um quintal de terra, onde havia uma casa na frente do terreno e outra nos fundos, onde nós morávamos, no bairro da Água Funda. Eu deveria Ter três anos de idade.
Certo dia, num grande terreno que ficava do outro lado da rua em que morávamos, começaram a montar um circo. Esse terreno ficava a mais ou menos um metro e meio acima do nível da rua. Curioso, eu fui espiar os trabalhos de montagem. Uma menina passeava com um macaquinho preso a uma corrente. Não sei como, o macaquinho sentiu apetite por meu calcanhar e meteu-lhe os dentes. Fui socorrido por minha mãe que, com a ajuda de um delegado de polícia, me levou até o centro da cidade, para que eu fosse medicado no pronto-socorro.
Algum tempo depois, eu brincava nesse mesmo terreno, onde havia funcionado o circo, cai sobre uma carroça e tive o braço direito quebrado em dois lugares. Novamente o passeio até o pronto socorro e, depois, ao hospital da clínicas, onde o braço foi engessado. Acho que não moramos mais que um ano nessa casa, porém, foi suficiente para que eu sofresse dois acidentes. Ainda bem que mudamos dali, caso contrário, sei lá o que mais poderia Ter acontecido! Não me lembro de ninguém, nem de como eram meus pais.
Mudamos para outra casa na vila Morais, não muito longe da Água Funda. Lembro-me de uma casa quadrada, entre árvores grandes e com muitas folhas no chão. Lembro-me que havia uma senhora grande, imagem típica de portuguesa, com lenço colorido na cabeça, saia comprida e rodada. Ela mijava em pé, provavelmente não usava calcinha, pois só abria as pernas e mijava.
Contam que um dia, meu tio Ismael, que morava há uns cinco quilômetros dali, me levou para dormir na casa dele. Durante a noite eu aprontei um tremendo berreiro e meu primo teve que sair de madrugada comigo nos braços, levando-me pra casa. Imagino o desejo que ele deve Ter tido de me jogar no mato, que aliás, havia bastante no caminho entre nossas casas.
Minha irmã Mirian nasceu na época em que morávamos nessa casa. Ela nasceu na maternidade Leonor Mendes de Barros, no bairro do Belém. Não me lembro de nada disso, sei por Ter ouvido. É estranho como algumas expressões são duvidosas. Ter ouvido pode significar: possuir o ouvido, ou haver escutado. Soube dessas coisas por haver escutado.
A próxima lembrança, lembrada, não ouvida, é do jardim Maringá, um bairro em formação, onde meu pai havia comprado um terreno, para onde nos mudamos. Meu pai fôra trabalhar na obra de uma escola que construiram num bairro vizinho, vila Talarico, e conheceu o loteamento que começava a ser vendido. Ele acreditou que poderia pagar as prestações e comprou o terreno. Pelo que contam, a prestação era bem pequena, o problema é que o que meu pai ganhava, era menor ainda, o que ocasionou que atrazasse muitas vezes os pagamentos devidos. A casa foi erguida com a ajuda de amigos de meu pai, que trabalhavam nela aos domingos, numa espécie de mutirão. Concluidas as paredes, colocado o telhado, portas e janelas, nos mudamos pra ela. O piso era de terra batida, não havia revestimento nas paredes nem vidros nas janelas. Não tinha forro também. O terreno ficava no ponto mais alto do loteamento. Desde a casa, podíamos ver muitas ruas e lotes e só duas casas. O solo era de terra vermelha e a chuva formava valetas nas laterais das ruas, onde eu, com uma enxada, rapava areia que, depois, um carroceiro a transportava para ser usada no revestimento da casa. Foram muitos anos de obras até que a casa ficasse terminada.
A água era retirada de um poço com vinte e três metros de profundidade, com balde, preso a uma corda, enrolada através de um sarrilho de ferro. Alguns anos depois, meu pai comprou uma bomba usada, do tio Ismael. A bomba foi instalada mas, como não havia energia elétrica, tinha que ser acionada a mão, girando-se um volante. Eu detestava fazer aquilo!
Cursei o primeiro ano da escola no Grupo Escolar Dom Bernardo Rodrigues Pereira, aquela em que meu pai trabalhou na sua construção e que o levou a comprar o terreno. A professora se chamava Dona Uda. Era muito magra, pálida. Só me lembro disso e de que tinha um bar na esquina que vendia sorvetes, aqueles que tem mais gelo que outros componentes. Tinha um vendedor de quebra-queixo e outro de machadinha, um doce duro, que vinha numa travessa dessas de fazer bolo e que precisava ser cortado a golpes de uma machadinha. O quebra-queixo era uma espécie de melado quase sólido misturado com pedaços de coco pelo meio e por cima. Tinha também um vendedor de raspadinha. Era um carrinho com rodas de bicicleta, com um tampo de madeira, onde havia uma barra de gelo, que era raspada com um raspador, o gelo raspado colocado num copo e, sobre ele, o cara colocava xarope de frutas. Acho que era mais suco que xarope. De qualquer maneira, essas coisas eram pra ser olhadas por mim, pois nunca tinha dinheiro pra comprar qualquer uma delas.
Por essa época, talvez um pouco antes, vieram da Espanha uma irmã de minha mãe, tia Albertina, viúva, e um casal de filhos. A Délia deveria Ter uns dezesseis anos e o Pepe, quinze. Alguns anos antes, tinham vindo minha avó, mãe de minha mãe e a tia Lilian, solteira, penúltima filha de meus avós, uma vez que minha mãe era a caçula. Minha avó veio morar conosco e a tia Lilian foi trabalhar de pagem na casa de um casal de sírios, que tinham tido o primeiro filho.
Tia Lilian e tia Albertina compraram um terreno que fazia fundo com o nosso e construiram uma casa, onde tia Albertina passou a morar com os filhos.
Me lembro que a Délia tinha muitas espinhas e detestava aquilo. Fez um tratamento na farmácia do Hélio, um cara muito competente e que fazia as vezes de médico naquelas comunidades sem maiores recursos. O tratamento consistia em transfusão de sangue, retirado das nádegas e aplicado no braço, ou o contrário, não me lembro mais. Eu a acompanhava nas idas à farmácia. Não me lembro se o tratamento deu certo.
O Pepe era um porra-louca, desde criança na Espanha. Vivia aprontando. Certo dia foi procurar emprego. Disseram-lhe para pegar o ônibus Cinco Estações, no largo da Concórdia. Ele não conhecia o (Ç) e voltou pra casa, alegando que esperara muito tempo pelo ônibus, mas só passava o cinco Estacões. Lembro que ele foi operado de apêndice no hospital São José do Braz, no Belém. Ele levou uma caixinha de madeira, um bauzinho para guardar as coisas. Não me lembro de muita coisa, enquanto me recordo de coisas bestas assim!
O segundo ano escolar, cursei em um grupo escolar na cidade Líder. Havia um parque infantil da prefeitura, ao lado da escola, onde passávamos o dia inteiro. Ficava a uns cinco quilômetros de casa e, no começo, havia um ônibus da prefeitura que nos levava até lá. Depois de algum tempo, o ônibus deixou de vir e tínhamos que ir e voltar de carona. Quando uma empresa nova começou a fazer a linha Itaquera, Parque Dom Pedro II, os ônibus nos davam carona.
O uniforme do parque infantil era: camiseta branca de alças, shorte vermelho e, para o frio, um agasalho de flanela marrom. O meu número era setecentos e sessenta e oito. Chegávamos pela manhã e tomávamos café, leite gelado servido em copos de alumínio, pão, queijo branco com goiabada. Almoçávamos e tomamos café da tarde. Quem cuidava da gente no parque infantil, eram educadoras. Me lembro o nome de uma delas: Vani. Tinha um homem preto, muito grande e totalmente careca, que era o servente que, entre outras coisas, servia o lanche e o almoço. Ele era muito legal.
O parque infantil se compunha de um galpão, o terreno todo gramado, com várias árvores e circundado por uma cerca viva. Era bastante agradável. Tinha umas gangorras, alguns balanços e um conjunto de barras de tubo galvanizado, daquelas usadas para fazer exercícios pendurado. O que eu mais gostava era pular desde um barranquinho para as barras de ferro, agarrando-me com as mãos, o que resultava no corpo ficar balançando, pelo impulso do salto. Quando as mãos escapavam da barra, o tombo era feio, de costas no chão.
Só me lembro da professora do segundo ano. Era baixa e gordinha, usava saia justa até os joelhos e se chamava Marina. Os alunos formavam fila no páteo da escola e iam pra sala de aulas com a professora à frente. À porta da sala, a fila parava e fazíamos exercícios respiratórios, comandados pela professora.
Fiz a primeira comunhão no parque infantil. No Sábado, o padre do bairro veio até a escola onde nos confessamos. Fiquei preocupado quando soube que não poderia cometer nenhum pecado até a hora da comunhão, que só aconteceria no dia seguinte, no Domingo. Depois da confissão, o padre pediu que a diretora da escola providenciasse que algum menino fosse até a igreja buscar uma lata com hóstias para a comunhão do dia seguinte. Fui escalado, com outro menino para o serviço. Fomos até a igrejinha, que ficava num morro e o sacristão nos entregou uma lata, dessas de biscoitos, com as hóstias. No caminho de volta, a curiosidade nos levou a abrir a lata. Experimentamos uma óstia e verificamos que tinha gosto de biju. Como eram gostosas, comemos um punhado. O padre deu por falta das hóstias que comêramos e nos contemplou com um belo sermão, daqueles de encher o saco, até do mais arrependido dos cristãos. Teve penitência e tudo. Não me lembro qual foi, mas que teve, teve.
Para a comunhão, montaram um altar na carroceria de um caminhão, onde recebemos a eucaristia. Era uma festa, com direito a vela com um laço branco desenhado com não sei o quê. Não me lembro de Ter comungado outra vez, além daquela. Me lembro que fui crismado na igreja da Penha, que estava super-lotada. Meu primo Pepe foi meu padrinho e de meu irmão, enquanto meu pai foi o padrinho dele, que também foi crismado naquele dia.
As educadoras do parque infantil criaram um jornalzinho, onde publicaram um desenho que eu fizera. Nessa época tive uma briga com uma menina, chamada . Não sei o que ela fez com o tinteiro (naquela época se escrevia com uma pena espetada num cabo de madeira e que exigia fosse molhada no tinteiro a cada pouco). Só me lembro que minha mão estava tomada de tinta. Dei-lhe um tapa no rosto e transferi parte da tinta da minha mão para as faces dela. Levei uma puta bronca e fui castigado. Ainda bem que naquele tempo não tinha delegacia da mulher!
Mandaram instrumentos para que fosse montada uma fanfarra na escola. Um instrutor nos treinou e, a partir daquele ano, passamos a desfilar no dia sete de setembro, comemorando a independência do Brasil. Eu tocava corneta. Desfilávamos com imponência, com todo garbo, considerando que estávamos fazendo a coisa mais importante do mundo. Ficávamos orgulhosos vendo tanta gente nos assistindo.
Me lembro de uma festa junina, no parque infantil, todo enfeitado de bandeirinhas que passamos meses cortando papel de seda e colando-as em barbante. Meu primo Pepe foi com um taxi que trabalhava. Também foi o motorista dos patrões de minha tia Lilian, que fôra levá-la com as crianças de que cuidava. O Pepe e o motorista compraram um monte de bombinhas e me deram algumas. Foi uma festa a parte, porque era a coisa mais rara, Ter bombinhas para soltar. Era um luxo que nossa condição financeira não permitia.
Aos sábados não havia aulas nem atividades no parque infantil. Num deles, não sei porque, fui até lá, pela manhã. Encontrei uns colegas e fomos pescar num córrego, nas proximidades da escola. Voltei pra casa ao anoitecer, a pé. Quando estava chegando, encontrei minha mãe e não sei mais quem, que preocupados, me procuravam. Tomei uma surra daquelas.
Eu não costumava dar motivos para broncas e surras, porque tinha por princípio a honestidade e responsabilidade. Achava que isso era fundamental e fazia tudo para parecer assim. No entanto, fazia tudo para aparentar isso, mas não conseguia deixar de praticar algumas artes, tomando todo o cuidado para não ser descoberto. Na frente de casa, havia uma linha de alta tensão. Sob ela, havia uma faixa de terra tomada pelo mato. Certo dia, não sei porque cargas d’água, botei fogo no mato. Foi um Deus nos acuda, todo mundo correndo pra apagar o fogo, com medo de que ele atingisse os cabos e eles caíssem, provocando uma desgraça. Ninguém ficou sabendo quem teria sido o incendiário.
Na esquina da rua de casa com a Av. Itaquera, havia uma colchoaria. Naquela época, o colchão mais comum era feito de capim. Um dia, essa colchoaria pegou fogo. Toda a vizinhança correu lá pra apagar o fogo. Todos carregavam baldes com água que jogavam sobre as chamas. Foi um incêndio daqueles! Eram tempos de muita solidariedade. Não havia recursos, todos eram muito pobres. No entanto, ninguém se negava a ajudar quem precisasse, da maneira que pudesse.
Nessa época se mudou na vizinhança o Sr. José Pereira e sua família. Eles eram portugueses, a mulher, dona Elisa e os filhos: Fernando, Adelino e Toninho, o mais novo. O Toninho se tornou meu melhor amigo, na época. Estudávamos e fazíamos tudo juntos. Os irmãos dele, trabalhavam na padaria de um tio, um pela manhã e o outro à tarde. Depois de algum tempo, os irmãos compraram uma bicicleta. Ela passou a ser nosso divertimento preferido. Andávamos na rua, de uma ponta a outra, um de cada vez; o Toninho, eu, meu irmão e outros moleques da vizinhança.
O seu Zé, trabalhava numa fundição. Certo dia, caiu-lhe um lingote de ferro em brasa, dentro da bota. Foi uma tragédia, ele quase perdeu o pé. Nós, no entanto, ríamos muito, a gargalhadas, imaginando o quanto ele teria pulado até que lhe tirassem as botas e o livrassem daquele sufoco. Ele foi aposentado e comprou uma carroça com cavalo, na qual, com o Adelino, vendia verduras e frutas nas ruas.
Naquela época, um meio de transporte muito usado era a carroça puxada a cavalo. Era comum que nos empórios, fosse vendida alfafa, em fardos, para alimentar cavalos. O padeiro entregava pão e leite de casa em casa, usando esse meio de transporte. O verdureiro também; como o carvoeiro que vendia carvão para os fogões, que ainda não usavam gaz. Peixeiros também usavam carroças para vender sardinhas e outros peixes menos comuns e mais caros.
Certo dia, minha tia Albertina me entregou dez cruzeiros para comprar alguma coisa. Como fosse Domingo e estivesse recebendo visitas, não se lembrou de cobrar o troco, nem eu me lembrei de entregá-lo. No dia seguinte, ao perceber que o dinheiro estivesse no meu bolso, contrariei meu princípio de honestidade e fiquei com ele, gastando-o em doces e balas. Não me lembro no que deu, mas que foi uma sacanagem, foi. Ela, como todos ali, vivia com dificuldades e aquele troco fazia falta para outras despesas. Passei muito tempo com grande remorso por Ter feito isso.
Um tempo antes de entrar para a escola, brincando no quintal de casa, correndo, como sempre; cortei a perna, na altura do joelho, ao passar por uma lata de dezoito litros, daquelas em que vinha óleo comestível e que servia de vaso para uma planta. A Lata era velha e um pedaçõ dela se soltou virando pra fora. Fez o papel de faca e provocou um corte bem profundo. De outra vez, brincando na cozinha, onde, no fogão, uma frigideira grande de ferro, com óleo quente, esperava as sardinhas que minha mãe iria fritar. Bati no cabo da frigideira e o óleo banhou minha mão e braço direito. Levado ao hospital das clínicas, a mão e o ante-braço foram enfaixados. Lembro que eu apertava a mão enfaixada, na altura dos dedos e sentia as bolhas de água estourando. O corte na lata deixou uma cicatriz que é visível até hoje. A queimadura não deixou marca nenhuma.
Chegou a época do descobrimento da libido. Era masturbação a toda hora, sozinho ou em grupo. Conseguir ver as pernas ou calcinha de uma menina virou obsessão. Do lado de nossa casa, mudou uma família vinda do interior, como aliás, a maioria dos que moravam alí; ou eram estrangeiros ou procedentes do interior do Brasil. Nessa família tinha uma menina, mais velha que nós. Não tínhamos coragem de abordá-la, mas vivíamos atrás dela, tentando ver-lhe as calcinhas.
Os brinquedos se limitavam a pedaços de madeira, sobras dos dos madeiramentos dos telhados, das casas que aos poucos iam sendo construidas. Eles viravam caminhões que percorriam estradas traçadas na terra da rua. A imaginação se encarregava dos itinerários, das cargas e de todo o resto. A grande vantagem, era que o caminhão podia mudar de modelo, de cor, de tamanho; o que só dependia da imaginação, sem custo, sem trabalho.
Minha avó morava com a gente. Quase todos os domingos meus tios e tias vinham visitá-la e traziam balas para nós. De vez em quando, traziam chocolate. Minha mãe não nos deixava comê-los. Guardava-os e, durante a semana, ia misturando um pedacinho em leite e nos dava pra beber. As balas eram cortadas ao meio, pra durar mais tempo e só nos dava uma metade de cada vez. Acho que se lhe tivesse ocorrido que, chupando a bala sem tirar o papel, ela duraria mais; minha mãe nos obrigaria a isso.
Me lembro da eleição para presidente da república, quando o Juscelino foi eleito. Lembro de um cartaz com a foto dele na casa do Seu Antonio Macedo, pai do Carlinhos, um amigo nosso.
Só alguns previlegiados tinham luz elétrica. Não sei porque. Qual o critério usado para esse fornecimento. Um deles era o dinheiro. Quase ninguém tinha condições de pagar pela instalação da luz. Um dos vizinhos que tivesse luz, emprestava aos outros, que esticavam fios, seguros por postes improvisados. Vira e mexe, a concessionária aparecia e acabava com a festa, deixando todo mundo no escuro, outra vez.
Meu pai era raspador de assoalhos. Na época da construção de Brasília, ele se associara a outro raspador e foram para lá trabalhar. Depois de alguns meses, ele voltou para visitar a família. Chegou num Sábado, no final da tarde. Trouxe um bloco de doce, uma espécie de rapadura com sabor diferente do tradicional e geleia de mocotó, sólida, aquele doce que tem consistência parecida com a sola de sandália de borracha. Foi uma festa! Claro que os doces foram consumidos ao longo de muitos dias, em doses farmacêuticas, controlados por minha mãe, com o mesmo critério que adotava para as balas e chocolates que nossos tios traziam. No Domingo pela manhã, fui com meu pai visitar o Seu Zé Pereira, o português. Estávamos na casa dele quando vieram avisar que minha avó estava morrendo. Chegamos em casa e deparamos com minha mãe gritando e chorando estericamente. Minha avó estava sentada numa cadeira na cozinha, morta. Ela arrumara as camas e chegara na cozinha, onde estava minha mãe, dizendo que estava sentindo algo estranho. Sentou-se e morreu. É como eu gostaria de morrer quando chegar minha hora. Sem sofrimento prolongado, sem dar trabalho, de repente, pá puf!
Veio a parentalhada toda. Muitos vieram no caminhão de um primo de minha mãe. Resolveram que, como o enterro aconteceria no cimitério da vila Mariana, perto de onde moravam a maioria dos parentes, o corpo seria transportado para a casa da tia Célia, onde se realizaria o velório. O corpo foi num carro da funerária e nós fomos de caminhão. Durante a viagem, uma menina pouco mais velha que eu, que era meio parente, se pôs a meu lado e juntando o polegar e o indicador da mão esquerda, formando um círculo, introduziu o indicador da outra mão no círculo, movimentando-o para a frente e pra trás, no inteior do círculo e me perguntou se eu sabia o que era aquilo. Disse-lhe que sim (era a simbologia usada para identificar o ato sexual). Eu sabia o que representava, sonhava com aquilo, mas nunca tivera a menor experiência. Nós estávamos ajoelhados na carroceria do caminhão, agarrados na tampa trazeira. Eola se posicionou na minha frente e, com era noite, fiquei me esfregando na sua bunda. Ela me pediu para passar a mão e introduziu minha mão sob sua saia, introduzindo-a na calcinha. Fiquei com a mão parada, apoiada nos pelos e ela se encarregou de movimenta-la. Não me lembro direito de como foi, só sei que foi uma sensação estranha, de Ter desejado tanto aquilo e não saber o que fazer quando a oportunidade apareceu.
Durante o velório, pela madrugada, vários homens numa sala ao lado de onde estava o caixão, conversavam e contavam piadas. Eram todos parentes e o mais animado era o Suso, o dono do caminhão e primo de minha mãe. Ele era um cara divertido e grande contador de “causos”. Dias mais tarde, ouvi uma conversa de minha mãe com alguém, que não me lembro quem era, onde ela demonstrava toda sua revolta, considerando que era uma tremenda falta de respeito que, num velório, as pessoas se divertissem, rindo abertamente. Foi a primeira vez que percebi o quanto, muitas pessoas, valorizam o sofrimento e procuram curti-lo profundamente, fazendo-o render muito além do que seria normal. Cultivam o sofrimento como uma coisa preciosa, criticando acidamente quem se empenhe em evitá-lo ou encurtar-lhe a duração. Achei estranho que minha mãe demonstrasse tanto sofrimento pela morte da mãe, uma vez que vivia reclamando e brigando com ela. Na minha cabeça de criança, aquilo demonstrava uma grande contradição. Na verdade não eram brigas, mesmo porque minha avó era uma senhora calma e dócil. O problema era que minha mãe, julgando saber o que era melhor pra todo mundo, insistia em que a velha se comportasse e fizesse o que, a ela, lhe parecia melhor, sem respeitar o que seria melhor para cada um.
Quando conclui o quarto ano primário, “tirei diploma do grupo”, ganhei um relógio, dado pelo patrão de minha tia Lilian, além de um livro, da diretora da escola, por Ter tido a melhor nota no exame final. Para o livro não dei muita bola, o relógio, no entanto, causou um deslumbre! Era coisa rara na época e minha mãe só me permitia usá-lo em ocasiões especiais. Me levaram para tirar uma fotografia, segurando o diploma, tomando cuidado para que o relógio aparecesse com destaque no pulso. O maior destaque da foto não foi o relógio, nem o canudo que continha o diploma; foi o cabelo espetado num redemoinho que eu tinha na frente da cabeça, que dava a impressão de um porco espinho.
Os patrões de minha tia Lilian, pediam a ela que me levasse para brincar com os filhos deles, de quem ela cuidava como babá. Em alguns finais de semana e nas férias eu ia para a casa deles, que ficava no Jardim Paulista, um bairro nobre de São Paulo. O filho mais velho tinha quase a minha idade, um pouco mais novo. Além dele, havia outro menino e uma menina. Brincávamos muito e todos gostávamos. Só não gostávamos da chatice de minha tia, que nos policiava o tempo todo exigindo comportamento exemplar, segundo os conceitos dela, de uma regidez extremada. A maior vítima era eu, que ela pretendia transformar num modêlo de qualidades.
Nas férias íamos para Campos do Jordão, Águas de Lindóia e Guaruja. Os patrões me tratavam como um verdadeiro filho, sem fazer distinção entre os filhos e eu. Eu ficava puto da vida quando eles nos levavam a uma loja de brinquedos para comprar algo para nós e minha tia insistia para que comprassem brinquedos mais simples pra mim, dizendo que eu me contentava com qualquer coisa.
Certa vez, no Guarujá, ela me comprou um calção branco, muito largo nas pernas o que dava a impressão de ser uma saia. Eu detestava aquele calção, mas ela me obrigava a usá-lo, o que me dava vontade de matá-la, mas como acreditava que era obrigação obedecer os mais velhos e, principalmente, as tias; vestia aquela encrenca, muito a contragosto, mas vestia. Ela, ao contrário, achava que era muito bonito e me obrigou a tirar uma foto com ele, num jardim da praia, onde trabalha um “lambe-lambe”. Na foto é que ficou constatado o quanto eu ficava ridículo usando aquele calção.
Foi uma época muito boa, ganhava presentes, viajava, comia do bom e do melhor, principalmente pratos sírios: quibe, esfiha, tabule, coalhada, charutos de folhas de uva, abobrinha recheada e outras coisas de que gosto muito até hoje. Mesmo com o controle rigoroso de minha tia, que determinava o quanto eu deveria comer, impedindo que me satisfizesse totalmente,; era muito mais, em qualidade e quantidade do que consumia em casa. Essa convivência me permitiu conhecer um pouco do que era a riqueza, o que ela proporcionava e como era aquela gente, diferente das que conhecera até então. Os patrões da minha tia eram muito bons, me tratavam como um filho, no entanto, a maioria das pessoas daquele círculo, eram arrogantes e mostravam desprezo por gente que não estivesse a sua altura, inclusive eu, uma criança, sentia a rejeição que me dedicavam. Minha tia era muito influenciada por essas pessoas, achava que tinham razão, que pobre não tinha direito a se misturar com eles, que deviam “ficar no seu lugar”. Considerava os ricos como seres superiores, a quem os pobres deviam obediência, assumindo sua incapacidade. Ela era naquela casa como um feitor de fazenda dedicado ao patrão, obedecendo sem questionar, transmitindo ordens com extremado rigor, castigando sem piedade quem se atrevesse a contestar.
Naquela época, depois do primário, vinha o curso ginasial e não havia vagas para todos os que pretendiam cursá-lo. Só uma minoria se propunha a cursa-lo, mesmo assim, as vagas eram insificientes, obrigando os pretendentes a prestar um exame de seleção. A concorrência levava os pretendentes a fazer um curso preparatório para esse exame, chamado de curso de admissão ao ginásio. Minha mãe, em virtude da falta de dinheiro (esses cursos eram pagos), arrumou uma professora num bairro vizinho que dava aulas em sua casa. Eu ia com vários meninos da vizinhança. Deveríamos ser uns sete ou oito. No caminho para a casa da professora havia uma adega. Meus companheiros resolveram que todo dia, tomaríamos uma tubaina, refrigerante de maça que vinha numa garrafa que dava quatro copos, o que cabia meio copo para cada um. O combinado era que, cada dia, um dos componentes pagaria a tubaina. Foi uma luta convencer minha mãe adar o dinheiro para que eu pudesse cumprir o combinado. O preço do refrigerante era pequeno, no entanto, a dificuldade de conseguir dinheiro era enorme. Depois de muito reivindicar e chorar, consegui que ela me desse o suficiente para não passar vergonha perante os colegas.
Eu não gostava de estudar, embora tivesse boas notas. Estudava por obrigação, porque meus pais faziam questão que estudássemos, para que tivéssemos um futuro melhor. Passei no exame de seleção e comecei a freqüentar o ginásio. No primeiro ano fui razoavelmente bem. Comecei a trabalhar num depósito de materiais de construção, como ajudante na loja. Antes disso, já vendia xuxu na feira do bairro que acontecia as sextas-feiras. O xuxu era de um pé que havia no quintal da minha tia Albertina. Tentava engraxar sapatos, também, mas os melhores pontos, onde havia fregueses, já estavam tomados por moleques maiores, que impediam que outros lhes fizessem concorrência. Já existia a máfia da reserva de mercado.
No depósito de materiais de construção eu ajudava na loja, como balconista; ensacava cal virgem, que vinha a granél, ensacava cimento derramado de sacos que se rasgavam, arrumava madeira nas pilhas e, de vez em quando, lavava o carro do patrão, um Vanguard, que parecia um bisorro. O páteo do depósito tinha um declive dos fundos para a rua, onde ficava oportão e, ao lado, uma pilha de manilhas de barro, usadas para canalização de esgoto. Certo dia, lavava o carro, que estava estacionado na parte mais alta do terreno. Mexendo nos pedais, descobri que ao pisar na embreagem o carro andava e, quando esta era solta, ele parava. Gostei da brincadeira e passei a pressionar a embreagem, deixando o carro descer alguns centímetros e soltando a embreagem para que parasse. Numa dessas, devo Ter desengatado a marcha, sem querer, ou ela escapou sozinha; a questão é que o carro andou e, quando soltei a embreagem, ele continuou andando. Eu tentava segurá-lo mas não conseguia. Na direção em que se dirigia, havia uma carroça com burro, onde o carroceiro carregava manilhas. O carro aumentava a velocidade e se aproximava do burro. Não me lembro como, só sei que consegui frear o carro, que parou quase junto ao focinho do burro. Também não me lembro das conseqüências, da bronca que devo Ter levado.
Instalaram um telefone público na loja do depósito. Foi uma festa, pois o mais próximo, até ali, ficava a uns três quilômetros de distância. No entanto, conseguir fazer uma ligação, era uma aventura. A espera poderia chegar a horas para se conseguir linha para a ligação. Lembro-me que um dia, um homem do bairro sofreu um derrame. Sua esposa passou o dia no depósito tentando ligar para avisar um parente do ocorrido, só conseguindo no final do dia.
No segundo ano do ginásio eu já começava a detestar os estudos. Era um grande sacrifício Ter que assistir as aulas e estudar. No entanto, meus pais não queriam nem ouvir falar em abandono dos estudos. Comecei a “cabular” as aulas. Como a presença fosse registrada numa caderneta de freqüência, eu entrava na escola, entregava a caderneta, entrava na sala, pulava a janela e saia para a rua. No final das aulas, as cadernetas eram entregues a um aluno da sala que as distribuia aos colegas. Eu pulava o muro e esperava pelos colegas que assisiam as aulas, que pegavam minha caderneta e me entregavam. Com isso meus pais nunca souberam que eu deixava de assistir muitas da aulas.
Para passar o tempo, enquanto não chegava a hora de ir embora, ficava no bar do seu João, que tinha televisão. Naquele tempo, televisão só tinha nos bares ou na casa de alguém, que por isso, já era considerado rico. Na minha classe tinha um japonês, umtal de Kasuo, cujo pai era feirante. Ele também era dado a cabular as aulas. Estava sempre com dinheiro no bolso, o que era raro na maioria dos moleques. No bar havia um jogo, uma espécie de tabuleta com furos, cobertos por um papel dourado. Tinha um pino de madeira, pontudo que, ao ser introduzido num dos furos, liberava uma bolinha colorida que caia numa caixinha na base da tabuleta. De acordo com a cor da bolinha, o jogador recebia o prêmio correspondente. A maioria das bolas era de uma cor que dava direito a um cubinho de doce de amendoim, chamado dadinho. Outras cores de bolinhas davam direito a outros prêmios que não me lembro quais eram. O japonês era viciado naquele jogo e não gostava dos dadinhos. Eu, que era seu companheiro, ficava com os doces e que com o prazer que eles me propiciavam.
Quando ganhava alguma gorjeta no depósito, guardava para pagar a entrada do cinema, nas terças feiras à noite, na chamada “sessão dos duros”, onde o preço tinha um bom desconto. Só podia usar as gorjetas pra isso, uma vez que o salário entregava todo para minha mãe.
Eu tinha uma espécie de obsessão de parecer um bom menino aos olhos dos mais velhos. No entanto, tinha algo que me provocava a fazer coisas esquisitas, aprontar alguma coisa. Certa feita, levei um despertador para a sala de aula, coloquei-o sob uma carteira desocupada, longe da minha e programei-o para despertar no meio da aula de latim. Quando soou o alarme do despertador, foi um rebuliço na classe. O professor queria saber quem fizera aquilo e eu fiquei quietinho. Ele pegou o despertador e colocou sobre sua mesa, para, ao final da aula, entregá-lo na diretoria. Fiquei apavorado! Como explicaria o sumiço do despertador de casa? Já estava ficando desesperado quando tive uma idéia. Pedi a uma colega que, quando batesse o sinal da saida, ela chamasse o professor para tirar uma dúvida. Ela fez isso e, quando o professor foi atendê-la, passei pela mesa e sai com o despertador, sem que ninguém visse. No dia seguinte, a diretora foi na classe querendo saber quem roubara o despertador, pressionou de tudo que foi jeito mas ficou sem resposta.
No final do terceiro ano fui reprovado. Consegui convencer meu pai que seria melhor eu ir trabalhar e abandonar os estudos. Não foi fácil mas consegui meu intento. Eu tinha treze anos e, com autorização dos pais, tirei a carteira profissional e fui trabalhar no escritório da empresas do patrão da tia Lilian. Era office-boy. Antes disso, freqüentei um curso intensivo de dactilografia, numa escola do centro da cidade. Levava um lanche de pão com ovo que era meu almoço. Depois de dez dias, conclui o curso, fazendo umas mutretas para passar nas provas, e comecei a trabalhar, como recepcionista da diretoria. Recebia os visitantes, servia café, limpava as mesas e coisas assim.
Era 1962, ano da copa do mundo no Chile. Os jogos ainda não eram transmitidos pela televisão, uma rádio instalou alto falantes nos postes do centro da cidade e era uma festa ouvir a transmissão na rua, cheia de gente, como se estivéssemos em um estádio.
Desde muito cedo eu era apaixonado por caminhões, provavelmente por causa de meu primo Pepe, que depois de Ter trabalhado como motorista de taxi, passou a trabalhar como motorista de caminhão, viajando pelas estradas do Brasil. Quando eu andava de ônibus, ficava na frente, o mais próximo possivel do motorista e observava tudo o que fazia. Quando sozinho, me imaginava dirigindo um caminhão, mudando marchas em subidas longas, acelerando, freiando, fazendo curvas, manobrando para estacionar e coisas assim.
Trabalhei menos de um ano no escritório. Durante esse tempo, fiz um curso de mecânica de motores diesel, por correspondência.
O tio de um amigo de meu pai, era sócio de um desmanche de carros na rua Piratininga, que naquela época era quase totalmente ocupada por esse tipo de negócio. Ele conseguiu que o tio me empregasse e passei a trabalhar ali. Ganhava menos que no escritório, mas não importava, estava fazendo o que gostava. Nas horas de folga, sentava-me ao volante dos carros que ainda estavam inteiros e me imaginava viajando, como se aqueles carros velhos fossem um potente caminhão.
A loja onde eram vendidas as peças usadas, era na rua Piratininga, mas os carros eram desmontados num terreno de uma travessa, na rua Coronel Mursa. Os proprietários permitiam que um japonês, chamado Orlando, mecânico e funileiro, trabalhasse naquele terreno, como autônomo. Eu não perdia oportunidade de aprender. Não que quisesse ser mecânico, meu interesse em mecânica objetivava poder consertar os caminhões que eu dirigisse pelas estradas, quando apresentassem problemas. Ali eu fazia tudo: varria a loja, tratava dos passarinhos, atendia fregueses, desmontava câmbios, motores e diferenciais, ajudava o dono a recondicionar motores, ajudava o japonês na oficina e ajudava a desmanchar os carros.
Certa vez chegou um ônibus velho para ser desmanchado. O encarregado dos desmanches era um tal de Dudu, de uns quarenta anos e que sofria ataques de loucura. Por causa disso, vira e mexe era internado e recebia tratamento a base de choques elétricos. Ele pitava um cachimbo velho que tratava de pito. Quando ele foi desmontar a estrutura da carroceria do ônibus, que era toda arrebitada, me chamou para ajudá-lo. Para cortar os arrebites, usávamos um corta-frio (espécie de talhadeira grande, com cabo de madeira, por onde ele era segurado). O corta-frio era posicionado de lado no arrebite, pou um, enquanto o outro golpeava com uma marreta. O Dudu segurava o corta-frio, enquanto eu golpeava com a marreta. Ele não se concentrava no trabalho, deixando o corta-frio bambear, o que me desequilibrava quando dos golpes. Eu lhe pedia que segurasse firme, mas ele nem ligava. Quando chegou a hora de trocarmos de tarefa, esperei que ele se empolgasse nas marretadas e, quando estava batendo com toda a força, num dos golpes, retirei o corta-frio e a marreta, não encontrando obstáculo, passou como uma bala de canhão, levando junto o Dudu, que caiu no chão, sobre as latas do revestimento do ônibus, ali espalhadas. Foi uma queda forte e de mal jeito. Ele caiu de um lado e eu pulei do outro, sabendo que tentaria me pegar pra se vingar. Ele estava todo arranhado, mas, ao invés de se preocupar com as dores ou em me perseguir; limitava-se a gritar como um louco – Cadê meu pito?”. Passei quase uma semana de prontidão, evitando encontrar-me com ele.
Chegou o ano de 1964 e o golpe militar que estabeleceu a ditadura. Pra mim não passou de uma movimentação de viaturas militares e os comentários que havia um golpe. Não tinha a menor noção do que aquilo representava.

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